Imagine que, de um dia para outro, você precisasse se preparar para correr uma maratona. Nesse processo de preparação é preciso passar por várias privações: os aspectos da vida social, a dieta rígida, os horários e o volume de treinos. Quando vão se aproximando os últimos meses antes da maratona, tudo é elevado a máxima potência. Em contrapartida, a jornada vai te tornando cada vez mais forte. Conforme você vai atingindo um volume de treino maior, vai percebendo a transformação do corpo, do ritmo, da passada, dos resultados. Você vai adquirindo mais confiança. A cada treino longo, você vai ficando fisicamente mais forte e mentalmente mais preparado. Tudo isso para chegar até o dia da maratona.

Tenho a sensação de que assim foi o coronavírus nas nossas vidas no desafiador ano de 2020: uma intensa maratona que chegou sem aviso prévio, exigindo de nós treinos intensivos de como saber viver na incerteza, de como reinventar-se em um espaço curto de tempo, de como privar-se do contato humano. Estamos todos vulneráveis perante a possibilidade do contágio e da morte. Da primeira morte anunciada em Wuhan, na China, no dia 11 de janeiro, ao decreto da Organização Mundial da Saúde anunciando o surto da COVID-19 como uma pandemia, chegamos ao final do ano com 185 mil mortes só no Brasil e mais de 2 milhões de mortes no mundo. Não é pouca coisa estarmos vivendo em um dos eventos mais marcantes da história da humanidade, que estará nos livros ou nos arquivos digitais de história do amanhã. Castigo? Privilégio? Essa resposta está em cada um de nós. Afinal, tudo depende de como vivemos o que vivemos. Será o vírus nosso oráculo de Delfos? Como escreveu Heráclito: “O deus cujo oráculo está em Delfos não explica nem oculta sua predição, mas dá uma indicação para compreendê-la”. Talvez no caos e na triste realidade deflagrada pela pandemia de tantas desigualdades sociais, dos sistemas precários de saúde, da ganância política, da degradação do meio ambiente, tenhamos algumas respostas escondidas exatamente aí onde mora a dor e o sofrimento humano. “Conhece-te a ti mesmo”, dizia a mensagem do oráculo. É passada a hora do homem olhar para o que tem produzido como legado neste planeta. A experiência da mega crise mundial pode conter em si a esperança no despertar de outra via.

Se conhecer a natureza humana pode nos levar a conhecer todo o universo dos “deuses” e o que procuramos está dentro de nós e não fora de nós, a pergunta que faço como reflexão desta intensa maratona que corremos em 2020, é: O que ainda precisamos conhecer sobre nossas atitudes e ações, que coletivamente causam sintomas que não desejamos ter na sociedade? Alguns historiadores dizem que um século não acaba quando o calendário vira um ano, mas que são necessários fatos históricos marcantes que simbolizem a virada, que evidencie mudanças culturais e novos paradigmas. O historiador Eric Hobsbawn, por exemplo, afirma que o século 19 só terminou em 1918 com o fim da primeira Guerra Mundial. Outros historiadores, como propôs a brasileira Lilia Schwarcz, dizem que 2020 pode representar o ano que encerra de uma vez o século 20. “A pandemia vai alterar os nossos livros de história. Inclusive, ela vai mudar a datação de quando começa o século 21. Na minha opinião, o século 21 começa nesta pandemia”, declara Lilia.

Se quisermos olhar por outro ângulo, o esotérico, também confirmamos essa passagem de era. Astrólogos afirmam que Júpiter e Saturno entrarão na casa do signo de Aquário, que tem como elemento o ar, trazendo uma quebra de paradigmas. Depois de termos ficado cerca de 200 anos no signo de Capricórnio, cujo elemento é a terra, manifestando estabilidade, tradicionalismo, estrutura, vamos para uma visão oposta a essa. “Novas ideias vão surgir, a relação com a estrutura financeira e política vai se transformar, sendo que a tecnologia terá protagonismo nesse processo, indicando que há inclinação para um forte movimento de não segregação, em que o olhar se voltará para a comunidade como um todo, e não para o individualismo. Nesse contexto, ideias velhas de sociedade devem ruir: “É uma morte cronometrada”, anuncia o astrólogo Júlio Archanjo. Nessa, ou em qualquer outra perspectiva, parece claro que a tendência de mudanças socioculturais é eminente. Portanto, 2021 vêm com sabor desse início para buscar um senso mais comunitário, saindo das velhas estruturas para dar espaço ao novo. Então, o que esperar de 2021? Quais as lições deste ano no qual esse micro-organismo não visível a olho nu nos colocou a prova, paralisando a vida econômica e social levando a mais de 4 bilhões de pessoas a estarem confinadas, ou seja, metade da população mundial?

Uma das reflexões que trago é do ponto de vista metafórico. Não é de se estranhar que o Sars-Cov-2, seja descrito como um vírus altamente contagioso, que atinge nossas vias respiratórias e pode nos matar por sufocamento. Me parece que vivemos um tempo de sufocamentos. E isto não é uma metáfora. Há um sufocamento social, econômico e político e os efeitos em nossos corpos trazem à tona o tema da respiração. O grito forte do afro-americano George Floyd Asfixiado e violentado pelo policial branco estadunidense Derek Chauvin no dia 25 de maio de 2020, ainda ecoa “‘eu não posso respirar, eu não posso respirar”. Precisamos todos respirar. Vivemos um sufocamento causado pelas relações de poder, pelas formas de discriminação e exclusão social como racismo, homofobia, transfobia, sexismo, classismo. Vivemos um sufocamento físico e simbólico de nossa sociedade, que hoje sente os impactos econômicos, ambientais e sociais de um sistema que nós mesmos produzimos. Fome, pobreza, desmatamento, mudanças climáticas e epidemias são em última análise uma manifestação de um sistema predatório que urge por mudar.

