É possível ter mais de uma identidade? Essa é uma questão filosófica pertinente para nossas escolhas e para a forma como interagimos com o mundo.

Quem eu sou?

Tenho vários “eus”. “Eus” do passado que se conectam com o meu presente. “Eus” do presente que irão, de alguma forma, se conectar com o meu futuro. Há alguns “eus” do passado que quero esquecer. Existem alguns “eus” que faço questão de destacar quando estou em determinados grupos. E alguns “eus” que quero desenvolver melhor daqui pra frente. 

Há muito tempo, filósofos e psicólogos andam investigando o self (eu). Algumas abordagens o enquadram como dualismo mente e corpo de René Descartes. Uma abordagem amplamente aceita é a visão de sua continuidade psicológica, onde o self é uma consciência com autoconsciência e memórias pessoais.

Assim como os selfs têm diferentes memórias pessoais e autoconsciência, eles podem ter diferentes relações sociais e interpessoais e diferentes backgrounds culturais, distinguindo quem você é.

“Alguns filósofos são contra abordagens reducionistas e defendem uma estrutura que reconheça a complexidade e a multidimensionalidade das pessoas”, diz Kathleen Wallace, autora de The Network Self: Relation, Process, and Personal Identity (2019). Ela é professora de filosofia na Hofstra University (Nova York) e trabalha com ética e metafísica da identidade pessoal.

Kathleen explica que a network (rede) do self emerge justamente dessa complexidade e multidimensionalidade. “As identidades sociais são traços seja em virtude de pertencer a diferentes comunidades (profissional, étnica, religiosa, política, local) ou em virtude de categorias sociais (raça, gênero, classe, afiliação política) ou das relações interpessoais (ser cônjuge, irmão, pai, mãe, amigo, vizinho)”.

A consciência das relações sociais e a escolha de quais delas importam para o seu self, sinalizam uma mudança de paradigma de uma abordagem reducionista para uma que busca reconhecer a complexidade dele. “O self é totalmente relacional, consistindo não apenas das relações sociais, mas também das relações físicas, genéticas, psicológicas, emocionais e biológicas que, juntas, formam um self em rede. O self também muda com o tempo, adquirindo e perdendo traços em virtude de novas relações sociais”, complementa.

Podemos nos identificar em termos de herança, etnia, raça, religião; ou em termos de relações e características sociais e pessoais – “Sou irmã da Larissa”, “Sou amante do jazz”, “Sou professora”; ou características de personalidade: “Sou discreta”; ou em relação às responsabilidades: “Eu me importo com o meio ambiente”; ou em termos comparativos: “Eu sou a mais alta da minha família”; ou em relação ao tempo: “Eu era sua vizinha na Rua X” ou “Eu vou morar fora próximo ano”. Alguns destes aspectos são mais importantes do que outros, alguns são passageiros.

“A questão é que você é mais complexo do que qualquer uma de suas identidades. Pensar em si mesmo como uma network é uma forma de entender essa complexidade e fluidez” – Kathleen Wallace

Kathleen ilustra: Maria (troquei o nome) é esposa, mãe, romancista, fala inglês, é católica, feminista, professora de filosofia, sabe dirigir, é introvertida, canhota, tem a Doença de Huntington (HD nas Figuras 1 e 2 abaixo). Essas identidades relacionadas entre si formam uma rede de características. Maria é uma pluralidade de traços relacionados entre si. “A integridade de um self é constituído pela inter-relação de seus traços relacionais particulares, psicobiológicos, sociais, políticos, culturais, linguísticos e físicos”, diz.

Na Figura 1 abaixo, os nós (pontos) representam as características e as linhas são relações entre essas características (sem especificar o tipo de relação).

Há uma complexa inter-relação entre as características de Maria. Algumas delas parecem estar mais agrupadas, ou seja, mais relacionadas a outras características. Assim como um corpo é uma rede altamente complexa e organizada de sistemas organísmicos e moleculares, o self também é. Traços dele podem se organizar em grupos, como um agrupamento corporal, um agrupamento familiar, ou um agrupamento social. A Figura 2 abaixo mostra a ideia:

As Figuras 1 e 2 são simplificações das relações corporais, pessoais e sociais que constituem o self. Características podem ser agrupadas intimamente, mas também se cruzam com características em outros hubs ou clusters. Por exemplo, uma característica genética – ‘ter a Doença de Huntington (HD)’ – está relacionada a características biológicas, familiares e sociais. Também existem relações psicológicas e sociais com outras pessoas portadoras da HD, assim como também com as comunidades familiares e médicas. “Os clusters ou sub-redes não são isolados ou autocontidos e podem se reagrupar à medida que o self se desenvolve”, explica Kathleen.

Algumas características podem ser mais dominantes do que outras ou podem conferir mais destaque em alguns contextos. Ser esposa pode ser muito relevante para definir Maria, ao passo que ser tia pouco importa. Na vizinhança dela, ser mãe pode ter um peso maior do que ela ser filósofa, enquanto na universidade ser filósofa lhe dá maior proeminência.

Discriminações e preconceitos

Nossa identidade multifacetada e interconectada nos propicia uma experiência holística. Porém, essa experiência pode ser “fragmentada”, quando outras pessoas consideram uma de nossas identidades como definidora de quem somos. Suponha que, em um contexto de trabalho, por ser mulher, Maria não consegue ser promovida ou ganhar um salário mais alto. Discriminação é quando uma identidade – raça, gênero, etnia, formação educacional, etc – se torna a maneira pela qual uma pessoa é identificada, podendo se sentir reduzida ou objetificada. Pode ser algo arbitrário ou injusto.

