“Well, I’d rather see you dead, little girl

Than to be with another man” (Run For Your Life – Beatles)

Em 1965, os Beatles cantaram: “eu prefiro te ver morta, menina, a te ver com outro homem”. Sempre me intrigou o fato de afirmações como essa, carregadas de ciúme extremo, serem abundantes na cultura pop. Seriam expressões de amor?

Ao longo da vida, minha tendência quase sempre foi sentir pouco ciúme, talvez por acreditar solenemente na autonomia de cada um para fluir de acordo com seus desejos. Forçar o outro a estar conosco e/ou tentar proibi-lo de estar com outras pessoas me faz lembrar de um certo sistema educacional – aquele que nos aprisiona em carteiras enfileiradas e nos obriga a escutar as mesmas vozes por horas e horas, sem ao menos pedir nosso consentimento.

Ou seja: minha crítica à educação heterodirigida (hetero = o outro controlando o que eu aprendo) também se estende às relações heterodirigidas.

Muitas vezes, porém, o ciúme nos incendeia por dentro,  ainda que nossa intenção NÃO seja controlar as ações do outro.

Joli Hamilton, psicóloga e pesquisadora sobre o ciúme, argumenta que nossa reação perante esse sentimento costuma ser paradoxal. Quando sentimos ciúme, nós o tememos e o rejeitamos, mas quando é o outro que sente ciúme de mim, para algumas pessoas isso é encarado como uma “prova de amor”.

A ideia de que “o outro me quer tanto que não suporta me ver com outra pessoa” só pode ser normalizada em uma sociedade profundamente capturada pelo amor romântico – que por definição também é patriarcal, colonialista e monogâmico. Embora o ciúme de fato exista como um mix de sentimentos (medo, tristeza, raiva e vergonha) e possa ser detectado até mesmo em bebês, sua fetichização é uma característica da sociedade possessiva em que vivemos (“possessiva” de posse, mesmo, tanto de mercadorias quanto de pessoas).

O ciúme, que deriva do nosso medo primordial do abandono, se torna uma ferida muito mais dolorosa em um mundo altamente individualista e “casalcentrista”. Se eu não me sinto pertencente a nenhuma comunidade e acabo apostando grande parte das minhas fichas em uma única relação, é óbvio que eu terei muito medo de perdê-la. O “enclausuramento a dois” que ocorre em boa parte das relações amorosas que sobem a escada rolante é altamente potencializador do ciúme.

E se, além disso, essa única relação me proíbe de cultivar outras do mesmo tipo (exclusivismo monogâmico) e se coloca como superior e mais importante do que outras de tipos diferentes (hierarquização dos afetos), então eu não me vejo com outra opção senão me agarrar a ela.

Nesse cenário, quem mais sofre com a pedra pontiaguda do ciúme são as mulheres, de acordo com pesquisadores suecos. Embora o foco do estudo tenha sido fatores genéticos, minha hipótese é que são os fatores culturais que realmente fazem a diferença para explicar porque as mulheres tendem a sentir mais ciúme.

Enquanto os homens são estimulados a serem pintados como aventureiros, “garanhões” e desapegados em suas relações, o papel das mulheres costuma ser o de criar e manter a “harmonia familiar”. Caso não encontrem um homem para se casar e preferencialmente ter filhos, elas começam a escutar com cada vez mais frequência o famoso e indesejado “vai ficar pra titia” – que quase nunca é direcionado aos homens.

Para a mulher, o julgamento e a humilhação da sociedade em caso de perda de um parceiro é desproporcionalmente maior do que para o homem. Paradoxalmente, a demonstração de ciúme feminina é, em geral, menos aceita do que a masculina, o que contribui para a construção de uma imagem distorcida da mulher “louca” e “controladora”.

