Venho sistematicamente escrevendo nesse espaço sobre a questão urbana e inevitavelmente sobre o futuro das cidades. Hoje, a pedidos, farei algo um pouco diferente. Refletirei sobre como poderiam ser as cidades no futuro.

Com meus dotes limitadíssimos de futurista, especialidade da qual tenho enorme simpatia e o prazer de uma interlocução com experts, deixarei os carros voadores autônomos, cyber humanos e metaverso para eles e me prenderei às questões urbanas e, por que não, mundanas (se bem que do famigerado metaverso eu serei obrigado a falar).

Muito provavelmente a cidade do futuro já começou a ser desenhada ao enfrentarmos a pandemia da covid-19, pelo menos como ela seria diante de um momento de ruptura como vivemos a partir de 2020.

Não é preciso grande pesquisa para, rapidamente, pensarmos em modelos de cidades que um dia foram “do futuro”. Vale lembrar que um modelo de cidade, é, na verdade, um modelo de sociedade, ou pelo menos deveria refletir seus anseios e necessidades.

 O futuro já foi o verde das “cidades-jardim” de Howard no final do século XIX; o progresso da “cidade moderna” da Carta de Atenas, de Le Corbusier e Cia; e, agora, parece ser o tal metaverso, muito bem descrito por Stephenson no romance cyber-punk Snow Crash de 1992 e ainda um tanto superficialmente explicado por Mr.Mark na empresa agora chamada, vejam só, Meta.

Se você, leitor e leitora, já se deparou com algum dos meus textos, sabe o quanto me preocupa a ideia de um mundo das máquinas, como uma mistura de Matrix com o robô Sophia e sua ironia assustadora, envoltos numa ideia aterrorizante onde a tecnologia sobrepuja a humanidade ao invés de trabalhar com ela. Na verdade acho que esse meu imaginário se formou quando vi Tron ( por favor, a primeira versão), depois Jogos de Guerra e muito mais recentemente se consolidou quando a inteligência artificial Alpha Go deu uma surra em um campeão humano no jogo que até então era dominado pelo “touch” e não pelo “tech”. O ano era 2016, tudo bem, foi ontem, mas lembre-se, o jogo chinês “Go” é, ou era, considerado um dos mais complexos do mundo. O xadrez já estava dominado por nossos pares biônicos desde 1997.

Por isso, é inevitável que, ao pensar na cidade do futuro, eu imagine, automaticamente, um lugar distópico, cyber-punk ao melhor estilo “Ghost in the Shell”, embora ultimamente esse lugar do futuro imagético esteja mais para “O Livro de Eli”. Enquanto o primeiro se passa numa Tóquio do futuro, repleta de humanos com implantes biônicos, o segundo se passa num cenário onde a escassez de água e comida determinam as relações de poder.

Evidentemente não sou contra a tecnologia, muito pelo contrário, ela está tão à minha volta quanto à sua volta, quando não, dentro de nós mesmos. Ainda assim, a enxergo como meio, como veículo de algo que é essencial hoje, que nos foi lembrado a duras penas pelos lockdowns da vida, na mesma medida que será no futuro, a vida em comunidade.

Desde os tempos imemoriais procuramos o sentido da vida, na religião, na ciência, nas artes. Atualmente, procuramos uma vida com sentido nos lugares que habitamos, mais precisamente nas cidades. A inserção na vida comunitária ativa parece ser um dos caminhos para essa significância. Termos identificação com o grupo onde estamos inseridos é o primeiro passo para nos identificarmos com o lugar onde vivemos. Lembremos da geografia humanista mais uma vez.

É importante qualificar essa vida em comunidade. Não me refiro à vida coletiva das reuniões de condomínio ou da escola dos filhos, ainda que obviamente elas façam parte, muitas vezes por obrigação, de nossa rotina, mas sim, da vida coletiva estritamente opcional, a padaria que se frequenta, a loja da esquina, o restaurante do almoço cotidiano, a relação que se estabelece entre funcionários, donos e clientes, uma comunidade muitas vezes informal, formada por pessoas que, nem sempre, moram no mesmo lugar, mas que certamente frequentam o mesmo lugar.

