Escrevo esse primeiro artigo como colunista fixo do O Futuro das Coisas a 30.000 pés de altitude, num dos voos domésticos mais longos a partir de São Paulo. Não me considero, nem de longe, um futurista, não tenho capacidade para tal, mas venho sistematicamente colaborando com minhas reflexões e provocações sobre as cidades e nossa vida nelas, nesses tempos estranhos em que vivemos, onde presente e futuro se entrelaçam constantemente e por isso mesmo deixo aqui público o meu orgulho de ter sido convidado para fazer parte desse time.

Olho pela janela em meio as nuvens e, voando para Natal, próximo ao Natal, é inevitável não falar sobre um período no qual as cidades costumavam vibrar acima da média, incluindo minha cidade natal, Santos.

Embora, depois de adulto, eu constantemente amaldiçoe a cidade onde nasci, eu tive uma infância bastante divertida, vivendo descalço e sem camisa 24 horas por dia como todo moleque caiçara que se preza. Um dos eventos que me faziam calçar e vestir algo era justamente a época que antecedia o Natal. Esse era um período esperado o ano inteiro, oportunidade de sair de casa a noite e de ver a cidade à noite e de quebra, ainda ganhar algum brinquedo.

Santos, em alguns momentos, se julgava Miami. Eu morava na Santos Beach, o centro ficava na Santos City. Minha avó, companheira inseparável nas minhas primeiras aventuras fora de casa, em viagens que ela carinhosamente chamava de “viagem de lavadeira” – saíamos sempre às sextas-feiras à noite e voltávamos aos domingos à noite – era a responsável por me levar à “cidade” naquela semana mágica que antecedia o Natal.

O roteiro era sempre o mesmo. Pegávamos o ônibus elétrico número 08 (trólebus, não um ônibus elétrico de uma Tesla da vida) descíamos na praça Mauá, no ponto final, mais ou menos em frente ao Café Carioca, onde muito antes dos controles sanitários e Anvisas da vida, você pedia um pastél de queijo e brotava na sua mesa um prato com dezenas deles e você pagava o que consumia, e claro, nunca era um só. Depois batíamos perna pelo centro da cidade atrás de algo que não me lembro exatamente o que era, até porque o que comprávamos não era nada relevante diante da aventura em si.

Lembro do meu fascínio pela “cidade” naquelas curtas semanas. Luzes, músicas, barulho, letreiros, movimento, pessoas, muitas pessoas. O próprio Flanêur ficaria com inveja de tanto que andávamos, apreciando tudo aquilo.

Falo de um tempo pré-shopping, em meados dos anos 1970. Não sei precisar quando as lojas dos centros Brasil afora deixaram de abrir até às 22h no final de ano. Suspeito que tenha sido junto a popularização dos shoppings, supostamente mais confortáveis e práticos. Provavelmente junto a isso começou o declínio dos centros brasileiros, sua mudança de perfil e por sua vez o desinteresse de grande parte da população. O glamour foi substituído pelo comércio mais popular, algo que por si só não é problema algum, mas que teve um efeito um tanto devastador em várias centralidades deixando uma arquitetura belíssima abandonada em prol do passear pasteurizado da grande maioria dos shoppings.

Se os shoppings podem ter sidos os primeiros vilões, hoje vivemos um novo ciclo de depreciação dos centros, ou de qualquer outra área majoritariamente comercial incluindo os próprios shoppings: as compras online. Nesse momento, alguém pode estar pensando, ainda bem que essa criatura não se julga futurista mesmo, afinal não existe nenhuma novidade nesse movimento. Engano.

Embora o consumo online nos acompanhe há tempos, a pandemia complicou um pouco as coisas ao mesmo tempo que facilitou. Confuso? Explico: facilitou para você e complicou para as cidades. Você, assim como eu, deve ter se acostumado com as maravilhas do delivery, essa coisa linda de comprar de casa, de pijama, e receber, em casa, de pijama no dia seguinte. Num primeiro momento isso parece o mundo ideal. Escrevi aqui, nesse mesmo portal, sobre a dificuldade de comerciantes e marcas em lidar com esse novo momento, seja pela dificuldade em se adequar as novas tecnologias, seja pela total incapacidade de promover uma experiência positiva que vá além do produto ou serviço comoditizado que oferecem. Se eu posso comprar tudo de casa e as lojas não me oferecem nada além dos produtos, por que diabos sairia de casa especificamente para comprar algo que posso comprar pela internet? Ganho eu, perde a cidade.

Pois bem, a coisa toda complicou ainda mais. Agora não é só uma questão desse ou daquele comércio, é uma questão que impacta ruas e bairros inteiros. Em recente artigo na Bloomberg Cities li o que algumas cidades no mundo chamam de delivery de 15 minutos. Se você como eu, achava lindo receber em 24 horas, imagina agora em 15 minutos? Mas claro, nada é tão simples assim. Depois das “dark kitchens” tão populares na pandemia, chega a vez das “dark stores”. Esse delivery à jato só é possível graças a esse novo modelo de loja, que de loja não tem nada. Tratam-se de micro centros de distribuição em lugares onde antes havia… lojas. As únicas pessoas que entram e saem das “dark stores” são entregadores apressados de olho nos prazos a serem cumpridos. Entendeu a diferença? Se antes o entregador de aplicativo tinha que ir em loja A, B ou C para cumprir sua entrega, agora as lojas A, B ou C se deslocam para um lugar, muito mais próximo de você, onde os entregadores se abastecem dos pedidos que você receberá em casa de pijamas em 15 minutos.

Mas qual o problema disso, não é uma maravilha? Como um apaixonado pelas cidades creio que não, ou pelo menos, não do jeito que se apresenta. Da mesma forma que outro movimento disruptivo impactou bairros inteiros com o AirBnb, gentrificando, criando movimentos sazonais que por sua vez quebraram o comércio local, e precisou ser regulado (quando não proibido), as “dark stores” podem ter o mesmo impacto, expulsando o comércio local e pior, tirando a vibração característica das áreas comerciais, que por muitas vezes as definem enquanto bairros ou cidades.

Ao mesmo tempo que é inútil negar as mudanças de comportamento e a evolução causada por elas e para elas, é inegável o desafio que gestores públicos tem pela frente com essa inovação e mudança dos comportamentos urbanos constantes, seja pela tecnologia, seja por eventos não previstos como a pandemia, seja pelos dois.

Enquanto as cidades precisam se adaptar e evoluir, ou para fazer o meu jabá, tornarem-se cidades antifrágeis, nós consumidores podemos fazer nossa parte, mesclando nossas compras digitais com o apoio ao pequeno comércio local, que inclusive nos salvou do desabastecimento durante os períodos de isolamento.

Entender a importância do pequeno comércio de proximidade, é entender a capacidade de ativação comunitária desses estabelecimentos, seu impacto na segurança pública como dizia Jane Jacobs, seu papel no cotidiano, não só das pessoas, mas também das cidades.

Infelizmente não visito mais a “cidade” com minha avó há décadas, tampouco posso fazê-lo com minha filha, primeiro porque não tenho mais a Dona Nilde para me fazer companhia e segundo porque não existe mais o centro vibrante e iluminado até a noite.

Se todos nós, consumidores e gestores públicos, não ficarmos atentos, talvez, num futuro não tão distante assim, não tenhamos mais centro nenhum, iluminado ou não.

Crédito da imagem da capa: Tiffany & Co

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Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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