Olhar para possíveis futuros nos interessa como pessoas e como profissionais. No entanto, “fazer predições é algo difícil” como dizia Niels Bohr, físico dinamarquês que fez contribuições fundamentais para a compreensão da estrutura atômica, pela qual recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1922.

É difícil predizer como serão as cidades, a medicina ou a moda em 2040. O futuro não é determinístico. É probabilístico. É construído o tempo todo. Há futuros possíveis, futuros prováveis e futuros plausíveis. Mudanças podem acontecer no caminho. E ainda temos o livre arbítrio para definirmos o que queremos e onde vamos concentrar nossas ações e esforços.

Mesmo que epidemiologistas e especialistas em saúde pública saibam dos riscos de futuras pandemias, ninguém – nem mesmo um algoritmo – pode prever exatamente quando, onde e como a próxima pandemia acontecerá. Ainda assim, buscamos antecipar o que está por vir e entender como navegar por futuros incertos.

Há também muitas discussões abstratas sobre possíveis futuros. Como também existem bolhas de discussões futuristas descoladas da realidade e dos problemas do mundo hoje.

Futuro e tecnologia quase sempre estão interligados – social, política e mercadologicamente – com promessas de um amanhã melhor, o que a antropóloga Genevieve Bell e o cientista computacional Paul Dourish chamam de “tecnovisões” – aquilo que tecnólogos e empresas de tecnologia falam sobre o papel das tecnologias no futuro.

As tecnovisões consideram o progresso tecnológico inevitável, como profecias autorrealizáveis. Dourish e Bell explicam que um futuro “almejado e sempre a alcançar” é uma característica da pesquisa e da prática no campo da computação, que, segundo eles, permite que empresas de tecnologia “se isentem das responsabilidades do presente” assumindo que “certos problemas – barreiras de adoção, regulamentação e retrocessos sociotécnicos – simplesmente irão desaparecer.”

Dourish e Bell sugerem que, em vez de esperarmos por um futuro melhor, melhor seria reconhecer que possíveis futuros já estão aqui, e buscar compreendê-los (e praticá-los) no agora. E também compreender que, à medida que soluções tecnológicas surgem, “o futuro” é construído como uma fronteira sociotécnica – em que apostas sociais, políticas e econômicas estão intimamente ligadas à nossa crença na promessa do progresso tecnológico.

Mas como podemos vivenciar e praticar o futuro? A designer futurista Laura Forlano recomenda três livros recentes, que apontam caminhos: On Trend: The Business of Forecasting the Future, de Devon Powers; How to Future: Leading and Sense-Making in a Age of Hyperchange, de Scott Smith, e Flash Forward: An Illustrated Guide to Possible (and Not So Possible) Tomorrows, de Rose Eveleth.

Esses três livros consideram que tendências, cenários e histórias são formas valiosas para a prática de antecipar e vivenciar mudanças, e de trazer experiências do futuro para o momento presente.

Não é só uma questão de afirmar que o futuro será melhor. Uma mudança social transformadora requer uma compreensão mais profunda do poder e da política que permeiam o campo do futuro e, até mesmo, diferentes compreensões da temporalidade e de como o futuro é definido. Portanto, “Quem alcança o futuro?” talvez seja uma questão essencial.

“Como podemos ir além dos futuros “status quo” para futuros mais pluriversais?” questiona Forlano. “Futuros negros? Futuros feministas? Futuros queer? Futuros trans? Futuros da classe trabalhadora? Futuros asiáticos? Futuros indígenas? E futuros multiespécies?”, continua a indagar.

Tendências & negócios

No contexto ocidental, futuro é sinônimo de otimismo, soluções e tecnologias. O futurismo também sempre foi esmagadoramente branco e masculino, como abordo nesse artigo, sendo determinado por um “grupo seleto”, predominantemente formado por americanos e europeus. Como então imaginar futuros pluriversais?

Devon Powers, em um capítulo no seu livro questiona: “Como imaginar futuros mais visionários, radicais e diversos?” Para ela, tendências são formas de antecipar e compreender mudanças, mitigar incertezas e aspirar transformações. Tendências são “incertezas futuras transformadas em negócios”, em que cultura, significado, influência social e mudança social são moedas.

Na sua visão, tendências, tecnologias de comunicação e redes estão intimamente conectadas, moldando-se mutuamente e nos moldando também. Redes são a “infraestrutura para tendências” e, como tal, são “profundamente recursivas”: propensas ao preconceito e orientadas para a homofilia.