Soma-se a isso o fato de que a imensa maioria das mulheres já sofreu com relações abusivas, violentas e traumáticas envolvendo homens. Muitas foram traídas, enganadas e manipuladas sucessivas vezes em relacionamentos heteronormativos. Tal cultura opressora e machista, dentre inúmeros outros prejuízos às mulheres, tende a dificultar a construção de confiança em relações amorosas futuras.

Quando o medo e o trauma se instalam, o ciúme é uma reação emocional instintiva do nosso corpo.

É importante dimensionar tudo isso para não cair na armadilha de individualizar a experiência do ciúme, culpabilizando a pessoa que o sente. É possível que o próprio indivíduo encontre saídas para lidar melhor com o seu sentimento, como veremos mais à frente, mas isso não pode esconder o fato de que o ciúme é um fenômeno contextual e cultural, ou seja, ele é influenciado diretamente pela estrutura simbólica e social tóxica na qual estamos inseridos.

As raízes do ciúme

Praticamente todos nós já sentimos ciúme alguma vez na vida e, com alguma frequência, ainda sentimos. Pode ser até que você acredite que já superou o ciúme em sua vida, mas é provável que em um momento futuro ele reapareça em outras circunstâncias.

O ciúme existe em um espectro, ou seja, ele varia de pessoa para pessoa e de momento para momento. Erradicá-lo completamente não é muito viável e tentar suprimi-lo não é muito saudável – embora nem sempre você precise processá-lo junto à pessoa da qual você sente ciúme.

Um entendimento básico é o de que ninguém é capaz de causar o ciúme que sentimos, assim como ninguém é a causa da sua raiva, do seu ressentimento ou mesmo da sua alegria. As situações, incluindo o comportamento dos outros, podem servir de estímulo, mas nunca são a causa do que você sente. Um acontecimento pode ser lido como altamente gerador de ciúme por uma pessoa, ao passo que pode passar completamente despercebido por outra – ou ser lido de uma maneira muito diferente.

Na verdade, a causa de nossos sentimentos é uma mistura complexa entre a situação específica + influências de contexto + experiências de vida e como as processamos ou não + estado biológico e emocional prévio. Em essência, as causas estão em nós mesmos e no nosso histórico de interações com o meio em que habitamos.

Se fosse o outro o causador do nosso ciúme, precisaríamos sempre tentar mudá-lo. Se nos vemos responsáveis pelos nossos sentimentos, ganhamos o poder de processá-los e, talvez, ressignificá-los.  A partir daí, ajustes e transformações na relação também podem ocorrer, mas o ponto de partida deixa de ser o julgamento e a acusação e passa a ser um convite à investigação conjunta: “Quais padrões estamos replicando?” “O que poderia ser?”

Como vimos, não há como se fechar em uma redoma anticiúme. Ele provavelmente irá acontecer, queiramos ou não, e não devemos nos sentir inferiores por senti-lo. O ponto é como você escolhe lidar e agir quando ele aparece.

O primeiro passo é aceitá-lo como uma experiência emocional legítima, ainda que possivelmente dolorosa e angustiante. Não adianta negar que ele não está lá ou tentar varrê-lo para debaixo do tapete.

“O problema não é que existem problemas. O problema é esperar que seja de outra forma e pensar que ter problemas é um problema” (Theodore Rubin)

Não é preciso que haja um rival – ou mesmo um motivo concreto – para que o ciúme ocorra. Muitas vezes, ele surge em nossa imaginação, sendo alimentado pela recusa em se abrir para o outro e, assim, tentar esclarecer os fatos juntos. Uma vez que admitir o ciúme e falar sobre ele com o parceiro(a) é difícil, as brechas de entendimento acabam nutrindo pensamentos irreais. Nesse sentido, o ciúme se torna um grande catalisador da ansiedade.

