Algumas crises mundiais têm o mérito de se caracterizarem como pontos de inflexão na história. Essas crises foram aquelas que nos forçaram a reestruturar nossas formas de se organizar socialmente, culturalmente e economicamente. No que se refere a crises que causaram uma mudança de paradigma, a utilização do adjetivo paradigmático talvez seja mais adequadamente aplicado somente às crises que representaram transições irreversíveis e que aceleraram o desenvolvimento de novas fronteiras de produção e consumo.  Como exemplo, cito tanto a revolução da agricultura quanto a revolução industrial. Há evidencias de que a da agricultura só aconteceu por conta do fim da era do gelo, e a industrial só ocorreu impulsionada pelo uso do carvão como fonte de combustível. Isso ilustra nossa dependência da natureza, por mais que gostemos de pensar que somos nós seres humanos que a controlamos.

Numa escala planetária (a escala das grandes cadeias de suprimentos, dos grandes projetos de mobilidade, e das redes de comunicação globais), essas novas fronteiras parecem exacerbar inequidades, o que tem gerado mais instabilidade, fragilidade e insegurança.

E nessa escala, uma possível narrativa para a pandemia atual – que seja capaz de contemplar esses aspectos – passa pela descrição de um mundo globalizado onde contexto e dinâmica locais assumem proporções planetárias, onde eventos locais rapidamente têm impacto global, onde a pressão demográfica criou padrões de consumo insustentáveis e nocivos à saúde, e onde as mesmas forças que aceleram o desenvolvimento humano também são responsáveis pelo aumento de sua fragilidade.

Uma possível narrativa para a pandemia atual também antecede e contempla a mudança na nossa percepção dessa crise global, ou seja, na forma como percebemos que essa crise se manifesta. O que hoje é uma crise sanitária com impactos sociais e econômicos, amanhã pode ser uma crise de segurança alimentar de proporções globais. Hoje é o grande lockdown, amanhã, a grande fome. E se a história se repetir (como se repetiu inúmeras vezes), depois de amanhã o que será acelerado são os números de episódios que refletem insegurança e violência extremista, como resultado da pressão causada pela escassez de recursos.

E como esta crise global está assumindo novos contornos? De maneira geral, todos os países afetados pela pandemia que têm condições de mitigar o impacto econômico causado pelas restrições de mobilidade e circulação de bens assim o fizeram. Estados soberanos, com maior ou menor presença na economia e sociedade, se viram obrigados a redimensionar seu papel regulador, seja por meio da imposição de medidas que restringem a mobilidade, seja por meio de grandes incentivos fiscais e injeções de capital em diferentes setores da economia.

O que o advento do Antropoceno até outro dia convencionou chamar de a grande aceleração, hoje em dia pode ser chamado de a grande desaceleração. Embora o planeta agradeça, a tendência não é a de que essa desaceleração melhore a condição do ser humano em sociedade. Pelo contrário, a desaceleração das economias e dos padrões de consumo vai infelizmente acelerar o crescimento das desigualdades.

A falha em se identificar e em fazer frente às causas complexas dessa pandemia está diretamente relacionada à nossa vulnerabilidade em relação à atual pandemia e às próximas pandemias globais, que parecem seguir a tendência de ocorrer com mais frequência e num intervalo de tempo menor.

Enquanto atravessamos a crise atual adotando medidas de saúde pública que visam conter a transmissão do coronavírus, existe um esforço global sem precedentes de pesquisa e desenvolvimento, na busca pelo tratamento ou cura da COVID-19. Isso é obviamente importante e essencial para salvar vidas. No entanto, não resta dúvidas de que a cura para o impacto da COVID-19 nas pessoas vai muito além da medicalização da pandemia.

Parte de solução passa pelo papel do Estado e dos governantes em mitigar o impacto da COVID-19 na sociedade, por meio de políticas que estimulem a economia, ao mesmo tempo que ações e políticas de saúde pública sejam tomadas visando o bem estar de todos, incluindo as minorias visíveis e invisíveis. Somos todos igualmente responsáveis uns pelos outros, e a facilidade e velocidade de transmissão do vírus deixa isso claro.

Parte da remissão da COVID-19 também vai passar pela capacidade das pessoas e empresas de se adaptarem ao reajuste social, econômico e cultural a que nos referimos anteriormente. Enquanto o Estado faz o possível para garantir o mínimo de continuidade e segurança socioeconômica e politica, essas mesmas pessoas e empresas precisam desenvolver habilidades necessárias para se manter de pé.  Um possível indicador de que esta crise não é um ponto de inflexão foi a recente decisão de regular – ainda que com prazo de validade – o exercício da telemedicina no Brasil. Essa iniciativa foi amplamente adotada em diversos países do mundo antes da pandemia. Houve a necessidade de uma pandemia global se instalar no Brasil para acelerar a regulamentação de um processo que parece ser irreversível atualmente.

Independentemente de discussões acerca do papel de grandes determinantes ideológicos ou estruturais na crise global da COVID-19, o que está ao nosso alcance imediato é a consciência de que nossa habilidade de compreender, identificar, planejar e gerir projetos pessoais ou empresariais devem necessariamente incorporar conceitos e medidas que façam frente ao impacto que essa pandemia está tendo na forma como a sociedade está se reorganizando.

E enquanto não se discute seriamente a saúde planetária como condição para saúde humana, adquirir algumas habilidades farão a diferença nesse momento de grandes mudanças. A capacidade de se antecipar a diferentes cenários – incluindo a capacidade de criação de planos de contingência – diz respeito a habilidades de tomada de decisões em tempos de incerteza. A criação de modelos de negócio e design de serviços que são centrados no cliente refletem a capacidade de incorporar um pensamento complexo, e que vai além da etapa final da simples entrega de produtos ou serviços. A ideia de transformação digital, e a digitalização de serviços e produtos é um conhecimento imprescindível, porque foi sem dúvida o fator acelerador das relações pessoais e comerciais antes dessa pandemia. Tudo indica que será também o fator acelerador de relações pessoais e comerciais durante e depois da pandemia.

À medida em que nos vemos agora obrigados a fazer essa transformação digital, é imperativo entender que tipo de transformação cultural essa transformação digital impõe a toda a sociedade. Ponto de inflexão ou não, temos que acreditar que é a nossa resiliência e capacidade criativa que vão garantir não somente a sobrevivência, mas também a nossa prosperidade e a prosperidade do país em que vivemos.

Nós, do time da Saúde na Era Pós-Digital, temos o cuidado de observar cenários, tendências e habilidades necessárias para fazer frente a essa nova realidade, e também tivemos o cuidado de preparar um novo curso que irá abordar esse assunto. Para fazer sua Aplicação, clique na imagem abaixo.

Crédito da imagem acima: Lee Kyutae, aka Kokooma.

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Raphael S. Aguiar

Raphael trabalhou e faz parte da lista de consultores da ONU (UNDP – Crisis Bureau), foi oficial civil do Departamento de Operações de Missão de Paz da ONU, e foi gerente de projetos da ONG Humanity and Inclusion (antiga Handicap International). Tem amplo conhecimento e experiência na gestão de informação e gestão de projetos nas áreas da saúde, social, administrativa, crimes graves, direitos humanos, agenda dos objetivos de desenvolvimento sustentável, e experiência em apoiar a implementação de politicas nacionais e a adoção de convenções internacionais. Raphael é Bacharel em Fisioterapia, com Mestrado em Antropologia Social e Cultural (cum laude) pela Katholieke Universiteit Leuven, atualmente é pesquisador em Saúde Global e Doutorando em Politicas de Saúde e Equidade da York University, Canadá.

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