Desde os tempos antigos, mestres espirituais e filósofos enfatizavam a importância de se estar totalmente presente “no agora”, como chave para alcançar a dimensão espiritual. Aliás, o foco no agora é uma ideia-chave em várias tradições religiosas e místicas. Atualmente, muitos preconizam a meditação e a atenção plena (mindfulness) como forma mergulhar no presente, e não se preocupar nem com o passado e nem com o futuro. O argumento é que estamos constantemente preocupados com o futuro, lembrando do passado, distraídos, divagando ou pensando em mil coisas e assim não estamos plenamente conscientes das coisas que estamos fazendo e do momento presente.

No mundo contemporâneo, autores como Eckhart Tolle, em seu O Poder do Agora (1997), listam vários benefícios de se viver no agora, não apenas os psicológicos e mentais, mas apontando para a “singularidade”. A “tese da singularidade” é a ideia de que o momento presente é tudo o que temos (temporalmente) – o tempo único. A banda The Flaming Lips nos lembra disso em sua canção All We Have Is Now (2002). A “tese da conexão” é uma reivindicação de vários desses mestres e autores, nos recomendando que devemos concentrar toda a nossa atenção no presente precisamente por causa de sua singularidade.

A justificativa é que, embora possa parecer que outros tempos – passado e futuro – mereçam nossa atenção, iremos inevitavelmente compreender (intelectual e afetivamente) que apenas existe o agora e, portanto, nossa atenção deve estar focada nele. Nosso alvo de atenção depende e emerge da singularidade.

Hoje, talvez um dos que mais enfatizam tanto a singularidade ontológica do presente quanto a tese da conexão, seja Tolle, que vem ressignificando insights de diversos pensadores. Tolle tem compartilhado para milhões de pessoas ideias sobre espiritualidade, atenção plena e meditação. O centro de sua defesa é a tese da conexão. Em O Poder do Agora, escreve:

Perceba profundamente que o momento presente é tudo o que você tem. Faça do Agora o foco principal de sua vida. […] Sempre diga ‘sim’ para o momento presente. O que poderia ser mais insano e fútil do que criar resistência ao que já é? O que poderia ser mais insensato do que se opor à própria vida que é agora e sempre agora? Se renda. Diga sim para vida — e veja como a vida instantaneamente começa trabalhar para você ao invés de contra você. […] o Agora [é] a coisa mais preciosa que existe. Por que é a coisa mais preciosa? Em primeiro lugar, porque é a única coisa … A vida é agora. Nunca houve um tempo em que sua vida não fosse agora, nem nunca haverá.”

Vamos começar considerando a afirmação de que o momento presente é ontologicamente único – o tempo único e, portanto, tudo o que temos. Nunca tivemos ou teremos outro tempo que não o agora.

John Martin Fischer, professor de filosofia na Universidade da Califórnia, considera que a singularidade do agora pode parecer um insight profundo, um trampolim para alcançar o esclarecimento, a iluminação e o autoaperfeiçoamento. Mas a afirmação de que “é sempre agora” pode ser trivial e não apoiar nenhuma inferência interessante.

O que exatamente significa que é sempre agora? Fischer acredita que a melhor maneira de interpretar essa afirmação é observar que ‘agora’ é um termo indexical. Ou seja, é empregado de forma flexível para apontar para o momento específico em que é usado, não o mesmo tempo todas as vezes em que é usado. Da mesma forma, o termo ‘aqui’ é um termo indexical, empregado de forma flexível para se referir ao lugar onde é dito (pronunciado), não ao mesmo lugar onde é dito. ‘Agora’ é um indexical temporal, e ‘aqui’, um indexical espacial. Há um tempo diferente em diferentes ocasiões de uso. Assim, ‘agora’ nem sempre expressa a mesma proposição. “Portanto, o insight inicial, tornado verdadeiro pelas regras semânticas do indexical temporal (agora), é muito trivial para implicar a afirmação da tese da conexão. A ideia intuitiva de que é “sempre agora” não apoia a inferência crucial de que devemos nos concentrar no presente por causa de sua singularidade – porque é tudo o que temos”, reflete Fischer em seu artigo The problem of now para a Aeon.

O ‘aqui’ é um indexical espacial, assim como ‘agora’ é um indexical temporal. Sempre que alguém pensa ou afirma ‘estou aqui agora’, isso é verdadeiro. Não quer dizer, no entanto, que haja apenas um lugar, ou que nosso lugar atual seja o único lugar – o único lugar que temos. “Isso seria uma inferência falaciosa”, aponta Fischer.

Na filosofia do tempo, existem duas visões principais: ‘presentismo’ e ‘eternalismo’. O presentista sustenta que apenas o momento presente é real ou existe (ou que deveríamos nos importar apenas com ele), enquanto o eternalista sustenta que cada momento (todos os tempos) é igualmente real ou existente. O eternalismo nega a singularidade do presente.