Embora ciúme e inveja sejam coisas diferentes, ambos possuem um elemento em comum: comparação. Recentemente, me deparei com um conceito de comparação bem interessante da Brené Brown em seu último livro, Atlas of the Heart:

“A comparação significa sentir-se pressionado pela conformidade, de um lado, e impelido a competir, de outro. É como tentar se encaixar e tentar se destacar simultaneamente” (Brené Brown, tradução livre)

O ciúme pode facilmente nos levar para esse lugar de pressão dupla – e isso acontece porque, quando o vivenciamos, ambas as vozes, “eu não me sinto parte dessa relação” e “eu não sou especial aos olhos dele(a)” parecem gritar em nosso interior.

Um outro ponto curioso que Brené Brown aborda no que se refere ao mecanismo de comparação é que não adianta o quanto desejamos nos livrar dele, é impossível. Não importa o quão “evoluído” você seja, você vai se comparar com o outro eventualmente. E é com essa mesma naturalidade que a comparação social surge nos seres humanos que deveríamos também aprender a reagir a ela, evitando a corrosão de autoimagem que pode surgir quando a levamos muito a sério.

O mapa não é o território. Tudo que é visto é sempre visto por alguém. “Melhor” e “pior” são apenas categorias de linguagem – bastante reducionistas, no caso. Quando você se ver atravessado pelo impulso da comparação, entenda que ela “reduz” e “distorce” sua experiência de realidade, comprimindo você e o outro até o exato tamanho das histórias que você tem contado para si mesmo.

Amor infinito

A forma com que encaramos o amor mudará radicalmente se o considerarmos uma experiência escassa ou abundante.

Seria o amor um bem finito, que inevitavelmente se divide quando é compartilhado? Ou seria ele um bem abundante, que se multiplica ao ser repartido?

“And in the end

The love you take

Is equal to the love you make” (The End – Beatles)

É curioso que os mesmos Beatles que escreveram “eu prefiro te ver morta, menina, a te ver com outro homem” tenham também escrito, quatro anos depois: “e no final, o amor que você leva é igual ao amor que você gera”.

Eu não sei exatamente o que John Lennon, Paul McCartney & Cia pensavam sobre relações amorosas, mas o fato é que existem muitas pessoas que ousam conjugar o amor de maneira diferente da norma da escassez. E elas têm muito a nos ensinar sobre o manejo do ciúme.

Os poliamoristas e, em geral, muitas pessoas que se percebem como não monogâmicas buscam enxergar o ciúme de outra forma. Não é que elas nunca se sintam inseguras e desconfiadas em suas relações. Como vimos, trata-se de um conjunto de emoções legitimamente humano. No entanto, ao contemplarem o fato de que seus parceiro(a)s podem cultivar relacionamentos amorosos com outras pessoas, o princípio não é “estamos terminados”, e sim “isso é saudável” – mesmo que o medo do abandono permaneça ali.

Pessoas não mono precisam aprender a encarar de frente o ciúme. Elas aceitam o fato de que muitos de nós somos capazes de sentir atração física e conexão por mais de uma pessoa ao mesmo tempo (mesmo em relações mono isso ocorre, ainda que nada seja consumado). Mas, ao contrário do que prega o senso comum, pessoas não monogâmicas não são imunes ao ciúme.

Joli Hamilton, que além de pesquisar sobre esse sentimento também é poliamorista, afirma que o ciúme pode ser percebido como um “valioso professor”.

Quando ele surge, as pessoas não mono tentam se lembrar de que elas não apenas amam seus parceiro(a)s, como também amam seus próprios valores pessoais de autonomia e abundância no amor. Assim, começam a desejar isso não somente para si mesmas, mas também para seus amores.

Com o tempo – e o destralhe da cultura romântica monogâmica –, é possível até sentir alegria genuína ao saber ou testemunhar seu parceiro(a) amoroso se conectando e sendo feliz com outra pessoa. É o sentimento de compersão, uma nova palavra que não por acaso foi criada em uma comunidade poliamorista.

Sentir compersão não quer dizer que você aprendeu a não sentir ciúme. Ambos podem conviver na mesma pessoa e na mesma situação: a emocionalidade humana é incrivelmente complexa.

