“Bacurau” foi lançado em 2019, mesmo ano em que “Joker” e “Parasite” chegaram aos cinemas para trabalhar a questão da desigualdade social de diferentes formas. O título brasileiro, no entanto, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, tornou-se uma ode à esquerda nacional ao traduzir na ficção muitos sentimentos que permaneciam entalados na garganta ou então dissolvidos entre memes nas redes sociais.

Seguindo uma fórmula bastante hollywoodiana, diga-se de passagem, o longa comporta um hibridismo de gêneros que se consolidaram nos Estados Unidos, como é o caso do western, ficção científica, terror e, mais especificamente, o gore — subgênero do horror em que há um foco maior em imagens literalmente viscerais. Mas o gore aqui aparece de uma outra forma que não simplesmente o choque visual do exploitation para então carregar um nível de simbolismo que encontra paralelo com a obra da filósofa mexicana Sayak Valencia em seu livro “Capitalismo Gore”.

Nesta obra, Valencia faz, justamente, um paralelo entre como o capitalismo despedaça e desvaloriza a vida humana de uma forma parecida com o narcotráfico — a diferença é que, no caso dos narcos, a linguagem da violência é mais explícita. Diferentes pesquisadores analisaram “Bacurau” a partir dessa lente, entendendo, portanto, que o elemento fantástico do longa foi um catalisador do desejo de vingança e resistência que pairava entre os brasileiros àquela época.

No filme, conhecemos um vilarejo chamado Bacurau que se torna alvo de uma milícia americana contratada por um político que deseja acabar com a municipalidade que não irá apoiá-lo nas próximas eleições. Comandados por Michael, interpretado por Udo Kier (ator conhecido por participações em filmes gore), o grupo de assassinos estrangeiros tornam a sua missão gamificada com drones e estratégias de competição. 

Para obter sucesso em sua empreitada, o grupo ainda contrata um casal brasileiro para investigar Bacurau, mas estes personagens não são da cidade e sim originários do sul brasileiro. Em uma marcante cena, quando o casal leva informações para os estrangeiros, eles chegam a tentar justificar sua superioridade em comparação aos moradores de Bacurau uma vez que são oriundos de uma região mais rica e desenvolvida, que possuem ascendência europeia e são brancos. Bastou isso para que os assassinos gozassem de sua afirmação porque, no fim das contas, a eles pouco importa a tonalidade da pele quando sua origem é, de qualquer forma, inferior.

Entre outras minúcias que permeiam a narrativa, o que fica evidente é que Mendonça Filho e Dornelles se valem de uma fórmula tarantinesca (referente ao diretor Quentin Tarantino) ao engendrar uma vingança comandada por um criminoso foragido. Lunga, o cangaceiro queer, retorna a Bacurau depois de ser solicitado, o que inicia um plano de guerrilha no qual os moradores da vila recuperam os artigos históricos de um pequeno museu local (e que se assemelha ao Museu de Canudos) para punir os invasores. Ao final, decapitações são performadas como regia a prática cangaceira, mas também conforme ilustra o arco narrativo de Tarantino em “Inglorious Basterds”.

É curioso observar como “Bacurau” se utiliza desses códigos estrangeiros ao mesmo tempo em que também inclui os elementos próprios daquela população e do que seria uma identidade sertaneja imaginada pelos diretores. Mais recentemente nos estudos das ciências sociais, o conceito de políticas de reconhecimento ganharam força a partir de Charles Taylor e encontraram ressonância também em uma nova avaliação da ideia do Complexo de Vira-Latas diagnosticado outrora por Nelson Rodrigues. 

É isso o que aborda Eduardo F. de Oliveira Jr em seu artigo “Do Complexo de Vira-Lata ao Multiculturalismo Cru”, no qual descreve justamente aquilo que Rodrigues observou como uma idiossincrasia entre o momento no qual o brasileiro voluntariamente se sente inferior a tudo e todos e quando, diante de uma vitória, por exemplo na Copa, finalmente se vê no direito de desfilar pelas ruas como se fosse dono do mundo.

