Nada na vida deve ser temido, se formos capazes de compreendê-lo. Agora é o momento de compreendermos mais, para que venhamos a temer menos” (MARIE CURIE)

Qual o risco de cairmos em uma zona de linearidade, com pouca ou nenhuma capacidade de reflexão (pensar)? A falta de consciência reflexiva pode nos levar a uma vida limitada, onde temos que nos sujeitar aos mecanismos de exclusão, ao desinteresse, à supressão da nossa subjetividade, não conseguindo nos libertar de uma postura apática.

Observar e refletir é uma condição intrínseca à natureza humana, mas será que pode estar em declínio? Estou refletindo o que pode impactar de alguma maneira esse possível declínio. Ao mesmo tempo que, mudanças culturais e o avanço da tecnologia e da globalização ampliam novas perspectivas e estimulam a criatividade e novos ciclos de inovação, também podem provocar o efeito contrário, se considerarmos, dentre outras coisas, que, dada a velocidade e complexidade dessas mudanças e avanços, se de fato estamos conseguindo não apenas acompanhar, mas também compreendê-los.

Sabemos que o imenso volume de informações gera uma “sobrecarga informativa” termo cunhado por Alvin Toffler em seu livro O Choque do Futuro (1970). Dadas as distorções e desigualdades da vida, a leitura do mundo é dificultada para aquelas pessoas que tiveram pouco ou nenhum acesso à educação. Então, será que esses avanços estão provocando maior inclusão, ou ao contrário, estão ampliando as desigualdades?

Não tenho a intenção de dar respostas, estou apenas provocando reflexões, para que não sejamos, tão facilmente fisgados a acreditar no que parece óbvio, ou consensual e para que possamos compreender melhor como surfar nesses avanços sem perder de vista os riscos.

A condição de observar e refletir está intimamente conectada à cultura de aprendizagem não linear e constitui a evolução humana da capacidade de ler contextos, reconhecer e interpretar realidades, considerando o fato de que, normalmente, só percebemos mudanças e tendências quando elas já estão em curso.

O risco de deterioração dessa condição aumenta cotidianamente se não formos capazes de exercer nossa autonomia para formular questionamentos e tomar decisões, compreendendo que a mudança é uma constante que deve ser usada para moldar e construir nosso futuro – em um momento presente cujas características evoluíram de volátil, incerto, complexo e ambíguo (VICA), para Frágil, Ansioso, Não-Linear e Incompreensível (BANI). Se estamos refletindo acerca de uma condição intrínseca à natureza humana e essencial ao desenvolvimento da autonomia cognitiva, o ideal é compreender as características do mundo BANI.

Estamos falando aqui não da simples observação, mas daquela que nos permite diante das complexidades, das aceleradas mudanças e das variáveis que estimulam a configuração e reconfiguração da realidade, pensar e tomar decisões conscientes. A forma que pensamos e tomamos decisões em um mundo Frágil, Ansioso, Não-Linear e Incompreensível têm ganhado ano após ano, maior relevância como objetos de estudo da Sociologia, Filosofia, Psicologia, neurociências, ciência cognitiva e até mesmo da física quântica, dentre outras.

Tudo ao nosso redor pode vir a se tornar um estímulo à observação. A questão é se conseguiremos, a partir do que constitui nossas experiências, vivências, potencialidades e vulnerabilidades, interpretar a realidade que constantemente transforma-se diante de nós.

Imagine-se no banco do carona, em um carro em alta velocidade e tentando apreciar a paisagem. Você já tentou ler algo adesivado na lateral de um carro passando em alta velocidade que lhe chamou a atenção? E como você se sentiria em um carro em alta velocidade que precisasse frear bruscamente em virtude de algo inesperado que surgisse diante dele?

Muitas vezes, nos sentimos nesse estado de aceleração, preocupados em não perder tempo, em não ficar de fora de nada. Quantas vezes estamos em meio ao dilema de, ora acelerar, ora desacelerar e sendo atingidos pelo efeito da dúvida mediante essas duas escolhas, como se só existissem as duas opções, acelerar ou desacelerar. E como, em geral, ao estarmos sobre os efeitos desse “estado de aceleração”, além de nos sentirmos encurralados, amplia-se também a frustração por não sentirmos aquele senso de utilidade, engajamento e controle. Além disso, aflora em nós a questão existencial e ontológica – quem somos nós?

A velocidade das mudanças é tão grande que, com frequência maior do que esperávamos, nos sentimos nesse “estado de aceleração”. Então, como continuar a ver o mundo como uma realidade, se o Ser que determina essa realidade não consegue observá-la porque a imagem é intangível?

