a máxima de que não adianta esperar resultados diferentes fazendo as coisas do mesmo jeito é tão real que exaspera: o que precisamos então transformar para concretizar as mudanças que tanto queremos? e como ainda trocar o motor com o carro já andando? por mais contraintuitivo que pareça, fazer diferente começa por não fazer nada. e isso tem tudo a ver com a sua, a minha, a tão preciosa e nossa atenção.

levei trinta anos para aprender a respirar.

foi ao fim de uma busca de visão, nome que antropólogos deram a iniciações que distintos povos originários realizam há milênios como transição à vida adulta. eu não venho de uma cultura originária, muito pelo contrário. mas já entendi faz tempo que os caminhos da normose moderna me nocauteariam sempre com pressa, nunca em satisfação e ainda na sede por mais um fôlego de afeto e vitalidade.

por isso, as aulas básicas que não tive na escola. àquela altura da busca, eu já tinha passado quatro dias acampando solo em jejum na floresta temperada onde se situa a academia monástica budista MAPLE, que prepara jovens para os complexos desafios provocados por nossa civilização cartesiana.

depois de mergulhar em sonos delirantes por um corpo que enfim se permitiu descansar, de contemplar a beleza dos musgos e dos traumas, eu, enfim, cedi a que seria a parte mais difícil da jornada. não, não foi deixar de comer.

foi fazer a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e nada.

fazer nada para permitir o novo

“Açoitadas a um estado permanente de frenesi, as pessoas criam e se submetem a ciclos de notícias, queixando-se de ansiedade ao mesmo tempo em que checam de volta de maneira cada vez mais diligente. A lógica da publicidade e dos cliques dita a experiência mediática, que é exploratória por natureza.”
– Jenny Odell

em denúncia ao curto-circuito que é atual economia da atenção — estrutura cognitiva-financeiro-política que captura e mercantiliza nossa força mais íntima e modula nossos comportamentos para manter a máquina pifando —, a artista filipino-estadunidense Jenny Odell escreve o best-seller “Resista não faça nada: A Batalha pela Economia da Atenção”.

inaugurei o ano com essa leitura, precisamente porque percebia a armadilha de fazer, fazer, fazer mas nunca parar para perceber que é que se está fazendo.

se eu já estudava há anos sobre como fazer as coisas de maneira mais regenerativa — passar meu tempo, prestar consultoria a organizações, sonhar meu futuro —, o que ainda jazia como potencial não-realizado para que eu, de fato, não caísse no mesmo desespero de acordar e adormecer sob a pressão de nunca ser suficiente? e se eu já declarei atenção como a bandeira que finco e o serviço a que me dedico, como é que me é tão difícil estar presente no aqui e no agora? se tem TANTO trabalho para ser feito em meio à opressão, depressão e ansiedade generalizada, por onde raios eu começo?

fazer nada é se aquietar ao ponto de perceber o que de fato está acontecendo aqui

Odell defende que o único hábito que vale a pena praticar é o de questionar a maneira habitual de se ver as coisas. afinal, o hábito vai se tornando tão internalizado que, perigosamente, foge do escrutínio e passa a ser “como as coisas são”. e lá se vão vidas inteiras em sofrimento programado no trabalho, em casa, nas ruas.sua proposta é habitar a renúncia. 

se posicionar à parte do modus operandi, explica Odell, “representa o momento em que o desejo desesperado para se ejetar (para sempre!) amadurece em um comprometimento em viver em recusa permanente onde já se está, e encontrar outros no espaço em comum dessa recusa”. fazer nada ainda é participar, “mas ‘do jeito errado’: uma maneira que undermine a autoridade do jogo dominante e cria possibilidades fora disso”, complementa.

a autora nos convida a ver o mundo, hoje, do ponto de vista do que poderia ser, no futuro, com todas as dores, dramas, desejos e dádivas que daí emergem. e a radicalmente sustentar essa tensão criativa, em crítica ao que precisa morrer (aos algoritmos culturais do utilitarismo ou da atomização que estão minando as boas relações na sua organização) e em lealdade a o que se decide continuar (o valor à vida presente nas pessoas em seu impermanente desdobrar em direção a seu potencial, aqui e agora encarnado).

fazer nada é menos sobre um abandono apoteótico rumo à utopia, e mais um treino constante e vagaroso de retornar, retornar, sempre retornar ao essencial, a o que de fato está acontecendo e pode ser experienciado para além do que a mente quer compreender e o ego quer controlar — afinal, já sabemos que resultados podemos esperar daí.

fazer nada para deixar de apenas sobreviver

esse movimento de parar, respirar, retornar e perceber é, precisamente, o movimento da atenção. diferente do que a economia da atenção insiste em vender, nossa atenção não é uma coisa, como um botão de liga-desliga furiosamente macetado nos extremos do hiperestímulo e da inércia. atenção superficial é igual a experiência superficial, conversas superficiais, vida superficial.

nossa atenção não é uma coisa, mas uma força modeladora da realidade e orientadora de nossa energia, e que traz o potencial de vivificar o sistema de que faz parte. praticar atenção (e é necessariamente pela via da prática) convoca uma qualidade de presença, relação e resposta às circunstâncias e aos seres que são fundamentais para nos prepararmos de forma inteligente e resiliente ao mundo que é incansavelmente complexo, ambíguo e surpreendente.