A micro dinâmica local. (Ilustração: Celyn Brazier)

A fila do pão na padaria hipster, enquanto observo as figuras saídas da novela Dancing Days, a escolha do vinho orgânico na loja ainda mais hipster que a padaria, que fica do outro lado da rua, a balada modernete, o restaurante indiano-vegano-descolex, são alguns dos exemplos reais do meu bairro. Esse velho que vos escreve se enquadra nesse cenário? Provavelmente não, embora minha barba, já meio (ou quase) branca, me autorize a pertencer. O fato é que me identifico com essa diversidade, essa vibração, mesmo que muitas vezes me sinta num esquete do Porta dos Fundos zombando os paulistanos.

Esta micro dinâmica local me parece o futuro das cidades, não por estar na moda com a cidade parisisense de 15 minutos, mas justamente por ser mais antiga do que qualquer outra forma de organização urbana que conhecemos.

A cidade do futuro é a cidade do passado na sua versão 2.0

Segundo o Jan Gehl, um dos autores que moldaram a minha visão de mundo urbano, nós esquecemos como fazer cidades para pessoas. Estamos presos numa espécie do dia da marmota numa visão retro-futurista de progresso ligado inicialmente a uma visão tecnológica de um mundo autocêntrico e às maravilhas da velocidade, e, mais recentemente, a uma visão digital de metaverso. Enquanto a primeira visão nos desterritorializava, a segunda nos desmaterializa.

No meu livro Cidade Antifrágil abordo, entre outras coisas, da necessidade da vitalidade comunitária relacionada ao comércio local, que podemos chamar de micro centralidade e sobre a importância da micro escala, que chamei de escala humana. Muito já foi escrito sobre a importância da escala humana na arquitetura, especialmente nos textos críticos ao urbanismo modernista, que para os brasileiros responde pelo nome de Brasília. Falou-se muito da escala na forma, na tipologia, no desenho urbano. Chamo a atenção especial para a escala humana nas relações pessoais e de poder.

Na esfera das relações pessoais a coisa fica extremamente simples de ser exemplificada: dos milhares de “amigos” que você ostenta nas redes sociais, quantos deles você realmente conhece? Com quantos você interage de forma consistente além de mandar parabéns quando a plataforma lembra a data? Ou, nas esferas de poder, quem você acha que sabe mais sobre as suas necessidades, o governo municipal (através de uma subprefeitura por exemplo) ou o governo federal?

O ponto aqui é a proximidade com o problema e a solução, a quantidade de intermediários e níveis hierárquicos, e a dimensão do universo de preocupação. Proximidade com o outro é também um caminho para uma melhor gestão urbana.

Escrevi em algum artigo, no passado recente, sobre uma ideia que tive logo após o lançamento do Cidade Antifrágil, ainda no meio da loucura dos dias sombrios da pandemia. Enquanto o prefixo pandêmico era o “DES”, o pós-pandêmico seria o “CO”. Se a pandemia causou desterritorialização, desmaterialização, desconhecimento e desespero, o próximo passo na nossa evolução enquanto sociedade me parecia a convivência, coexistência, colaboração e cocriação, ainda que todo esse “co” seja limitado por uma pequena escala, uma vez que as esferas de decisão, de vitalidade comunitária tendem a ser menores levando em conta a escala humana ou micro escala.

Essa organização compartilhada e de pequena escala, pode, inclusive, nos remeter a uma outra ideia do passado, as “cidades-estado”. Numa escala de antifragilidade, e portanto, de dinamismo e adaptabilidade, podemos imaginar que uma cidade é mais resiliente do que um estado que, por sua vez, é mais resiliente do que um país, em grande parte pela proximidade com os problemas e a maior capacidade de adaptação e evolução. Podemos fazer um paralelo óbvio com as startups que têm muito maior capacidade de adaptabilidade e mudança de rota do que os grandes conglomerados multinacionais.

Comunidades vibrantes. (Ilustração: Celyn Brazier)

Colaboração, convivência, pequenas escalas de poder compartilhado, comunidades vibrantes viabilizadas e interligadas pela tecnologia contemporânea me parecem ser o modelo de cidades do futuro. Essa tecnologia pode inclusive desmaterializar a ideia de cidade como conhecemos, não como o metaverso, mas com experiências e encontros não necessariamente ligados ao território físico, mas uma conexão por identidade e por significado mesmo que o grupo esteja espalhado em diferentes continentes.

Mas a pergunta que fica é, se tirarmos a tecnologia contemporânea da equação o que nos resta? Acertou quem disse as cidades antigas.

Ilustração da capa: Celyn Brazier

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Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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