Ontem, Domenico de Masi se foi. Um dos mais influentes pensadores do final do século XX, autor de mais de 20 livros e criador do conceito “ócio criativo” – que seria a junção de trabalho, aprendizado e lazer ao mesmo tempo. Para ele, tempo livre é o que promove a felicidade em qualquer profissão.

Em seu último livro, O Trabalho no Século XXI, reconhece que, com o uso da inteligência artificial (IA), iremos trabalhar cada vez menos e estaremos livres para as atividades propriamente “humanas”. Para ele, a evolução humana caminharia em direção à libertação do esforço físico, primeiro, e do esforço intelectual, depois. Porém, nos relembra que, cada vez que uma nova etapa tecnológica possibilita transferir o trabalho humano para máquinas mais sofisticadas e potentes, o desemprego eclode.

Agora, essa nova etapa tecnológica chama-se inteligência artificial. Estejamos preparados ou não, ela caminha para ocupar a maior parte na nossa vida profissional, com potencial para mudar a feição do trabalho.

A consultoria McKinsey prevê que a IA generativa irá automatizar tarefas que tomam 60% a 70% do nosso tempo. Uma pesquisa da OpenAI, criadora do ChatGPT, estima que 80% dos empregos possam incorporar capacidades generativas de IA em atividades realizadas hoje. A Goldman Sachs calcula que ferramentas como DALL-E e ChatGPT poderiam automatizar o equivalente a 300 milhões de empregos em tempo integral.

Pelo fato da IA generativa ser capaz de processar a linguagem natural – a qual usamos cerca de um quarto do tempo durante o trabalho – não só impactará trabalhadores braçais com atividades repetitivas, mas também profissionais do conhecimento – aqueles com salários e nível educacional mais elevados.

Em compensação, novos trabalhos e profissões serão criados, exigindo outros tipos de competências. Só não dá para comparar essa tecnologia, como muitos fazem, com o surgimento da internet. “Pô, uma coisa é a infraestrutura que criou possibilidades para os humanos criarem. Outra coisa é um treco que começa a criar no nosso lugar”, diz Diogo Cortiz, PhD e cientista cognitivo.

Ao conversar com lideranças de RH, percebo a ansiedade. Não apenas pelo fato de já existir uma certa pressão para se tornarem um RH mais ágil e estratégico com uso da IA e de dados, mas porque todos têm consciência de que precisarão, mais cedo ou mais tarde, se interligarem ainda mais à ela.

Mesmo com todos os desafios e problemas que essa tecnologia carrega – discriminação, vieses, deslocamento de funções e concentração de poder – e dos riscos de desinformação, manipulação, falta de transparência, de privacidade, de segurança e de ética, ela está sendo implementada em um ritmo veloz.

Em um benchmarking realizado pela Gartner, em junho, 52% das lideranças de RH presentes afirmaram que já estavam mapeando possíveis usos e oportunidades em IA generativa; e 76% acreditam que, se a sua empresa deixar para implementar daqui 12 a 24 meses, “perderão o bonde”.

Um relatório da Eightfold.ai aponta que a maioria das lideranças de RH participantes do seu estudo já está usando a IA na gestão de registros de funcionários (78%), processamento da folha de pagamento e gestão de benefícios (77%), recrutamento e contratação (73%), gestão de desempenho (72%) e integração da força de trabalho (69%).

Não dá para levar o gênio de volta à lâmpada. É preciso lidar com tudo isso e saber “como” dar passos seguros nesse novo e desconhecido território.

Será que com a IA, as já tão sobrecarregadas áreas de RH poderão enfim, respirar um pouco mais?

Se sim, será que automatizando tarefas repetitivas e aumentando sua capacidade operacional, o tempo liberado poderia ser usado para melhorar a experiência de trabalho dos colaboradores?

“Com o aumento da produtividade, a relação entre o tempo de trabalho e o tempo livre mudou, em favor deste último.” – Domenico de Masi 

Em seu último livro, Domenico alertou que precisamos educar os jovens e reeducar os adultos para que aprendam a “dar sentido e valor ao tempo livre, enriquecendo-o de introspecção, criatividade e convívio.” Como então, o RH utilizando a IA, poderia dar ainda mais sentido e valor ao seu tempo livre?

Pelo lado humanístico, pra mim sem dúvida, um dos principais sentidos seria aumentar o sentimento de pertencimento dos colaboradores. As pessoas querem cada vez mais trabalhar para a sua autorrealização e satisfação pessoal, e o sentimento de pertença é fundamental pra que isso aconteça. A sensação de exclusão pode até doer fisicamente!

O sentimento de pertencimento tem impacto no bem-estar e na saúde mental. Diversos estudos mostram que profissionais que se sentem confortáveis no trabalho, sendo tratados de forma justa, respeitados, ouvidos e valorizados, sentem-se à vontade para trazer seu eu autêntico, têm relacionamentos mais significativos com os colegas e lideranças, estão mais conectados e engajados aos objetivos da organização, o que contribui para alcançar resultados mais significativos.