Maria pode não querer ser estereotipada por nenhuma identidade; ou ela pode sentir necessidade de dissimular ou ocultar alguma identidade específica; ou pode sentir que algumas dessas características não são essenciais para quem ela realmente seja. Mas mesmo que algumas características sejam menos importantes do que outras, e algumas sejam fortemente relevantes para quem ela é e se identifica, todos elas se interconectam em quem Maria de fato é.

Maria-como-filha e Maria-como-mãe

As Figuras 1 e 2 acima representam a network da rede “Maria” em um corte transversal do tempo, digamos no início da sua idade adulta. E quanto à mutabilidade e fluidez do self? E quanto às outras fases de sua vida? “Maria, aos cinco anos, ainda não era esposa ou mãe, e suas fases futuras podem lhe conferir características e relações diferentes: ela pode se divorciar ou mudar de carreira ou passar por uma transformação de identidade de gênero”, extrapola Kathleen.

O self é uma network e também é um processo. Assim como nosso corpo que está em constante processo – células são substituídas, cabelo e unhas crescem, o alimento é digerido – as relações ou atitudes psicológicas estão em fluxo constante. Os traços sociais evoluem. Por exemplo, Maria-como-filha evolui e muda. Maria-como-mãe não está relacionada apenas aos seus traços atuais, mas também ao seu próprio passado, na forma como ela vivenciou o papel de filha. Muitas experiências e relações anteriores moldaram a forma como ela é agora. Novas crenças e atitudes podem ser assimiladas e as antigas podem ser revistas. De certa forma, há uma constância, pois as características não mudam todas no mesmo ritmo e talvez algumas nem mudem. Mas no horizonte temporal, o self é um processo e é um resultado cumulativo do que foi e como está se projetando daqui pra frente.

Uma rede cumulativa possui estrutura e organização, assim como muitos processos naturais, quer pensemos em desenvolvimentos biológicos, processos físicos ou sociais. São estágios do self se sobrepondo um ao outro. “Para Maria, ser esposa se sobrepõe à ela aos 30 anos até o fim de seu casamento. Mesmo que seu casamento termine, “esposa” ainda será um traço da história de Maria – uma história que pertence à ela e molda a estrutura da rede cumulativa”, exemplifica Kathleen.

E se você deseja esquecer ou se libertar do passado?

Se o self é sua história, significa que não pode mudar? E se você deseja se libertar de seu passado ou de um momento atual desafiador?

Uma afegã que deixou seu país e se refugiou em outro passa por uma transformação radical, mas não deixa de ser quem era. As experiências de transformação são daquele “eu”, aquele que está se transformando. Agora, imagine que você fez algo de que hoje se arrepende e que nunca mais faria, e que sente que era uma expressão de quem você era, mas bastante diferente de quem você é agora. Kathleen diz que, “quando você se arrepende e pede desculpas, reconhece que sua mudança é contínua.”

“A transformação pode acontecer a um self ou pode ser escolhida. Pode ser positiva ou negativa. Pode ser libertadora ou não” ela contextualiza. Digamos que Maria passe por uma mudança de gênero e se torne Paulo. Paulo não deixa de ser Maria, embora Paulo possa preferir que sua história quando era Maria seja uma dimensão não pública. A rede cumulativa agora conhecida como Paulo ainda mantém muitos traços – biológicos, genéticos, familiares, sociais, psicológicos – de sua configuração anterior como Maria, e é moldada pela história de ter sido Maria.

A network da self é mutável e contínua. Algumas características tornam-se mais relevantes, outras menos, embora permaneçam parte da história do self. Mesmo que haja muitos aspectos de sua história que seu self possa rejeitar no futuro.

Transformações não desejadas

Agora imagine uma transformação que você não desejou ou escolheu, mas que aconteceu: por exemplo, pessoas que estão com Alzheimer. Elas continuam sendo pais, cidadãos, cônjuges, ex-professores. O pai com demência experimenta uma perda gradual de memória e de capacidades cognitivas, que alteram suas características sociais. “No entanto”, afirma Kathleen, “a integridade do self é mais ampla do que a memória e a consciência de uma pessoa com Alzheimer”.

À medida que envelhecemos pode haver uma contração do self, uma diminuição das nossas capacidades. Kathleen alerta que há uma lição aqui: “nenhum de nós é completamente transparente para si próprio. Até mesmo Platão reconheceu que havia desejos inconscientes e que o autoconhecimento é uma conquista provisória e duramente conquistada. O processo de autoquestionamento e autodescoberta está em curso ao longo da vida porque não temos identidades fixas e imutáveis: nossa identidade é múltipla, complexa e fluida.”

Quebrando estereótipos reducionistas

Somos complexos, múltiplos e fluídos. Isso significa que ninguém nos conhece tão bem. Quando alguém tenta lhe definir ou estabelecer sua identidade ancorada numa característica particular sua, isso pode levar a mal-entendidos, estereótipos, discriminação.

Nossa sociedade altamente polarizada e seus discursos políticos hoje fazem exatamente isso – compartimentaliza as pessoas em categorias: “branco”, “negro”, “cristão”, “muçulmano”, “conservador”, “progressista”. Mas os selfs são muito mais ricos. Quando nos percebermos como uma rede, entendemos nossa complexidade e isso pode ajudar a quebrar estereótipos reducionistas e a cultivar uma comunicação mais produtiva. Muitas vezes temos identidades e perspectivas sobrepostas.

Em vez de separar as pessoas, nossas múltiplas identidades são a base para a comunicação e compreensão, mesmo que parcial. Ao aceitarmos a nossa complexidade e fluidez, compreendemos melhor quem somos e como viver bem consigo e com os outros.

Ilustração da capa: Noa Denmon

Taggeado em:

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

Ver todos os artigos