Enquanto as cidades brasileiras já sabem quem serão seus representantes eleitos, os eleitores do Amapá ainda terão o segundo turno. Além do apagão que esse Estado sofreu, esse ano foi marcado por muitas “surpresas”. Escrevo “surpresas”, assim mesmo entre aspas, porque cabe aqui um grande questionamento: Será que é possível ter alguma certeza sequer sobre o futuro?

Se essa era uma dúvida, 2020 tratou de saná-la, embora a ideia de futuro possa ser essencialmente traduzida como incerta pra não dizer desconhecida, nos acostumamos a tentar prevê-lo, controlá-lo, domá-lo. Lembro perfeitamente, quando, no começo da pandemia, falou-se num evento Cisne Negro, eu mesmo cheguei a usar essa comparação mas rapidamente corrigi-la ao ver o próprio criador do termo dizendo que não se tratava de um evento do tipo, afinal, muitos haviam sido os estudos que cogitavam a possibilidade de uma pandemia, isso sem falar no cinema, sempre ele, adiantando o futuro que insistimos em perseguir, ainda que devidamente avisados.

O fato é que além de não conseguirmos prever o futuro, também não conseguimos dar muito atenção quando alguém nos avisa sobre ele. Por um lado, finge-se que se tem uma capacidade clarividente e, por outro, simplesmente ignora-se os estudos científicos capazes de, pelo menos em parte, prevê-lo. 

Mas o que isso tem a ver com as cidades e os novos prefeitos?

Os novos prefeitos pegarão suas cidades muito diferentes de seus antecessores. Quanto a isso parece não haver mais dúvida. O problema ainda maior é que não só as cidades mudaram, mas o mundo mudou, e, provavelmente, nunca mais será igual ao que foi até janeiro de 2020. Não se trata de uma visão pessimista de mundo, mas uma constatação óbvia, pragmática. O mundo mudou e nós mudamos com ele, ou por causa dele, ou a nossa mudança mudou o mundo, não importa.

Me encontro em meio a pandemia com algumas suposições com embasamento considerável, embora ainda suposições. Seremos mais urbanos, continuando a tendência de alta dos índices de densidade dos centros urbanos, ou retomaremos ao espraiamento, à vida próxima a natureza, ou a alguma ação de marketing bem elaborada que tem seu começo ainda no século XIX? Seremos mais globais ou nos renderemos ao nacionalismo populista? (desculpem, não consigo desassociar essas duas palavras), e talvez a questão mais delicada e importante de todas, seremos mais solidários ou mais individualistas?

Escrevo esse artigo ainda sob o efeito de duas noites muito mal dormidas após assistir ao ótimo e absolutamente indigesto documentário “Cercados”, que conta a labuta dos jornalistas que se expõem diariamente na tentativa de criar canais de informação independentes das redes de fake news que assolam o mundo. Ao mesmo tempo que me indigno, sinto um enorme alívio de estar mais na posição que se tornou alvo fácil de governos e apoiadores.

Mas a indignação com as questões levantadas pelo documentário talvez venha pela certeza escancarada que existe uma grande parte da população alinhada às ideias do atual governo, e nesse momento a dúvida surgiu em forma de insônia: como realizar processos colaborativos e cocriativos com pessoas que de um lado gritam “mito”, imitam toscamente uma mistura de soldados gregos e grupo extremista, ou ainda, imprensa comunista gayzista e de outro a turma que acha que o ex-ministro da justiça é um agente da CIA e que Venezuela e Cuba são exemplos de democracia. Como colocar essas pessoas para trabalhar juntas?

Colaboração é a chave

Se aprendemos alguma coisa nesses trinta anos passados em oito meses, é que não conseguimos fazer tudo sozinhos, até o mais nacionalista populista sabe disso, com a diferença que ele se entrincheira com seus pares e irmãos de pátria (nunca pensei que esse termo faria um dia sentido e muito menos que iria utilizá-lo em um artigo sobre cidade e política). Por não poucas vezes escrevi que as comunidades com maior vitalidade saíram- se melhor no mundo pandêmico do que as comunidades que nem comunidades eram.

Se os processos colaborativos e cocriativos já eram trabalhosos e difíceis, quem dirá agora num mundo polarizado como o atual. Essa tem sido uma pergunta recorrente em palestras Brasil afora, como juntar esse povo que pensa tão diferente? Minha hipótese, que ponho em prática diariamente, e aqui fica a primeira dica para os prefeitos, é encontrar aquilo que junta indiscutivelmente essa turma tão diferente, uma dor conjunta (que geralmente é mais fácil de ser identificada do que um sonho conjunto) e partir daí. Deixe a política partidária-ideológica de lado e concentre-se no ser humano, no indivíduo que está ao seu lado ou à sua frente. Antes de pensarmos de forma coletiva, cultural, subcultural é preciso entender os indivíduos e dar a eles a oportunidade de conexão, criando um novo comportamento, agora diante de um grupo até então desprezível.

Mas isso não é tarefa fácil, é preciso vontade antes de tudo, mas uma considerável dose de persistência e claro, conhecimento. Conseguir a participação das pessoas em algo que podemos chamar de “bem maior” não é fácil. Para isso toda a tecnologia é bem vinda, e para mim, esse é um dos pontos que faz uma cidade ser de fato inteligente. É preciso criar sistemas, ferramentas e plataformas de fácil interação, não só fácil como prazerosa. Não pode ser como reunião de condomínio ou como consulta pública, ou melhor, não pode ser para inglês ver.