Talvez os proponentes da tese da conexão sintonizem-se com a doutrina do presentismo, argumentando que, toda a nossa atenção deve estar focada no único tempo existente – o agora. No entanto, o presentismo não implica que devemos nos concentrar apenas no momento presente: “É possível concentrar a atenção em algo que não existe, como personagens de ficção ou em criaturas imaginárias, como unicórnios, e também em pessoas que não estão mais presentes, como Aristóteles ou Kant. Também podemos considerar possibilidades para o nosso futuro – caminhos diferentes que nossas vidas podem seguir. Eternalismo e presentismo são visões sobre metafísica, não psicologia ou raciocínio prático. Nesse ponto, a banda Fleetwood Mac contrapõe a The Flaming Lips em sua música de 1977: Don’t stop thinking about tomorrow’ (Não pare de pensar no amanhã)”, esclarece Fischer.

É possível que se queira defender a tese da conexão em cima da visão do presentismo e de que nossas ações apenas podem ocorrer (ou se materializar) no presente. Tolle aponta que nada pode ser ou acontecer fora do agora. Da mesma forma, não se pode agir exceto no agora. É no ‘agora’ onde está a ação.

Aqui, Fischer alerta que precisamos distinguir ações “básicas” das “não básicas”. A grosso modo, uma ação básica é aquela que alguém realiza. Alguns consideram ações básicas como mentais – atos de vontade, escolhas ou decisões. Outros como movimentos corporais (inclusive, ficar quieto). Fisher dá o exemplo de puxar o gatilho, mas vou dar outro exemplo: trancar a porta seria uma ação básica. Já uma ação não básica acontece quando realizamos outra ação. Por exemplo, quando você deixa alguém do lado de fora da casa, porque trancou a porta. Isso é uma ação “não básica”.
Podemos realizar ações básicas apenas no momento presente. Você tranca a porta agora. No entanto, uma ação básica pode ter consequências para outras ocasiões e que, ao realizá-la, podemos também estar realizando uma ação não básica. Ao tomar uma ação agora, devo considerar as consequências de várias ações para tempos futuros (que ainda não existem) e as consequências de minhas ações. ‘Agora’ é apenas onde estão as ações básicas.

fenomenologia, tradição filosófica lançada na primeira metade do século 20 por Edmund Husserl, Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre, sustenta que o agora é necessariamente estruturado por horizontes do passado e do futuro. Portanto, todas as formas de habitar o agora (incluindo “estar aqui agora”) também é uma forma de retomar o passado e nos orientar para o futuro.

Fischer argumenta que a recomendação ‘Esteja aqui agora’ não pode ser apoiada pela singularidade do presente, mesmo com a justificativa de busca da saúde mental e do esclarecimento, os quais também podem ser alcançados através da meditação. Muitos autores, especialmente na literatura contemporânea de autoajuda, apontam para os consideráveis ​​benefícios terapêuticos de certos tipos de meditação e do mindfulness, em que a mente se torna livre para absorver plenamente a realidade que se desdobra à sua frente.

Sim, nos dias atuais, nossa atenção está dispersa. Uma ideia chave encontrada no trabalho de Tolle, é que não somos iguais aos nossos pensamentos, mas podemos nos separar de nossa mente e refletir sobre ela. Nós somos o observador, não a mente. Esse reconhecimento pode nos ajudar a permanecer mais atentos e focados.

Penso que seria bom deixar claro que Fischer não contesta o benefício de alcançar uma presença maior no momento presente. Acha até importante. No entanto, questiona a tese da conexão – a afirmação de que devemos defender uma imersão no presente observando que é o único tempo que temos. Mesmo que o presente seja singular – o único tempo que existe – não significa que devemos prestar atenção a ele de forma plena e exclusiva.

Gosto de dizer que, no O Futuro das Coisas, nos deslocamos (nossa atenção) para o futuro e de lá olhamos para o presente e conseguimos compreender melhor o que está precisando mudar no agora. O que está desigual? Problemático? Difícil? Então, lá do futuro, trazemos informações que podem ser valiosas para melhorar esse presente.

A tese da conexão, que estabelece o foco no presente a um tipo de necessidade – o presente é tudo o que existe –, remete à ideia de estarmos presos no presente, como alertamos no nosso Manifesto. Não surpreende que Tolle chame isso de “rendição” – “renda-se ao agora”. A questão aqui é termos um modelo de “escolha”. Escolher sobre o que devemos focar, uma escolha não ditada pelo presente único, se houver. Somos livres para escolher como queremos ser. Se realmente queremos “estar aqui agora”, não é porque “o agora” seja tudo o que temos.

Ilustração da capa: Liza Rusalskaya

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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