Toda vez que alguém pergunta o que faço, típica pergunta que só acontece em São Paulo, eu fico numa enorme saia justa. Se falar minha atuação, onze em cada dez pessoas farão cara de interrogação; se tentar sair pela tangente, acabo colaborando com a confusão que há anos trabalho para esclarecer. Na falta de uma tradução satisfatória, usamos no Brasil o termo Place Branding, que se não bastasse o anglicismo um tanto irritante, já vem carregado por si só de uma série de confusões históricas. O termo place, passada a barreira da língua, torna-se o menor dos males, a coisa encrenca mesmo quando chega no branding, aí vira a festa do caqui, publicidade, design, marketing, logotipo, desenhinho, corzinha, letrinha, e pronto, temos a tempestade perfeita.

Da mesma forma que branding não é, e nem nunca foi, publicidade ou design ou mesmo marketing, place branding trilha o mesmo caminho comum. A cada determinado espaço de tempo somos atingidos por um termo, um neologismo, uma reinvenção, que se tornam queridinhas de público e crítica. Vimos isso acontecer com enorme impacto no design: nail design, cake design, design de sobrancelha. O design foi tão aceito na sua importância que hoje tudo é design. Ainda que muita coisa de fato seja design, essa massificação do termo talvez, penso eu, tenha trazido mais problemas do que benefícios para os profissionais da área. 

Antes de tudo é preciso entender que branding (que vem do ato contínuo de construir marcas e já explicita, no próprio nome, que uma marca é um “ser” vivo, em constante adaptação, evolução) é uma ideia, um ativo intangível associado (originalmente) a determinada empresa/ marca/ produto ou serviço. Isso já foi extensamente discutido no mercado, na academia e até na mídia e hoje é relativamente fácil, ainda que não saibamos exatamente o nome ou a expertise, entender o que uma marca representa.

Todos nós estamos cercados por marcas. Você está lendo esse texto num computador, ou num dispositivo qualquer, produto de uma marca. Talvez você o ame, talvez você o odeie, mas dificilmente, hoje em dia, você terá uma relação de indiferença. Pode ser aquele último modelo de notebook que você deu um gás danado pra conseguir comprar ou aquele laptop velho do seu trabalho que te empurraram porque você chegou por último na empresa em tempos de trabalho híbrido e sobrou para você, o fato é que a marca desse computador tem impacto (sofre e promove) sobre essa sua sensação.

Se hoje essa relação entre pessoas e marcas é de fácil percepção, quando falamos dos lugares isso fica ainda mais claro, mesmo que você até agora nunca tenha parado para pensar, que um lugar pode ser (e quase sempre é, quer queiramos ou não) uma marca. Ao pensar em algum lugar do mundo com o qual você se identifica – ou acredita que se identificaria –, automaticamente saberá dizer o que aquele lugar representa, pelo menos para você. Aqui, faço uma pergunta que vai diferenciar automaticamente o place branding de todo o resto. Esse lugar com o qual você se identifica, você sabe qual o logotipo dele? Aliás, você sabe se ele sequer tem um logotipo? Sabe qual o slogan? Quais as ações promocionais? Não, claro, afinal nada disso tem importância quando falamos de lugares.

Esse sentimento que temos em relação a determinado lugar é o que chamamos de marca-lugar (place brand) e no fundo, o place branding trabalha continuamente para fortalecer ou desenvolver esse sentimento, partindo da identidade, ou seja, da própria comunidade. Todas as ações de promoção, venda, divulgação e até construção são subsequentes, afinal se a marca-lugar é resultado e resultante da identidade do lugar, nada mais óbvio do que o alinhamento de todas as ações em torno dessa marca-lugar.

Por isso me causa estranheza quando vejo, continuamente, ações de promoção de marca-lugar serem divulgadas como a própria marca-lugar. Recentemente, a discussão tem se concentrado na relação entre I.G (indicação geográfica) e marcas-lugar. Antes de aprofundarmos na relação entre os termos, precisamos entender o que é uma I.G. Segundo o governo brasileiro:

O registro de Indicação Geográfica (IG) é conferido a produtos ou serviços que são característicos do seu local de origem, o que lhes atribui reputação, valor intrínseco e identidade própria, além de os distinguir em relação aos seus similares disponíveis no mercado. São produtos que apresentam uma qualidade única em função de recursos naturais como solo, vegetação, clima e saber fazer (know-how ou savoir-faire). O que é Indicação Geográfica? Como obter o registro? — Ministério da Agricultura e Pecuária (www.gov.br)

A definição é muito clara, inclusive no próprio nome, ao limitar a indicação geográfica ao território específico, seja através dos recursos naturais disponíveis, seja através do saber fazer local. Aqui, precisaremos aprofundar a discussão e fazer algumas bifurcações conceituais. Comecemos pela mais óbvia: se uma marca-lugar é o sentimento que mantemos por determinado lugar, a indicação geográfica, através de seus produtos e serviços pode contribuir significativamente para esse sentimento desejado por estrategistas e gestores dos lugares. Exemplos disso são abundantes. Lugares idílicos como a Toscana envolvem, em seu “pacote de ativos”, uma produção vinícola reconhecida mundialmente. As pessoas continuariam amando a Toscana, suas belas paisagens e cultura abundante sem os reconhecidos vinhos Brunellos e Chiantis Clássicos? Provavelmente. Tudo isso ajudou a fortalecer os sentimentos em relação a esse lugar? Sem a menor sombra de dúvida.