O pertencimento é uma necessidade humana e promove a felicidade. “Uma empresa que não é feliz é uma empresa destinada a falir!”, disse Domenico na abertura do II Global Learning Forum, promovido pela ABRH Brasil, em 2020.

Então, como o RH poderia usar seu “suposto” tempo livre para criar espaços mais pertencentes e relações mais humanizadas?

Em primeiro lugar, obviamente, seria criando ambientes de trabalho psicologicamente seguros, onde pessoas se sentem seguras em assumir riscos, dar asas à imaginação para propor novas soluções e se mostrarem vulneráveis quando se sentirem assim.

Acredito também que dando voz aos colaboradores, incentivando-os a falar, escrever e compartilhar suas ideias. É essencial perguntar continuamente a eles o que o RH poderia fazer para potencializar esse sentimento de pertencimento. Se alguém raramente fala, como essa pessoa poderia se sentir mais incluída e pertencente?

Escuta ativa e atenção que hoje é o novo petróleo. Atenção leva à empatia e à inclusão. É a forma mais rara e pura de generosidade que um líder pode oferecer. As pessoas precisam sentir que são ouvidas e que têm o poder de provocar mudanças quando acreditam ser necessário.

Criando comunidades. Por exemplo, pessoas mais introspectivas podem ter um lugar seguro para compartilhar suas histórias e suas experiências e trocar com seus colegas sugestões para lidar melhor com os desafios. Uma comunidade, mesmo que pequena, têm força para impulsionar transformações, especialmente quando o sistema não funciona para todos.

RH já pode usar a IA para ter mais tempo livre? Vamos conferir!

Recrutamento e seleção

A IA chega com a promessa de melhorar a eficiência da busca, triagem e seleção de candidatos, reduzindo tempo e esforço. Com capacidade de analisar grandes volumes de dados, consegue identificar habilidades e competências que podem passar despercebidas por recrutadores humanos.

Equipes homogêneas, sem nenhuma diversidade, muitas vezes são resultado de vieses inconscientes nos processos seletivos convencionais, levando a decisões, algumas vezes, injustas. Mas usar a IA garante a imparcialidade?

Não garante, pois os algoritmos não são isentos de preconceitos e vieses. Aqui mesmo no Brasil, foi noticiado o caso de uma plataforma de IA de uma empresa HR Tech que estaria discriminando mulheres, idosos e faculdades populares em processos seletivos na busca por emprego.

Uma pesquisa realizada pela Harvard Business School descobriu que 88% das lideranças de RH perceberam que as soluções de IA estavam rejeitando candidatos bem qualificados, apenas porque careciam de algumas competências dentre uma longa lista de qualificações; também viram os algoritmos rejeitar candidatos que tinham maiores lacunas entre os empregos, sem conhecerem o contexto da situação.

Especialistas alertam que se a IA não for monitorada e controlada, pode criar práticas de contratação discriminatórias e fazer com que as organizações percam candidatos qualificados ou de elevado potencial. A supervisão humana é crucial para processos de recrutamento e seleção.

Já a IA generativa, como o ChatGPT, pode ajudar a criar anúncios de vagas descrevendo com maior clareza e imparcialidade os papéis e requisitos para ela. É fácil vermos anúncios de vagas com linguagem tendenciosa ou preconceitos implícitos – vejo alguns assim no LinkedIn – o que inibem as candidaturas de grupos tradicionalmente marginalizados.

Com a ajuda inicial da IA generativa na criação dos textos, a seleção pode ser mais certeira às necessidades da vaga. Isso não quer dizer que não será preciso revisar o texto e editar dando um “toque mais humano”.

IA para “recrutamento e seleção” libera tempo para outras atividades? Para criar anúncios de vagas pode economizar tempo. Mas a etapa da seleção exige monitoramento. O risco de algoritmos tendenciosos pode levar a um resultado injusto e sem equidade.

Gestão de aprendizagem

Com a crescente automação, um dos maiores desafios das organizações passa a ser o desenvolvimento contínuo de sua força de trabalho, seja aprimorando habilidades (upskilling) ou desenvolvendo novas capacidades (reskilling). Novamente, esse esforço tem que ser contínuo, basta ver o relatório Future of Jobs 2023, do Fórum Econômico Mundial, que aponta que 44% das habilidades que qualquer profissional possua hoje estarão desatualizadas nos próximos três anos!

As funções analíticas preditivas da IA conseguem identificar onde um funcionário está tendo maior dificuldade e esforço e recomendar uma capacitação personalizada, com base em análises de desempenho e de engajamento. Isso possibilita que o RH direcione a experiência de aprendizagem e que acompanhe a evolução do aprendizado.

Lembrando que a adoção da IA exige uma força de trabalho com proficiência digital e alfabetização algorítmica. Organizações que investirem no desenvolvimento dessas competências tecnológicas se manterão relevantes e competitivas, incentivando também os colaboradores a se manterem relevantes.

