São Paulo se consolidou como um destino importante para o carnaval de rua. São centenas de blocos, exatamente 536, sendo que uns 532 passam em frente à porta da minha casa, um dos efeitos colaterais de morar no centro da maior cidade da América do Sul. Nesses dias, ninguém entra e ninguém sai, ou você ama, ou você odeia. Entendo a importância cultural, histórica, social, estética do carnaval, mas infelizmente faço parte dos que odeiam. Não se pode ler, ouvir música, ver um filme com sossego nesses dias, sem ser invadido por um “Maceta” da vida.

Há tempos, decidimos fugir do Carnaval em casa, que é invadida por gente com fantasia esquisita que se muda para lá, já que minha filha, obviamente, vai atrás do trio elétrico e minha casa vira uma espécie de esquenta. Os meus destinos sempre são bastante bizarros para a ocasião. Campinas foi um deles pelos últimos anos. Dessa vez, resolvemos radicalizar. Precisava me concentrar na última revisão do meu mais recente livro que, finalmente, vai para a gráfica. Não podia correr o risco de ziriguidum por perto.

Olhei minhas milhas, a Mariane olhou as dela e pensamos, qual lugar estaria vazio, mas ainda assim, contasse com uma boa estrutura para passarmos uma semana imersos em nossos projetos sem precisar ir para o meio do mato? Sugeri, baixinho, que tal Brasília? Confesso que aparentemente parecia uma escolha inocente e inconsciente, mas o tempo mostrou que eu estava errado. Brasília exemplificaria, de muitas formas, o oposto que trabalhara no meu livro. No fim, não pareceu ser por acaso essa escolha.

Amor e ódio

Como arquiteto e urbanista, fui ensinado a amar Brasília acima de todas as coisas e sempre que possível acender uma vela para Oscar Niemeyer, ainda em vida. Por sorte, também passei por professores mais críticos que me ajudaram a começar a questionar o modelo modernista que mais tarde seria destruído pela minha proximidade com o modelo de cidade para as pessoas de Gehl, Jacobs, Whyte, Kent entre tantos outros. Como todo arquiteto brasileiro, da minha geração, e pelo que pude perceber também das posteriores, fui formado em uma escola modernista, não existia outra opção, outro caminho, outra estética, outra abordagem, simples assim. Por muito tempo, me senti bastante sozinho ao criticar Brasília, gostava de provocar a audiência em palestras e aulas Brasil afora, ao dizer que Brasília não era uma cidade. Foi com o Jan Gehl que me deparei pela primeira vez, a “Síndrome de Brasília” cunhada por ele, dizia tudo aquilo que eu queria dizer, não estava mais sozinho.

Existe uma beleza na cidade, obviamente, aliás, é difícil não me emocionar com os edifícios de Oscar Niemeyer e com a arte de Athos Bulcão. Minha encrenca é com Lúcio Costa, autor do Masterplan de Brasília. Para os não-arquitetos, é importante lembrar que nossa capital federal é o melhor exemplo construído da Carta de Atenas, documento síntese do pensamento modernista na arquitetura, que entre outros equívocos, imaginava a vida das pessoas baseada num “homem-tipo” – um padrão estabelecido para todas as pessoas, um standard representado na figura do Modulor de Le Corbusier, arquiteto ícone do modernismo –, ou seja, uma ideia absurda de que o mundo todo era igual, que hoje soa uma aberração só ao ouvirmos o termo. Eficiência, esse parece ser o elemento central da cidade, e talvez seja por isso mesmo que a considere um centro administrativo mais do que uma cidade.

Futuro do pretérito e futuros plurais

Comecei a escrever esse texto no meu último dia de viagem, dentro de um quarto no Palace Hotel, o primeiro hotel de Brasília, um projeto cinematográfico de Niemeyer com a genialidade da arte de Bulcão presente nas paredes. Esse hotel fica no lago Paranoá, deslocado do eixo monumental, mais próximo ao Palácio da Alvorada. Ao entrar no hotel, hoje restaurado, é impossível não sentir uma sensação estranha, daquilo que o Brasil poderia ter sido, um país moderno, de arquitetura, arte e cultura pujantes, uma referência internacional. Numa rápida reflexão, me questiono, será que não fomos mesmo? Respondo rapidamente, sim, fomos, fomos um país do futuro do pretérito. Explico, fomos um país do futuro, o problema recai sobre o tipo de futuro que escolhemos. A ambição rodoviarista de JK não é segredo algum, o futuro modernista se baseava no automóvel, as pessoas andariam somente pequenas distâncias a pé, quando andassem. A questão central é que o futuro que Brasília projetava passou.

Hoje, os grandes centros urbanos se voltam para um pensamento mais voltado à cidade compacta, a ideia de viver, trabalhar, estudar, se divertir, tudo muito próximo. A eficiência deu lugar à convivência. A rigidez formal e funcional da capital federal nos enxerga mais como máquinas do que como pessoas, e essa mesma rigidez faz com que a cidade se mantenha praticamente imutável após mais de sessenta anos. Os espaços vazios não estão à espera de obras, são vazios mesmo, as calçadas não estão por construir, a cidade é de fato pensada para o carro, para a velocidade do automóvel que faz com que tudo pareça perto, mais uma ilusão de eficiência.

Essa mesma rigidez formal foi empregada no próprio conceito da cidade, uma cidade do futuro, de um específico futuro imaginado. Umas das primeiras lições quando nos aprofundamos nos estudos de futuros e seus desdobramentos é que não existe futuro singular, ou seja, não existe um único futuro, e sim um conjunto de futuros, seja lá qual for a nomenclatura que você use para categorizá-los. O próprio caráter da arquitetura e urbanismo, devido a sua materialidade, tendem a ser estáticos, pesados, e inevitavelmente ultrapassados, isso em qualquer cidade. Embora a arquitetura de Niemeyer mantenha-se impactante por gerações senão para sempre, a cidade muda, o mundo muda, nós mudamos, precisamos mudar.

Brasília não é só um exemplo de bela arquitetura e de um urbanismo datado e superado, é também, ou principalmente, a testemunha de que é preciso pensar e agir além de uma única visão de futuro vigente, é preciso pluralidade, dinamismo, adaptabilidade, muito mais do que previsão, ou então, teremos mais cidades (e países) que estarão fadados a um eterno sentimento, ora de um sucesso efêmero, ora de um profundo anacronismo.

Crédito da imagem: Brasília Retrofuturista, por Thiago Freitas

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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