Dito isso, podemos concluir que as indicações geográficas estão inseridas no universo do que podemos chamar de ativação de marca-lugar, sendo uma estratégia importantíssima para a divulgação, promoção e fortalecimento das cidades e regiões, mas não se trata, em momento algum, da marca-lugar em si.

Uma marca-lugar, deveria ser muito mais abrangente e plural do que uma determinada produção (material ou imaterial) por mais relevante que essa produção possa ser. Continuando no mesmo exemplo podemos facilmente comprovar que muito além dos vinhos D.O.C (Denominazione di Origine Controllata) toscanos, a região conta com outros produtos e outros ativos incrivelmente relevantes, como por exemplo, todo o patrimônio cultural e artístico do Renascimento presente em sua capital Florença.

Se a indicação geográfica fosse a marca-lugar toscana, Leonardo DaVinci, Dante e Donatello, entre tantos outros, estariam de fora desse sentimento, e, portanto, dessa marca-lugar. Parece absurdo? E ainda tem as paisagens, a arquitetura, a gastronomia… A Toscana, e provavelmente toda a Itália, é um exemplo bastante grandiloquente, mas poderia ser o Brasil. Imaginou se fossemos só o “Café do Brasil”? Onde estariam nossa arte, cultura, comportamento, música, dança, arquitetura, criatividade, inovação? O café, assim como tantos outros produtos tangíveis e intangíveis nos posicionam mundo afora, mas eles não são o Brasil propriamente dito.

Agora que ficou claro a importância das indicações geográficas da mesma forma que esclarecemos que marca-lugar e I.G, embora umbilicalmente conectados, são coisas diferentes, cada um com sua importância, podemos ir adiante para um face mais complexa do assunto. Indicações geográficas, se referem, por definição, ao território, como vimos na citação do governo federal. O território é, por sua vez, um tema central na discussão do place branding, especialmente no mundo pós pandemia.

Muito se discutiu, e escrevi extensivamente aqui mesmo no O Futuro das Coisas, sobre a função do território nas marcas-lugar, ou melhor, o que seria o território após a pandemia. Sempre fui crítico ao termo marca-território, ao entender que uma marca-lugar, pode e deve ir muito além do seu território. O conceito delleuzi-guattariano de desterritorialização foi acelerado, atualizado diante da crise sanitária. Era preciso, definitivamente, pensar em formas de levar a experiência de uma marca-lugar para além do seu território, uma vez que ninguém, durante um período incerto, poderia visitá-lo, independente do motivo ou objetivo.

Países e cidades mais maduros, do ponto de vista do place branding, correram para desenvolver ações que levassem seus ativos para um mundo agora preso dentro de quatro paredes, foi o caso de Helsinki e das Ilhas Faroé, entre outros.  A desterritorialização é um processo de essencial compreensão para as cidades e países contemporâneos, ou seja, imaginar formas de levar uma experiência autêntica para além de seu território em uma postura mais ativa do que a passividade tradicional de apenas publicitar o lugar à espera de visitantes ou compradores de determinado produto, serviço ou destino.

E aí, voltamos às indicações geográficas. Como elas funcionam num mundo desterritorializado? Se a primeira impressão pode ser a de que seria algo fora do seu tempo, já que o território em si aparentemente perdeu um pouco da sua importância (claro que menos para o turismo e mais para a atração e retenção de talentos por exemplo) me parece que o caminho pode ser justamente o oposto.

I.Gs fortes e conectadas com a marca-lugar podem amplificar a identidade dos lugares e levá-los para muito além de suas fronteiras. A palavra-chave aqui é justamente a conexão, entre território e marca-lugar, não como sinônimos, mas como complementos. Se na desterritorialização precisamos, de todas as formas, fortalecer nossa identidade de lugar, ainda que distante de nossa origem, uma boa estratégia de I.Gs, autênticas e relevantes, podem contribuir de forma significativa para o sucesso dos lugares. O contrário é igualmente verdadeiro, marcas-lugar fortes alavancam indicações geográficas ao ponto de encontrarmos um “dilema Tostines”.

Será que as I.Gs são fortes porque vêm de marcas-lugar fortes, ou as marcas-lugar são fortes porque tem I.Gs (ainda que não formatadas estrategicamente) fortes? A resposta, é uma outra pergunta: Isso interessa?

Se as estratégias de promoção e fortalecimento de uma marca-lugar devem ser alinhadas e uníssonas quanto ao conceito, não faz muita diferença para um lugar a forma como sua percepção é criada, se pela cidade, país ou estado, ou se por algum ativo tangível ou intangível que nos impactou direta ou indiretamente. Essa soma de dimensões capazes de criar sensações poderosas nas pessoas é o que chamamos de marca-lugar. Essa impressão criada a partir de várias dimensões, quando atrelada aos países, costuma ser chamada de Soft Power, forma de influência na percepção de terceiros através de características culturais e de identidade (entre outras) que se opõe ao Hard Power simbolizado pelo poderio militar e pela economia/PIB, mas nesse caso específico, já é assunto para outro artigo.

Imagem da capa: Visit Faroe Islands

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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