Compersão significa torcer e se encantar com a plena realização do ser amado, inclusive amorosa e sexual, ainda que eventualmente eu não seja incluído nessa equação.

“Aquele que eu amo, desejo que seja livre até de mim” (autoria desconhecida)

Experimentar a compersão é libertador tanto para quem a sente quanto para quem a recebe. Ao meu ver, é uma linda forma de amar.

Além disso, outras estratégias que podemos aprender sobre o ciúme com os poliamoristas são:

O ciume é uma oportunidade de conexão. Em primeiro lugar, o ciúme nos explicita algo sobre nós mesmos, e para descobrirmos verdadeiramente esse algo, precisamos estar abertos para investigar, sem querer chegar a conclusões rápido demais. Dessa forma, ele é uma fonte de conexão interior. Além disso, o ciúme é uma forma de se conectar com o outro, especialmente quando há uma conversa empática e vulnerável entre os parceiro(a)s sobre o assunto. Em vez de vitimismo, julgamentos e acusações, a maneira mais promissora de iniciar uma conversa sobre ciúme é: “Posso compartilhar com você o que eu estou sentindo e por que isso é importante pra mim?” Quando todos se sentem vistos, escutados e legitimados, a mágica acontece.

O ciúme abre espaço para pedidos honestos. Às vezes o ciúme pode ser curado com a própria pessoa aprendendo a recriar suas estratégias de cuidado de si. Por outro lado, às vezes é importante fazer pedidos específicos ao outro: “Será que você poderia passar as noites de quinta-feira comigo?” “Eu gostaria que você me apreciasse mais, estou sentindo falta disso” “Você poderia propor e já começar a planejar nossa próxima viagem?” “Estou constantemente me sentindo inseguro na nossa relação. Você topa pensar comigo em formas para que eu consiga sentir mais atenção, cuidado e responsividade?” Pode parecer assustador no começo, mas depois a gente fica se perguntando porque é que nunca aprendemos a fazer pedidos claros antes.

Embora um não seja o oposto do outro, o ciúme pode nos levar à compersão. É possível encarar o surgimento do ciúme como uma pista para intencionarmos a compersão, ainda que ela possa ser experimentada mais no nível da razão do que da emoção no início. Nossos sentimentos influenciam nossos pensamentos, mas, com o tempo, nossos pensamentos, ideais, valores e intenções de vida também influenciam nossos sentimentos. O ciúme, como vimos, é uma reação ensaiada culturalmente – em alguns casos, quase um automatismo emocional –, mas isso não impede que ele comece a abrir espaço para uma investigação baseada na curiosidade: “Isso está acontecendo. O que poderia significar? Como eu escolho ver? Como eu escolho encarar?”

Todas essas ideias podem ser aplicadas não apenas pelos poliamoristas, como também em relacionamentos monogâmicos. Lidar com o ciúme de maneira intencional e cuidadosa é um treino constante e desafiador, mas os resultados compensam.

Que o futuro do amor e das relações siga enfrentando uma de suas principais dores. E que esse enfrentamento firme e gentil seja capaz de provocar transformação.

Referências

Who Gets More Jealous, Men or Women? Artigo na Psychology Today, por Jessica Schrader.

Atlas of the Heart. Brené Brown. 2021.

Compersion – the Opposite of Jealousy. Palestra de Joli Hamilton no TEDxEasthamptonWomen.

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Alex Bretas

Alex Bretas é escritor, palestrante e especialista em aprendizado autodirigido e lifelong learning. É o idealizador do MoL, uma comunidade de aprendizagem autodirigida, e coautor do livro Core Skills: 10 habilidades essenciais para um mundo em transformação. Colabora com as empresas na redefinição da sua cultura de aprendizagem e com os indivíduos na sua capacidade de aprender a aprender. Saiba mais em www.alexbretas.com

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