Powers argumenta que tendências são “superficialmente progressivas”, mas inerentemente “apolíticas” ou “antipolíticas”, por “vislumbrar um futuro que mantém intactas as estruturas e relações fundamentais do presente”. Buscando outros modos de futuro que ofereçam maior potencial de transformação social e política, ela se volta para o trabalho de artistas e ativistas e, em particular, para aqueles que atuam no gênero afrofuturismo. Powers cita o cineasta Kodwo Eshun de “contra-futuros” que descentra a supremacia branca para ilustrar como o afrofuturismo examina o papel do poder e que pode ser um laboratório para a construção de um mundo fora do patriarcado imperialista, capitalista e branco.

Prototipando futuros

Já Scott Smith, em seu livro, mostra que algumas culturas entendem que o tempo é cíclico, com potencial para eventos “múltiplos” e “simultâneos”, mencionando especificamente a América Latina, o Oriente Médio e a África. Ele cita Black Futures que foca em conhecimentos globais, atemporais, dinâmicos e híbridos: “Assim como nós, este livro não é linear. Como nós, este livro vive e respira além das estruturas ocidentais temporais. Não há passado, presente ou futuro, nem há começo, meio ou fim”. Também cita “Existem Pessoas Negras no Futuro”, de Alisha B. Wormsley.

Smith oferece um conjunto de metodologias para a compreensão do futuro – e construção de sentido (sense-making) e de cenários, narrativas e prototipagem. Para todas as metodologias apresentadas, a chave seria usar “a incerteza como insumo para construir, não como um risco a ser mitigado.”

Argumentando que poucas abordagens utilizam a divergência e o dissenso para permitir que outros “caminhos de possibilidades” sejam explorados, Smith afirma que muitos futuristas e futurólogos continuam presos à narrativas de “futuros oficiais” as quais oferecem “conforto e certeza em vez de provocar questões e forças que possam moldar possíveis futuros.”

Ao mostrar formas de materializar e renderizar cenários e criar coisas tangíveis como artefatos e protótipos, Smith comprova que futuros podem ser prototipados e experimentados em algum nível. Esses protótipos, quando incorporados em cenários detalhados com narrativas vívidas possibilita que as pessoas interajam intimamente com situações e contextos desconhecidos. “O objetivo de explorar futuros é entender melhor como proceder a partir do presente”, explica.

“Não há apenas um único futuro a ser previsto. Existem muitos futuros alternativos a serem antecipados e pré-experimentados em algum nível” (Jim Dator – futurista)

Provocações sobre futuros e escolhas coletivas

Rose Eveleth, dá vida a possíveis futuros por meio de cenários e histórias em quadrinhos de vários autores e sobre diversas temáticas, como cidades inteligentes, arte computacional, um mundo sem sono, direitos dos animais, avatares de celebridades, detecção de mentiras, biohacking, transumanismo, crime no espaço sideral e vida oceânica. Cada história é seguida por um pequeno ensaio sobre o tema, a fim de explorar questões políticas – com críticas comedidas, mas empolgadas.

Eveleth também considera que “o futuro não deve ser criado exclusivamente por homens brancos em camisetas pretas dando palestras TED. O futuro é muito mais instável do que isso.” E, de fato, os personagens e cenários retratados nos quadrinhos estão repletos de conflitos em um futuro fictício. Os personagens – deficientes físicos, pretos, pardos, velhos, jovens, animais e robôs – têm interações ricas e realísticas.

Um dos quadrinhos – “Welcome to Tomorrowville”, de Ben Passmore – retrata uma cidade inteligente com todas as promessas utópicas da tecnologia, mas, ao mesmo tempo, traz à tona críticas sobre vigilância, privacidade e policiamento nos diálogos entre os personagens com diferentes perspectivas sobre as consequências sociais e políticas de tais escolhas. Há diferentes implicações para os personagens, como os sem-teto e aqueles que são criminalizados por plataformas e serviços da cidade inteligente. Para Eveleth, esses quadrinhos são valiosos, porque ilustram como o futuro é um produto das escolhas coletivas que fazemos como sociedade.

Desestabilizando “futuros oficiais”

Abordagens experimentais, como jogos, workshops, protótipos e artefatos são úteis para confrontar “futuros oficiais”, particularmente aquelas afirmações tecno-otimistas. Ao imaginarmos o que pode dar errado e as consequências sociais da tecnologia, exploramos e antecipamos possíveis problemas e atritos.

Esse processo também é uma forma de nos conhecermos melhor. Como podemos lidar com mudanças, incertezas e situações desconhecidas? Que mundo realmente estamos comprometidos em construir? O que podemos ganhar? Como podemos desenvolver a resiliência, o cuidado e o senso de comunidade em face a várias crises interligadas – climática, política, cultural, econômica?

Essas abordagens – com imaginações, cenários e especulações – discutem futuros que possam valer a pena, com base em visões acadêmicas, artísticas e ativistas. Futuros que possam ser mais éticos, equitativos e justos. Futuros assim requerem uma compreensão sociológica e antropológica dos impactos tecnológicos.

Ilustração da capa: Kadir Nelson

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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