A ideia de transformar lugares em marcas de forma intencional e sistemática não é nova. Foi nos anos 1980 que gestores públicos, profissionais de comunicação e marketing entenderam que as pessoas se relacionam com os lugares da mesma forma que se relacionam com os produtos, ou marcas de consumo, surgindo então o termo “place branding”, que relaciona diretamente lugares (place) ao ato de construir marcas(branding). Esse pensamento descortinou um universo de possibilidades, na mesma medida que pode ser a razão de tanta incompreensão e confusão causadas até hoje, uma vez que que associa dois termos para os quais o senso comum tem uma leitura no mínimo plural.

Os lugares, embora de fácil compreensão, também têm conceitos abrangentes e filosóficos e tiveram sua definição muito questionada durante a pandemia, inclusive por mim mesmo, aqui nesse mesmo site. Trabalharemos aqui nesse texto com uma leitura da geografia humana que sugere que um lugar é um espaço dotado de significado pelas pessoas, ou seja, pessoas e lugares estão intrinsicamente relacionados.

O branding por sua vez é um caso à parte, incompreendido desde sempre; já foi publicidade, já foi design, já foi experiência e até virou piada no Porta dos Fundos de forma genial. A confusão é justificada, a própria literatura especializada relaciona o termo tanto para estratégia quanto para as identidades visuais. É comum vermos um livro com o título “branding” tratar-se de um repositório de identidades visuais, que são conjuntos de elementos gráficos que representam visualmente uma marca. A diferença está na palavra “representam”. Identidades visuais são representações imagéticas de uma marca e não a marca em si. As identidades visuais mais competentes são aquelas que traduzem graficamente o conceito, a ideia que move determinada marca, ou pelo menos, teoricamente, é assim que deveria ser.

Então, antes de falarmos de place branding, do presente ou do futuro, é importante fixar bem uma ideia: marca não é logotipo.

E há tempos que marca que não é logotipo, pelo menos desde o império romano, onde a expansão territorial levou fabricantes e artesãos a “marcar” seus produtos justamente como forma de determina-lhes procedência, origem.

O pensamento moderno do branding relaciona marca ao ideal da empresa, que de forma bastante modal, se convencionou chamar-se de propósito, que essencialmente, numa visão reymaniana (Joey Reyman, autor do livro “Propósito”) é algo umbilicalmente ligado, porém sensivelmente diferente daquilo que podemos chamar de “identidade” da marca, ou seja, seu conceito central. A coisa toda complicou ainda mais com o livro “The Brand Flip” de Marty Neumeier, onde o autor sugere que não compramos nem produtos e nem serviços (até aí nada de novo para o branding) e, também, não compramos marcas (ops…) e sim aderimos a uma ideia “defendida” pelas marcas.

Mas então identidade e propósito não são a mesma coisa? Não, não são. Identidade é essência, é introspecção; propósito é ideal, é extroversão; identidade qualifica a marca, confere a ela seu significado; propósito a insere no mundo, com algo mais poderoso do que seus próprios produtos ou serviços: uma causa. Todas as marcas têm um propósito? Não necessariamente, mas todas as marcas que se comportam como marcas, têm uma identidade, e aqui cabe uma ressalva, você pode ser uma empresa e não ser uma marca e ainda assim viver feliz para sempre, não existe só um caminho.

Mas, e as marcas-lugar?

Antes de apresentar uma definição para o conceito é inevitável relembrar meus anos pregando no deserto. Imaginem um cenário onde o próprio termo branding até hoje causa uma confusão danada, agora imaginem complicar isso ainda mais ao falar de uma tal place branding? É de comer? Onde vive? Do que se alimenta?

Depois de tantos anos escrevendo, ensinando e trabalhando com o tema, vejo surgir uma tendência de alçar o place branding a um termo da moda, pelo menos nas cidades brasileiras e no poder público. Calma, você pode estar pensando, como assim moda se eu nunca ouvi falar disso? Lembre-se que quase tudo nessa vida é uma questão de entender em qual “bolha” você está, ou, se você preferir, o termo mais marketeiro, de qual “público-alvo” você pertence. Então, não se assuste se você nunca ouviu falar disso, embora seja possível que você já tenha se relacionado com algum lugar como marca, como por exemplo quando você paga mais por um brigadeiro que usa chocolate belga, quando você anda de madrugada sentindo-se seguro em alguma cidade que visita, quando planeja sua lua de mel em Paris ou nas Maldivas, quando compra o recém premiado queijo da Canastra…

Quando você percebe que se sente pertencente a determinado lugar você está tendo uma experiência de marca-lugar.