Oliveira Jr ressalta que, assim como houve um apagamento histórico das outras vozes que habitavam o Brasil para que apenas o colonizador contasse seu ponto de vista, fomos também orientados a seguir um modelo de vida e sociedade que não condizia com a nossa história e contexto. Ao ler esse argumento, lembrei-me dos seriados que mostravam a caracterização da corte portuguesa no Rio de Janeiro a se definhar no calor. Isto é, perucas e múltiplas camadas de roupas não condizem com a nossa realidade, mas fomos ensinados a seguir essa etiqueta e nos sentir inferiores por não conseguir nos adaptar. 

Com isso também se soma a questão do embranquecimento e a tentativa de gerar herdeiros com pessoas de pele mais clara de forma a eliminar o que, a priori, era considerado inferior — as origens africanas e indígenas. A partir da lógica do darwinismo social, entendia-se à época que havia uma correlação entre uma certa superioridade civilizatória e raça, o que justificava a busca pela erradicação do negro, do índio e do mestiço na própria genética do brasileiro. Daí já se fermentava o complexo de vira-lata que seria mais tarde abordado por Nelson Rodrigues, ainda que em um contexto desportivo.

A maneira com a qual Oliveira Jr vê uma possível saída a essa cilada é através da criação de ações afirmativas sustentadas pelo Poder Público e também pela Mídia, de modo que busquem o multiculturalismo, porém não aquele conforme o entendimento de Bauman, que o afirma como um projeto, na realidade, conservador ao visar à “transformação da desigualdade social, fenômeno cuja aprovação geralmente é altamente improvável, sob o disfarce de ‘diversidade cultural’, ou seja, um fenômeno merecedor do respeito universal e do cultivo cuidadoso.” 

O multiculturalismo cru proposto por Oliveira Jr, portanto, não mascara a desigualdade social, mas sim “reconhece a coexistência pacífica de diversas culturas em um mesmo ambiente, mescla-lhes e alcança o devir”, sendo este termo ora explicado por Deleuze e Parnet como algo sui generis e original, que não advém da assimilação da cultura estrangeira, mas sim de sua “deglutição” como sugeriu Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico.

Curiosamente, uma das mais tradicionais editoras a publicar ficção científica no Brasil se chama Devir — não sei até que ponto de propósito ou não. Mas o que ocorre em “Bacurau” é que essa mescla de referências estrangeiras não ocorre como uma assimilação, mas sim de uma deglutição. Nos anos 1980, à medida que a ficção científica se consolidava no Brasil, houve, justamente, essa controvérsia entre escritores que ora defendiam seguir os moldes da literatura anglófona ou então que, de fato, deveríamos nos inspirar pela antropofagia de Andrade.

Na realidade, temos até o caso do escritor Ivan Carlos Regina que chegou a escrever um Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, no qual argumenta justamente esse desejo de devorar o estrangeiro e deglutir em algo novo que, por exemplo, se daria no gênero tupinipunk proposto pelo escritor Roberto de Sousa Causo como uma resposta ao cyberpunk estadunidense. Hoje, já vemos subgêneros brasileiros como sertãopunk e amazofuturismo que apontam para uma nova onda de autores que têm buscado através de sua obra criar ações afirmativas para a superação do complexo de vira-lata (conhecido também na ficção científica como Complexo de Capitão Barbosa). 

“Bacurau”, ao conquistar uma das maiores bilheterias nacionais, mesmo ao ser lançado no fim de agosto de 2019, provou ao brasileiro que somos capazes de criar filmes de ação e com crítica social à mesma maneira que os “gringos”. Mais do que “Joker” e “Parasite”, “Bacurau” conversou com a nossa realidade não apenas reservada em um “ambiente seguro” de historicidade, mas sim despontando para um futuro próximo que lida com a globalização e a permeação das novas tecnologias a serem reapropriadas (deglutidas) por usuários não-hegemônicos. 

Na futurologia e nas pesquisas por inovação no Brasil, é importantíssimo que aprendamos com “Bacurau” a noção de que não devemos nos isolar das referências externas ao nosso contexto (primeiro porque é praticamente impossível e depois porque não é recomendável), mas sim que consigamos absorvê-las e “hackeá-las” para que funcionem de acordo com as nossas necessidades e contextos. Mais do que declamar uma ode em louvor ao Vale do Silício, precisamos ouvir o silêncio das periferias para entender que elas nunca estiveram silenciosas, mas sim silenciadas, como defende Monique Evelle.

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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