o músculo da atenção (e do cérebro) é plástico: gradualmente fortalece certos padrões de percepção e ação em detrimento de outros. assim, forma não apenas uma relação momentânea, mas uma matriz que é nossa pele de toque com a realidade e que nos permite estar em conexão no mundo. essa matriz é uma malha de percepções, histórias, decisões, paradigmas e valores com a qual fazemos (ou deixamos de fazer) absolutamente qualquer coisa, de dar bom dia ao porteiro a facilitar a reunião mais estratégia do ano. se essa malha está configurada para ver as coisas como boas versus ruins, ou que o mundo gira ao redor de certos umbigos, ou que a vida é difícil e escassa, toda a realidade que essa malha atravessará existirá dentro dessas molduras.

criar o novo, porém, exige a catapulta de qualquer moldura de comando e controle.

e fazer nada é o ponto de retorno à chama criadora de qualquer sistema, a partir da qual é possível traçar novos caminhos. e, assim, compor uma matriz que, em sua vertente regenerativa, nos permite cessar de viver apenas na sobrevivência, na correria e no esgotamento, mas tocar maiores níveis de vigor e significado da vida, em supervivência. essa palavra não está no dicionário – ainda

enquanto o sistema posto nos enfileira e achata para o imediatismo, o anestesiamento, e a reatividade, a partir dessa matriz conseguimos reconhecer o valor intrínseco da vida, enxergar o potencial em qualquer ser, projetar para sua evolução, sentir e destinar elementos emocionais para propósitos de bem-viver, e agir com responsabilidade adulta — nos desvencilhando dos jogos dramáticos de se vitimizar, culpar ou salvar os outros (quem vê isso acontecendo na própria organização?), e ocupando realmente nosso lugar no mundo e para o mundo (autonomia e engajamento raiz).

se existe algum padrão de comportamento em você ou na sua organização que não está colaborando para o bem viver do grupo, é na matriz de atenção individual, em equilíbrio dinâmico com a cultura coletivamente criada (quer esteja consciente ou não), que qualquer intervenção gera mais efeitos — o que a autora Donnella Meadows  chama de ponto de alavancagem.

nunca é acidente, sempre é design, como me lembra Marcelle Xavier

fazer nada para seguir mudando

“Abrem-se portas e janelas nas paredes de uma casa,
Mas é o vazio que a torna habitável…”
— Lao Tsè, em Tao Te King

a sabedoria do nada é antiquíssima, como mostram os versos do taoísta Lao Tsé. filosofias não-brancas nos relembram que uma frase somente faz sentido graças aos espaços entre as palavras. e que é o vazio o que promove movimento.

como escreve a artista e dançarina Danielli Mendes, “a falta de vazio em nossas articulações está limitando nossos movimentos, prejudicando nossa organicidade, e sobretudo, trazendo a falsa ideia de que nossa matéria é fixa, que a forma é algo que não tem plasticidade e que, portanto, não se regenera”.

para ela, que desenhou uma série de cerimônias ao vazio , “cultuar e respeitar o vazio poderá nos livrar da desnutrição ocasionada pela ficção que é reforçada e praticada em escala global, esta ficção que nos ensina que já não precisamos mais do mundo e nem dos outros seres e entidades”.

e assim recuperamos o contexto, o lugar, a base onde habitamos e onde agimos — o “local, o carnal, o poético” que Odell conclama em seu livro. “contexto é o que aparece quando sustentamos nossa atenção por tempo suficiente”, conta. é onde nos encontramos para reconhecer nossos talentos e nossas sombras, e construir conjuntamente que raios estamos fazendo por aqui.

inclusive, e principalmente, para trazer à mesa os elefantes brancos do grandíssimo privilégio que é sustentar atenção, fazer nada, superviver. o que nos é direito se revela inacessível, até mesmo inimaginável. e por isso mesmo estrondosamente urgente. Audre Lorde, escrevendo sobre o erótico enquanto força vital, declara que “uma vez tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e reconhecido seu poder, não podemos, por nossa honra e respeito próprio, exigir menos que isso de nós mesmas”. é esse o tamanho da transformação, o ponto de não retorno. não dá para “desver”, há de se fazer algo a respeito. 

foi mais ou menos assim que terminei aquela busca de visão. tudo veio à tona. eu poderia me perder, enlouquecer, desistir. mas apenas respirei. e com essa experiência, passei a operar desde esse ponto mais interno, mais gravitacional, mais poderoso. não apenas por ser a origem das coisas, mas porque respirar e cultuar meu vazio me permite constantemente mudar, me recriar, tornar-me mim a serviço de outros. levou trinta anos, mas comecei do jeito que as coisas começam: vazias, com espaço, cheias de potencial.

“Silêncio não é a ausência de algo, mas a presença de tudo”
— Gordon Hempton

Foto da capa: arquivo de Ana C. G. Marques (autora). Local onde ela fez a busca de visão.

Ana C. G. Marques

Peregrina e aprendiz desde o útero, Ana C. G. Marques é uma artivista de atenção que desenha e ampara experiências regenerativas com seu projeto Santuários de Atenção. No MoL e na nōvi, Ana atua como tutora, designer e facilitadora de jornadas para culturas de aprendizagem maduras.

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