Para acessar algumas lições poderosas sobre o ano de 2020 e projetar 2021 faço referência a um dos maiores pensadores em atividade, o sociólogo francês Edgar Morin, que recentemente lançou o livro “É hora de mudarmos de vida, as lições do coronavírus”, já traduzido para o português e publicado pela editora Bertrand Brasil. “Nossa fragilidade estava esquecida; nossa precariedade, ocultada. Nunca estivemos tão fechados fisicamente no confinamento e nunca tão abertos para o destino terrestre”, diz Morin. É com a sabedoria deste incrível pensador que, aos 99 anos, já lutou na resistência clandestina contra a ocupação de Paris pelos nazistas, que compartilho abaixo as 15 lições do coronavírus:

1- A primeira refere-se à nossa existência, à experiência do isolamento que nos convida a abrir os olhos para a existência daqueles que não tiveram acesso ao supérfluo e merecem atingir o estágio em que se tem o supérfluo;

2- A segunda é sobre a condição humana ou a grande pergunta que não se encontra nos currículos, mas diz respeito a cada um de nós: o que é ser humano?

3- A terceira é o festival de incertezas que vai perdurar e exigir que aprendamos a conviver com a imprevisibilidade. A história nos ensina que o princípio do improvável é permanente;

4- A quarta tem a ver com nossa relação com a morte. Com a pandemia aumentou o medo do imediatismo da morte e nos lembrou da importância dos rituais fúnebres uma vez que o isolamento nos impediu de fazê-los e nos obrigou a realizar enterros apressados;

5- A quinta trata da lição de perceber que nossa civilização nos incita a levar uma vida extrovertida. Ao estarmos reclusos dentro de nossas próprias casas ficamos também reclusos dentro de nós mesmos. Isso nos convida a refletir sobre uma civilização que prega permanentemente o consumo efêmero;

6- A sexta joga luz sobre o despertar da solidariedade adormecida em cada um de nós e amplifica o poder de propostas e alternativas em torno do bem comum;

7- A sétima serve como lente de aumento para as desigualdades sociais acentuadas pela pandemia revelando as condições dos sem teto, dos refugiados, dos idosos, dos sem dinheiro, dos coletores de lixo, das mulheres submetidas a abusos domésticos, etc;

8- A oitava revela como a epidemia atingiu o mundo de forma desigual por conta das lideranças, dos países com pequena densidade demográfica ou das medidas sanitárias tomadas por cada país;

9- A nona nos ensina sobre a natureza das crises. Se por um lado queremos retornar a estabilidade ou encontrar os culpados, por outro, nos tornamos mais criativos em busca de novas alternativas;

10- A décima nos dá a oportunidade de entendermos que a ciência não é um repertório de verdades absolutas e abre inúmeras discussões sobre a hiper-especialização, a atitude ainda antiga de guardar segredo sobre trabalhos e pesquisas médicas e coloca em pauta a cooperação definitiva;

11- A décima primeira revela a insuficiência de conhecimento durante crises e traz à tona a necessidade de novos modos de pensamentos capazes de responder à complexidade e ao desafio das incertezas;

12- A décima segunda põe em questão a ecologia da ação e revela a necessidade de um “new deal” ecológico-econômico: trata-se de prever a eventualidade do imprevisto e superar as contradições: prudência ou urgência, prolongamento do confinamento ou retomada econômica;

13- A décima terceira revela nossa dependência nas economias estrangeiras ao deixar muitos países desprovidos de produtos e produtores na pandemia. Coloca-se em discussão a desglobalização para salvar regiões e territórios;

14- A décima quarta joga luz sobre a fragmentação dos países da Europa e deixa uma esperança de não desintegração e separatismo da União Europeia;

15- A décima quinta, e última lição, refere-se talvez a mais importante, a lição sobre o planeta em crise. Ecologistas, cientistas e epidemiologistas apontaram que a desorganização dos ecossistemas e os atentados a biodiversidade favoreceram a emergência de alguns vírus como o Ebola e também a COVID-19.

Caro leitor e leitora, ao listar, com a ajuda do grande sociólogo Morin, as grandes lições de 2020, volto ao nosso oráculo de Delfos: a pandemia não explica nem prevê o que será o ano 2021, mas nos dá poderosas indicações para compreender o ano que virá. O pós-coronavírus traz a certeza de que o mundo de amanhã não será o mesmo de ontem. O futuro já está em gestação e ele precisa urgentemente respirar a proteção ao planeta, a regeneração do capitalismo, o combate às desigualdades, a humanização da sociedade. Respirar é o que nos mantém vivos. Inspirar e expirar tem a ver com as relações de trocas que fazemos, com dar e receber, com o que tem dentro e fora, com o individual e o coletivo. A respiração não é apenas uma função corporal. É o que nos mantém vivos biologicamente, politicamente, culturalmente e socialmente.

Que essa maratona da pandemia sirva para nos ensinar a maior lição de todas: a de que nós mesmos somos o próprio vírus e a própria cura, nós mesmos somos o sintoma e a vacina da humanidade.

Ilustração: Malte Müller

Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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