Perceba que nada disso tem a ver com logotipos ou identidades visuais, e isso é de fácil comprovação: você sabe qual o logotipo ou identidade visual da cidade de Paris? Ou de Londres? Mas você certamente entende o que esses lugares representam, mesmo sem nunca ter visitado nenhum deles. Isso é place brand (marca-lugar), que numa síntese absurda, pode ser definido como a nossa emoção relacionada a determinado lugar, o que sentimos ao pensar ou nos relacionar com determinado lugar, ou seja, uma marca-lugar pode chegar, e comumente chega, até você muito antes do lugar em si.

Começando pelo 1.0

No meu primeiro livro, defini place branding como o processo que identifica vocações, potencializa identidades e fortalece lugares, sempre envolvendo as pessoas, e mesmo com todas as mudanças recentes no mundo, essa definição ainda faz todo sentido, mesmo que os caminhos para alcançar esse objetivo tenham sido atualizados. E é sobre isso que esse artigo realmente aborda, uma nova visão para as marcas-lugar, que não por acaso, chamo de Place Branding 3.0 e dá nome ao meu novo livro que pretendo publicar ainda em 2022.

O recente uso indiscriminado do termo me obriga a usar uma saída meio marqueteira de batizar um termo com alguma coisa ponto alguma coisa, 2.0, 3.0, 4.0… que sempre achei meio esdrúxula, mas que, nesse caso específico, faz algum sentido. A resistência a esse marquetês me levou a caminhos mais tortuosos e nem sempre compreendidos como aconteceu com o “Cidade Antifrágil”. Como uso o termo Nation Branding 2.0 para definir a evolução da expertise para a identidade digital necessária ao desenvolvimento das marcas-país, era natural que me apropriasse do próximo número disponível ao batizar essa nova visão. Place é uma “escala” mais democrática do que alguns outros termos vigentes como city ou mesmo nation, no place cabe tudo, e melhor ainda, cabem todos, uma declaração óbvia de que a escala não importa, e o que importa é de fato as pessoas. Lembro com carinho do “posicionamento” da minha antiga consultoria: pessoas, lugares e marcas, necessariamente nessa ordem” que define bem a minha escala de prioridades ao pensar os lugares.

Uma visão de futuro, com futuro

Evidente que o place branding tradicional parte de processos de pesquisa, quantitativos e qualitativos, e isso é um arsenal indispensável ao processo. Mais do que dados coletados, era também preciso inserir a variável humana, com todas as suas imperfeições e toda a sua beleza, algo que sempre orientou meu trabalho e se consolidou em uma metodologia de cocriação, em diversas etapas e frentes, além de processos colaborativos intensos, onde a comunidade e stakeholders podem trabalhar juntos, levantando problemas, percepções e chegando a uma ideia compartilhada, além de fortalecer o senso de pertencimento, quando existente, ou criar um novo, a partir desse novo encontro de pessoas. Acredite, não é raro a existência de várias lideranças ou movimentos comunitários lutando pelos mesmos objetivos, em um mesmo lugar, sem nunca terem se falado, ou sequer, sabido da existência um do outro.

Se o engajamento é legitimação de um lugar existente ao envolver as pessoas que lhe dão significado, ele é identificação nos casos em que o lugar não existe ainda de fato, ao envolver o entorno, a região e os possíveis futuros moradores, visitantes e usuários, compreendendo os elementos que farão daquele lugar um lugar vibrante, seguro e com significado.

Se as pessoas buscam significado nas marcas que usam, imagine a importância do significado do lugar que elas chamam de “seu”, afinal, não existe lugar sem significado, embora muitos governos e empreendimentos imobiliários ainda insistam em ignorá-lo ou ainda, insistem em simplesmente copiar alguma solução bem-sucedida em um contexto completamente diferente, ação que carinhosamente apelidei de “disneylandização” do lugar.

Mas mesmo com todo o arsenal, era preciso, como bem mostrou a pandemia, pensar e agir de forma menos hermética, com menos certeza, agora com habilidades dinâmicas e adaptáveis, e esse foi o argumento central do “Cidade Antifrágil” – a adoção do imponderável como premissa de pensamento estratégico, como elemento de projeto, algo que, claro, causa uma enorme estranheza, mas que vai se mostrando eficaz tanto na esfera pública quanto na privada. O conceito do “Cidade Antifrágil” que numa régua pessoal posso considerar uma espécie de place branding 2.0, já trazia as expertises do place branding e do placemaking, embalados na ideia de imprevisibilidade e dinamismo, típicas da antifragilidade talebiana.

O place branding 3.0 abraça todos os elementos e adiciona uma nova expertise nesse mosaico: o futurismo, e todo seu vasto arsenal metodológico, como o strategic foresight, embora muito mais do que a metodologia em si, o que importa aqui é a visão de futuro, ou melhor, de futuros, ensaiados e discutidos para que, a partir deles, consigamos lidar cada vez melhor com o presente e criarmos lugares “future proof”, antifrágeis, seguros, vibrantes e com significado.

Ilustração: Lars Leetaru

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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