Mas já que eu falei de tecnologia

Mas a tecnologia não se limita a unir as pessoas, embora essa já fosse uma conquista enorme, é preciso entender que a cidade se tornou algo muito além do seu território físico, seu hardware. A possibilidade de novas ondas, vírus e lockdowns nos aponta a uma necessidade ainda que não inédita, recente, a de se pensar a cidade (e o bairro, o país, o estado, etc…) de forma desterritorializada, ou como prefiro chamar, é preciso pensar na supraterritorialidade dos lugares.

Há muito se fala sobre a cidade como o lugar do encontro, da interação. Se essa interação não se dá mais fisicamente, ou melhor, presencialmente, então onde está essa cidade? Acho que o primeiro que me alertou para isso foi o amigo e também arquiteto Caio Vassão. Já tinha lido um de seus artigos sobre isso e estressamos esse assunto em meio a uma das “lives para o fim do mundo” que promovi nos momentos mais punks da pandemia.

Como disse, embora não seja uma discussão nova, e já existam alguns ótimos exemplos internacionais como os projetos recentes de turismo virtual das Ilhas Faroé, ou a nação digital do e-Estonia, nosso governo ainda está longe de entender a cidade como um ativo que pode ser também intangível.

Lá vem a intangibilidade mais uma vez…

Num mundo desterritorializado de uma sociedade desmaterializada, o que nos resta é o intangível.

Onde eu estou não importa, o que eu experimento importa. Trabalho, relacionamento, esporte, cidade, país, tudo isso e muito mais foi transformado esse ano.

Aos novos prefeitos é preciso criar novos mecanismos de relacionamento com a cidade, relacionamento interno e externo. Cada vez fará menos sentido ficar numa fila para um serviço público, aliás isso já é uma vergonha, uma vez que a tecnologia para esse tipo de uso está disponível há tempos. Fará menos sentido deslocar-se para a realização de alguma tarefa burocrática, ou ainda, fará cada vez menos sentido visitar uma cidade, estado ou país fisicamente ( ok, exagerei muito aqui pra explicar o meu ponto) pelo menos numa primeira vez, ou ainda, principalmente em momentos de crise sanitária, crise essa que inclusive pode inviabilizar por longos períodos a presença física de visitantes em alguns países específicos.

Se o hardware não era lá um grande diferencial há tempos, agora ele precisa ser complementado pelo software, ou mais do que isso, pela “alma do lugar”. É a experiência com essa alma que cria valor aos lugares, ou como repito desde sempre, se fossemos a Nova Iorque para exclusivamente vermos a Estátua da Liberdade, poderíamos economizar um belo dinheiro, além da economia de energia coma burocracia necessária para o visto, simplesmente andando alguns quilômetros até a loja Havan mais próxima, e ainda ganharíamos uma visita a Washington de brinde.

É com essa alma, esse ativo estratégico intangível que os novos governantes precisam estar atentos. Essa alma, inclusive, é responsável para suprir as necessidades do “corpo”, entender esse espectro dos lugares é se colocar de forma assertiva e eficiente num mercado ávido por talentos, visitantes, investimentos, recursos humanos e econômicos.

Claro que diferente das empresas, as prefeituras não precisam gerar lucro, mas quanto mais dinheiro elas gerarem, maior deverá ser o estado de bem estar social da população.

O futuro é frágil

A “Cidade Antifrágil” vem sendo meu objeto de estudo e trabalho nos últimos anos. O conceito criado por Nassim Taleb, parte da ideia onde é preciso ir além da resiliência, onde enquanto a resiliência é a capacidade dos elementos voltarem a sua forma original após um evento traumático, a antifragilidade é a capacidade de evoluir após um evento traumático, aprimorando-se ante ao caos.

A minha “fórmula” para a cidade antifrágil, começou com três dimensões e hoje já são doze. Incialmente, identidade do lugar, que nesse artigo abordei como resultado dos processos participativos e do uso melhor a mais frequente da tecnologia e da vocação, e a opcionalidade, diretamente derivada da antifragilidade, que é a criação/identificação de outros vetores de desenvolvimento econômico de um lugar, cidade ou país.

A opcionalidade é outra lição importante de 2020. Quem depositou todas as fichas até então em um único vetor pode não sair muito saudável no fim de toda essa loucura. Esse é um aprendizado para os governos municipais, a diversificação. Claro, diversificação com origem na identidade e vocação do lugar. Não precisa de um grande esforço de criatividade para imaginarmos o que aconteceu com grande parte das cidades turísticas ou majoritariamente turísticas do mundo ao longo desse ano.

Se o futuro é o incerto e frágil, a cidade antifrágil é o presente, dinâmico e adaptável, colaborativo e conjunto, físico e virtual.

Se não se pode combater os problemas do futuro com soluções do passado, é preciso estar apto a combater os problemas do presente com as soluções do presente. Isso não significa uma visão imediatista sob nenhuma hipótese, mas sim a compreensão de que o pensamento estratégico, e última instância, a visão de futuro, passam por projetar ferramentas e sistemas capazes de lidar com o hoje e toda a sua complexidade e velocidade ao invés de tentar prever o futuro, pelo simples fato do presente ser o tempo sobre o qual ainda temos algum controle, diferente do futuro, sempre mutável e incerto.

Na dúvida, aposto minhas fichas em processos gerenciais e decisórios mais compartilhados, próximos e adaptáveis. Quanto às bolas de cristal, bom, deixo-as no universo da fantasia, ainda que o dia-a-dia do nosso país esteja cada vez mais distante de uma realidade plausível.

Ilustração: Brian Rea

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Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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