Pessoas nas ruas, ocupação dos espaços públicos, retomadas dos centros urbanos, vida comunitária. Há algum tempo venho dizendo, com bastante segurança, que a cidade, o urbano, é o representante do Zeitgeist nesse começo de século.

Pra quem não lembra, o alemão dito cujo também é conhecido como “espírito do tempo”, algo que, num conjunto intelectual, social e cultural, representa um determinado período histórico.

Olho pela minha janela, no centro da maior cidade da América do Sul, e vejo tudo, absolutamente tudo, menos pessoas nas ruas, ocupação dos espaços públicos, retomadas dos centros urbanos, vida comunitária.

Não vejo ninguém, nunca, em nenhum horário. Vez ou outra sou surpreendido pelo barulho do escapamento furado de alguma moto de algum entregador, que também passa cada vez menos, ou talvez tenham sido substituídos por ciclistas, quem sabe.

A praça da República, importante ponto de encontro de office boys, moradores de rua, advogados, arquitetos, trabalhadores de telemarketing, auxiliares administrativos, vez ou outra de turistas, e sempre de todos os tipos de hipsters, hoje, pela nesga da minha janela, parece saída de um filme distópico.

Hoje é domingo, dia de feirinha, de movimento, de turistas, de fila quilométrica no rodízio do Almanara art déco, de gente se entupindo pra ver o cartaz em tamanho natural do Olivier Anquier convidando pra entrar em sua padaria descolada, de fila desde o almoço para conseguir um lugar no jantar na Dona Onça, na Casa do Porco, dia de sambão na praça Dom José Gaspar, de balada-rave-modernete no Paribar. Não, Oliviers, Janaínas, Jefersons, Luíses, todos estão em casa, fechados, assim como eu, provavelmente pensando que diabos acontecerá a seguir e muito longe de ter uma resposta plausível.

Será que a pandemia mudará nossa forma de nos relacionar com o espaço-público?

Essa é uma das tantas perguntas que ocupam o meu tempo entre um livro e outro, uma série e outra, uma reunião e outra, na tentativa de levar uma vida minimamente normal.

Uma coisa é certa, e uma certeza já é grande coisa: o mundo virou um grande Não-Lugar. Não-lugar é um conceito do antropólogo francês Marc Augé. Não lugares não possuem características simbólicas suficientes para serem considerados lugares, mas ao mesmo tempo, representa algum nível de relação funcional a ponto de não se caracterizarem espaços. Vale lembrar a diferença entre espaços e lugares, que como já vimos, não são a mesma coisa. Minha leitura para o texto clássico de Tuan é que os lugares são espaços dotados de significado pelas pessoas, logo, sem pessoas, sem significado; sem significado, sem lugar.

O planeta virou um cenário. Pode-se enxergar, pela TV e internet, lugares que as hordas de turistas antes não deixavam. Deu até pra ver a cor da água de Veneza. Nessa paisagem, linda, nada acontece, nada vive, nada mais significa o que significara outrora.

Nosso mundo se voltou para nossa casa- bunker- refúgio.

A casa se tornou espaço-público e privado, num limite invisível, possibilitado como nunca pela tecnologia. Reuniões foram feitas via plataforma digital, turmas se encontraram para bater papo e beber virtualmente, até orquestras deram concertos, cada um da tranquilidade de sua casa.

A desmaterialização do trabalho não é tema recente, mas ele nunca teve tão em pauta como agora. Será que as empresas manterão seus escritórios gigantes, seus horários fixos, suas centenas de reuniões presenciais? Não dá pra saber. O que se sabe é que o movimento nômade-digital tomou uma outra proporção, não mais por podermos estar em todos os lugares e produzindo, mas por nos proporcionar não estar em lugar nenhum que não seja a nossa casa, ou seja, vivemos um anti-nomadismo, ainda que digital.

O mundo se tornou a nossa casa, e nossa casa, por sua vez, o centro do mundo.