IA para “gestão de aprendizagem” libera tempo para outras atividades? Sim e cria tempo para uma gestão mais eficiente.

Retenção de talentos

Reter talentos depende o quanto as pessoas sentem-se pertencentes, engajadas e também conectadas ao propósito da empresa. Dito isso, ferramentas confiáveis de IA podem combinar a análise de sentimentos com dados reais de colaboração para avaliar o engajamento e o bem-estar, oferecendo métricas precisas em tempo real e sugerindo soluções focadas para o bem-estar daquela pessoa.

Com a análise preditiva, ferramentas de IA conseguem identificar riscos potenciais na retenção de funcionários, o que ajuda o RH a agir proativamente em situações de insatisfação, instabilidade e insegurança.

Funções analíticas, como análises de opiniões, podem identificar como um colaborador está se sentindo e prever riscos de burnout, depressão e ansiedade, possibilitando um suporte rápido e personalizado.

IA para “retenção de talentos” libera tempo para outras atividades? Sim, cria tempo para suporte e humanização.

Gestão de talentos humanos (TH) e contratações

O RH tem o papel de apoiar lideranças e gerentes a desenvolver seus times e talentos, criando planos de capacitação que melhor atendam às necessidades individuais e organizacionais.

Além de um planejamento personalizado e de avaliações de desempenho, a IA consegue identificar lacunas para poder elaborar o planejamento de contratação. Analisando as atuais competências dos colaboradores, as tendências do setor, os planos de crescimento da empresa e outros dados, pode prever quais funções deverão ser preenchidas. Isto permite que o RH se planeje com antecedência.

IA para “gestão de talentos humanos e contratações” libera tempo para outras atividades? Sim, cria tempo para suporte e humanização.

RH precisa de apoio

RH não fará tudo sozinha. A área precisará de apoio e ser proativa na compreensão e aplicação da IA. A Gartner recomenda três etapas:

na primeira etapa, a Liderança Tecnológica – ao lado de especialistas de TI, de IA, de Dados e da área Jurídica –, buscará compreender potenciais usos da tecnologia, reportando à Liderança de RH;

a segunda etapa já envolve a Liderança de RH, que, compreendendo os potenciais benefícios da IA, alinhará os possíveis usos aos objetivos organizacionais;

e a terceira etapa seria avaliar e pontuar as soluções de IA em relação aos principais critérios e resultados esperados para decidir se a adoção deve prosseguir ou não. Cada organização tem seus critérios, mas alguns dos principais são: governança, T&D, diversidade e ética.

Baixa confiança em decisões algorítmicas

As pessoas podem ter resistência para confiar nas decisões da IA – um fenômeno conhecido como aversão aos algoritmos. Algumas pesquisas já entenderam o que faz elas desconfiarem: primeiro, porque não compreendem como a IA funciona, em segundo, porque tira-lhes o controle das decisões e em terceiro, porque consideram as decisões algorítmicas como impessoais, reducionistas e menos justas comparadas às decisões humanas.

Pesquisas sugerem que quando as pessoas sentem que têm algum controle, mesmo que mínimo, sobre a decisão algorítmica, ficam menos avessas. Decidir cuidadosamente quais decisões sobre gestão de talentos devem ser informadas pela IA, bem como determinar como os profissionais de RH podem cocriar soluções trabalhando com recomendações da IA, será fundamental para a confiança nessa tecnologia.

Embora seja possível eliminar vieses dos algoritmos na tomada de decisões, eles podem não ser totalmente isentos de preconceitos, porque são sistemas treinados usando conjuntos de dados já existentes, o que pode refletir preconceitos históricos. Dada a vulnerabilidade da IA ao preconceito, as aplicações dela na gestão de talentos podem produzir resultados que violam códigos e valores organizacionais.

Uma estratégia para mitigar riscos seria a criação de processos internos que reflitam como a organização definiria justiça e equidade aos resultados algorítmicos, embutindo neles variáveis como gênero e raça e definindo diferentes critérios para diferentes grupos, a fim de banir preconceitos pré-existentes. Além disso, estabelecer padrões sobre como as decisões da IA devem ser transparentes e explicáveis.

Quanto à aversão, nada que a alfabetização algorítmica não possa amenizar ou mesmo eliminar. Lideranças que utilizam a IA para a gestão de talentos e tomada de decisões precisam ter alfabetização estatística e letramento de dados para se sentirem confiantes na interpretação das recomendações algorítmicas.

Levando em conta todos estes desafios, as lideranças devem avaliar criteriosamente as ferramentas de IA. A gestão pode se tornar mais ágil, mais fácil e mais justa, mas não é tão simples.

Voltando à Domenico de Masi, ele acreditava que esse momento que estamos vivendo pode ser “um momento mágico em que podemos recuperar a importância do que é qualitativo, coisas como gentileza e delicadeza, criatividade e cultura, que as máquinas nunca poderão nos dar.”

RH será uma área cada vez mais importante para que as pessoas tenham uma relação mais humana e prazerosa com o trabalho.

Imagem da capa: Paulo Setúbal

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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