Há 25 anos atrás, o grande sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017), lançou a ideia de que a modernidade estava se liquefazendo: uma época em que as relações sociais, econômicas e de produção eram frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Hoje, vivemos uma evaporação numa sociedade cada vez mais volátil, etérea e efêmera. Uma sociedade na qual nos vemos obrigados a levantarmos do chão para existir, enfrentando o desafio da exposição e do olhar dos outros.

O advento das redes sociais arquiva a modernidade líquida e inaugura a gasosa. Subir no ar é desafiador, inebriante, arriscado, desorientador e excitante. Essa é a premissa do sociólogo Francesco Morace, meu grande mestre e amigo, com quem empreendi no Brasil nos anos 2000 como pioneiros na pesquisa de tendências.

Em seu novo livro, Modernità Gassosa – Istruzioni di volo contro la síndrome del pallone gonfiato (Modernidade Gasosa – instruções de voo contra a síndrome do balão inflado), Morace propõe revistar o conceito de uma sociedade líquida, proposta por Bauman em 1999, trazendo um novo olhar sobre nosso contexto de mundo. “Com as redes sociais entramos na era do consumo de nós mesmos, não apenas de nossa imagem, mas também de uma existência que se pulveriza”, afirma o autor. “As pessoas ficarão mais exigentes por conta dos algoritmos mas também mais frustradas e insatisfeitas”, diz.

Mergulhamos nessa nova esfera de aceleração social, de pulverização da identidade, de relações mais fugazes e voláteis. Na liquidez de Bauman (Modernidade Líquida), podíamos nos afogar passivamente, oprimidos pela maré crescente de uma sociedade injusta e conformista, orientada para o consumo. Segundo o sociólogo, a sociedade da segunda metade do século XX em diante seria mais emancipada em relação às anteriores. contrastando com o da modernidade sólida, marcada pelo excesso de ordem, repressão, dureza e regulação. De uma modernidade com estruturas, regras, instituições sociais e comportamentos mais rígidos, inflexíveis e duros, cheios de certezas, passamos a uma sociedade mais livre, mais ligada aos seus próprios desejos e sonhos. Passamos a encarar a vida e as ações com mais liberdade, mais possibilidades de experimentação e menos amarras. A lógica do consumo deu lugar a lógica da moral, assim, as pessoas passaram a ser fortemente analisadas não pelo que eram, mas pelo que elas compravam. A ideia de compra adentrou as relações sociais, e as pessoas passavam a comprar afeto e atenção.

“Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”. – Bauman

Na modernidade gasosa, todos esses aspectos ficam intensificados. Nesta passagem do estado líquido para o estado gasoso, um adjetivo parece ilustrar muito bem essa nova condição: a volatilidade. O adjetivo volátil deriva do latim volatilis, e, segundo o Dicionário Michaelis significa:

1. Que voa, que tem a capacidade de voar; voador, voante;

2. Relativo às aves;

3. Pouco firme; inconstante, mudável, volúvel;

4. Que pode se reduzir a gás ou a vapor, sob temperaturas e pressões normais;

5. Que não tem matéria ou substância; impalpável.

Como vemos, o adjetivo volátil pode ser usado em diversos âmbitos referindo-se a fenômenos econômicos, científicos e sociais além de indicar aquilo que se transforma em vapor. Tomando o significado de volátil como a capacidade de voar, nota-se, segundo Morace, que “na modernidade gasosa, é preciso, elevar-se no ar, correndo o risco de cair no chão”. Na condição da modernidade volátil, o digital tem uma influência decisiva que atravessa o território do trabalho, do consumo, de nossas experiências cotidianas, das relações sociais e pessoais.

Estamos de fato no meio de uma metamorfose. As redes sociais permitem agora que qualquer um se mostre ao mundo: o céu está repleto de balões inflados, personagens que bombeiam seus egos – daí o subtítulo do livro “Instruzioni di volo contro la síndrome del pallone gonfiato” – Instruções de voo contra a síndrome dos balões inflados. Os balões, nessa metáfora, são os egos nas redes sociais, como na fábula “O Sapo e o Bio”, de Esopo. Na tal fábula, um sapo, cheio de inveja de um imponente boi, querendo se parecer com ele, começa a se estufar, se estufar e se estufar até o ponto em que estoura. Alguma semelhança com a realidade que conhecemos?

Multiplicam-se pessoas que, agora, através do digital, realizam seus sonhos do nada: jovens empreendedores, startupeiros, influenciadores, criadores, que voam ao céu da popularidade. Na modernidade líquida, tudo isso era impensável. Na condição gasosa, os voos estratosféricos tornam-se possíveis, para o bem ou para o mal.

“Se na modernidade sólida tínhamos uma febre de sucesso, na líquida a obsessão é pela fama e na modernidade gasosa, há um forte desejo por popularidade.” – Morace.

As coordenadas para agir e pensar mudam na nova modernidade. A evaporação aparece aqui como elemento central da nova dinâmica – das dinâmicas de trabalho, das relações e dos sentimentos.