Isso nos deixa diante de uma encruzilhada, será que sentimos tanta falta assim um dos outros a ponto de todos irmos pra rua e nos abraçarmos quando tudo isso acabar, voltarmos a ocupar os cafés na calçada, movimentar o comércio de rua, andar, andar e andar pela cidade?

Minha suspeita é que sim, e que nunca daremos tanto valor a isso quanto num futuro próximo.

Caso contrário voltaríamos ao século XIX, onde a revolução industrial amontoou trabalhadores próximos as fábricas, aumentando drasticamente a densidade de cidades como Londres, sem as condições tecnológicas (sanitárias) para isso, criando a ideia, vigente por mais de um século, de que a “cidade” era o mal, o lugar da doença, e que o paraíso estaria nos subúrbios, na natureza edílica, mais longe possível do caos das cidades.

Esse século veio nos mostrando, até agora pelo menos, que a felicidade está relacionada com a convivência, com a possibilidade dos encontros, do tempo gasto com aquilo que nos importa. Mesmo condomínios afastados começaram a se comportar como centralidades, inevitavelmente, uma vez que mesmo diante da vontade de se viver na “natureza”, a conveniência e a convivência gerada pelos centros urbanos não é algo a se sacrificar.

Começamos a trocar home theaters sofisticados pelos escassos cinemas de rua, condomínios- clube por uma corrida no parque público, o carro individual pelo transporte compartilhado, até o tamanho das nossas casas mudou drasticamente. Diminuiu e diminuiu, ficou menor que a vaga para nosso carro, e nós lidamos bem com isso. Entendemos que a experiência urbana dos grandes centros era infinitamente mais interessante que a nossa mera e tediosa vida privada. Pelo menos até o mês passado.

A comunidade não é mais uma questão territorial.

Não somos mais definidos pela praça que ocupamos. ­Recentemente, numa aula de pós-graduação, um aluno me perguntou se a web não seria um lugar. Na hora hesitei, e hoje respondo, com segurança. Sim, pode ser um lugar, dependendo do uso que se faz dela.

Se as nossas relações comunitárias sempre foram baseadas em características identitárias/culturais, o próprio conceito de territorialização se desfez. Não é preciso estar num mesmo ambiente para se relacionar com “os seus”, nem na mesma cidade, nem no mesmo país.

As comunidades se tornaram virtuais, bem antes do sucesso de Zooms e Hangouts da vida. Nos relacionamos com aqueles com os quais nos identificamos, independente de onde eles estiverem. Essa rede comunitária invisível ficou evidente nesses últimos dias. Meu palpite é que continuaremos a nos encontrar fisicamente, em lugares de identificação, aqueles onde nos sentimos “em casa”, aliás a própria ideia de sentir-se  “em casa” nunca foi tão relevante, mas isso não negará a tecnologia.

Aliás, e aqui não tem como não citar o Naisbitt e o Piazza, na leitura que quanto mais tech formos mais touch seremos, cada vez mais a nossa própria ideia de comunidade dependerá da tecnologia. Sociedades digitais já estão em andamento, nesse caso com o protagonismo da pequena Estônia, onde hoje, graças a um sistema tecnológico robusto, só existem dois documentos impressos em papel e todo o resto, toda a irritante burocracia cotidiana pode ser resolvida digitalmente, e com isso, sobra mais tempo pro que realmente importa.

A lição da Estônia também é semântica. Percebam que eles se comportam como uma “digital nation” e não “smart nation”. Ao mesmo tempo que a tecnologia embarca inteligência, a inteligência não se limita a tecnologia.

Mais uma vez é fácil concluir que tecnologia e humanidade estão inevitavelmente ligadas, o comportamento de uma impacta na outra, até porque, mais do que inteligentes, todos querem ser felizes, seja correndo nas praças e parques, seja dentro de casa.

Crédito da ilustração da capa: Kyu Tae Lee

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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