Nas relações, por exemplo, com os aplicativos ou as redes sociais se tornando cada vez mais o ponto de partida das conexões, tem se popularizando o chamado “ghosting”: literalmente o desaparecimento repentino das pessoas do outro lado da tela. Acontece de uma forma inesperada, quando a conversa está fluindo e o outro some sem dar explicações. As relações não só escorrem como água por entre os dedos, mas de fato evaporam como gás, dissolvem-se!

O trabalho também sobre alterações. Se na modernidade sólida tínhamos estabilidade, na líquida transformamos a maneira de trabalhar com modelos mais flexíveis. Já na condição gasosa, o trabalho torna-se volátil. Trabalhos desmaterializam-se, empregos evaporam. Evaporam-se nos modelos de home office, nas webconferência, nas mensagens de whatsapp, nas artimanhas da AI como novo instrumento de trabalho.

Com a informação não é diferente, passamos de informações blindadas por determinadas fontes a um território das fake news e agora com os algoritmos passamos a viver um cenário no qual a privacidade também se evapora. A IA conhece nossos desejos, nossas vontades, nossos hábitos.

Estas são as dez dinâmicas gasosas:

1- Aceleração social: a aceleração das dinâmicas sociais, são ainda mais intensas que na modernidade líquida. As mudanças acontecem em um ritmo cada vez mais rápido, em alta velocidade de transformação social. Vivemos verdadeiras tempestades, e percebemos que em pouco tempo, hábitos e certezas podem ser substituídos por novas formas de conceber a vida e o mundo que nos rodeia.

2- Pulverização da identidade: As identidades individuais tornam-se ainda mais fluídas e mutantes. As pessoas experimentam e adotam diversas identidades em relação ao mundo físico e digital. As redes sociais nos permitem mostrar ainda que apenas um de nossos lados, o profissional, o familiar, o lúdico ou o muito sério, mas também, existe um outro lado da moeda, no qual podemos  “inventar” outros lados, iludindo-nos a acreditar que somos “novos”.

3- Volatilização e Transição: as conexões sociais e as relações tornam-se ainda mais fugazes e imprevisíveis. As pessoas se encontram e se separam rapidamente, formando redes sociais transitórias.

4- Pressão Digital: a modernidade gasosa é profundamente influenciada pelas tecnologias digitais e pela conectividade como condição. As plataformas digitais e os dispositivos móveis são difundidos e exercem uma pressão irresistível. Algoritmos cada vez mais refinados pesquisam nossas histórias e descobrem gostos e prazeres, oferecendo-se em nosso caminho virtual. A capacidade da IA ​​de coletar bilhões de informações, organizá-las e sintetizá-las é capaz de nos oferecer um vislumbre às vezes irresistível da realidade.

5- Autonomia Radical: O indivíduo passa a ter um papel central que, na modernidade líquida não podia exercitar. A liberdade pessoal aumenta, como também o potencial de perda

6- Complexidade enredada: A modernidade gasosa traz um aumento da complexidade social. As instruções tradicionais tornam-se menos relevantes e as dinâmicas sociais se desenvolvem dentro de redes complexas e interconectadas

7- Conflitos Cruzados: a modernidade gasosa coloca em evidência o encontro/desencontro das identidades e das experiências sociais. As pessoas são influenciadas por uma multiplicidade de fatores sociais, culturais e psicológicos dos quais não tem controle

8- Mobilidade e mobilização: a modernidade gasosa é caracterizadas por uma intensificação da mobilidade social mas também das desigualdades crescentes. As influências culturais misturam-se globalmente, com os algoritmos a desempenhando um papel decisivo. As tendências ganham alcance global, assim como as questões sociais, mas também navegamos num mundo de notícias falsas, onde o algoritmo se apodera e envolve o usuário numa rede de conteúdos falsos, confirmando e alimentando instâncias que se afastam da realidade.

9- Presentificação do Consumo: a modernidade gasosa é permeada de dinâmicas consumidoras cada vez mais rápidas e voláteis, portanto menos determinantes. As tendências e os gostos mudam rapidamente, criando uma cultura de um presente sem um amanhã

10- Precarização da Existência:  a modernidade gasosa aumenta a incerteza e a precariedade das condições de vida. As pessoas se encontram “suspensas” em um ambiente social pulverizado, sem pontos de referência estáveis.

Como orientar-se então em um mundo onde tudo parece aleatório e volátil? Como se conectar à realidade sem perder as oportunidades oferecidas pela tecnologia? Como escapar da tal “síndrome do ego inflado”?  O autor nos dá algumas dicas sobre esta nova forma de estar no mundo. “A nova modernidade é condicionada, moldada pelas redes sociais e pela inteligência artificial e expressa-se nas quatro dimensões que caracterizam a contemporaneidade: evaporação, suspensão, contaminação, explosividade. A hipótese é que na transição do líquido para o gasoso, novas oportunidades se abrem para a comunicação (incluindo a comunicação corporativa), mas colocam-se também novas questões críticas”.

Penso que será dentro de nós mesmo, como seres humanos encarnados nessa realidade, que podemos encontrar uma forma de escapar do domínio das tecnologias sem subestimar suas imensas vantagens.

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Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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