Nos contextos de mudança e de crise, temos a oportunidade de buscar a nossa compreensão do Ser. Eu diria que a mudança não é só o pincel e as tintas do artista, mas também a provocação que estimula a inspiração, a curiosidade, os sentimentos e faz aflorar o que pode ou não o motivar. Mesmo sendo um clichê, a mudança é inevitável, necessária e intangível. E, na transição do século 20 para o 21, diversas forças não só aceleraram mudanças, sua abrangência e capilaridade como, alteraram constantemente e evolutivamente a política, a democracia, a economia, a tecnologia, a sociedade e o meio ambiente.

E o que tem acelerado o mundo? As últimas três décadas provavelmente foram um marco histórico. Conflitos políticos e territoriais culminaram em guerras e desencadearam verdadeiros êxodos, impactando até mesmo a geografia e a demografia global, alimentando diversas crises humanitárias que afetam o mundo todo. Nesse contexto, a ameaça de grupos terroristas ganha espaço e emergem movimentos nacionalistas e ultranacionalistas de “retomada do controle”; uma onda crescente de protecionismo solapa a ordem internacional, prenunciando um mundo dividido entre dois sistemas de governança global que competem entre si, Estados Unidos e China.

E mais uma vez, tem início um processo de reconfiguração do poder global que permanece em curso, e agora, em virtude da crise ou das diversas crises provocadas pela pandemia da COVID-19, tomará novos rumos e dimensões. O que quer que aconteça nos próximos anos, impactará a dinâmica econômica, social e política no planeta.

Esses eventos liberam uma quantidade de energia exponencial que estimula a remodelagem de tudo – desde a maneira como vivemos nos centros urbanos e no campo, ao nosso comportamento de consumo, como nos relacionamos, como aprendemos e nosso conceito de prioridade. Afetam como pensamos nossa mobilidade, nossa experiência de vida, a relação ser humano/tecnologia, e como iremos dar um novo sentido aos elementos que fazem parte de nossa evolução antropológica como, trabalho e comunidade, além do dilema se devemos colocar o homem ou o meio ambiente (planeta) no centro de tudo.

O que estimula e o que degrada nossa condição de observadores? O que pode nos fazer sentir nesse estado de aceleração? De que maneira podemos fazer escolhas mais conscientes? Atrás de quais questões se escondem, ou se revelam nossas crenças limitantes e vieses cognitivos?

Ao desenvolver a condição de observadores, melhoramos a capacidade de refletir sobre a realidade, ressaltando que a concepção de realidade tem um viés subjetivo, e por isso devemos tomar cuidado para não tentar impor um determinado conceito de realidade aos outros e a nós mesmos. 

Como observadores temos consciência do que contemplamos?

Até pouco tempo atrás, a definição de sucesso e até mesmo o conceito de felicidade estava representado na seguinte narrativa: “Todo ser humano, para alcançar uma vida plena, deve fazer três coisas ao longo da vida – Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”. Numa época assim, em uma tentativa de se conectar com um “eu” e desenvolver uma versão plena do “Ser”, algumas pessoas abraçaram-se aos livros de autoajuda e emergiram ao universo da “gurulândia”, na tentativa de reerguer-se como uma fênix renascida.

Em contexto parecido, porém em ambiente corporativo, surgiram alguns gurus que se apresentaram como pioneiros, trazendo ao Brasil metodologias mal traduzidas ou interpretadas de maneira reducionista, e mesmo assim, implementadas por empresas, que decidiram, afiançadas por uma credulidade em modismos do momento, mudar radicalmente sua organização, deixando de considerar todos os elementos que a constituíam e à legitimaram anteriormente.

Nada contra aderir a uma filosofia de vida e segui-la com convicção, nem contra livros de autoajuda e muito menos com a ideia de sermos em determinados momentos ousados. A questão aqui é outra.

No primeiro exemplo – a falta de consciência, autoconhecimento e auto reflexão, faz com que muitas pessoas compreendam errado uma ideia de propósito e de como vivê-lo. No segundo exemplo – olhar para uma direção, sem senso crítico ou a capacidade de refletir, nos coloca dentro de um carro em alta velocidade, em que seremos no máximo um passageiro tentando ver uma paisagem que passa rápido demais diante de nós, atrapalhando nossa capacidade de fazer escolhas conscientes. E no terceiro exemplo – quando não tomamos o cuidado de analisar o que está por trás de um dado ou de uma informação, corremos o risco não só de compreender algo de maneira fragmentada e enviesada como também iremos repassá-lo da mesma maneira.

O contexto cultural em que estamos inseridos influencia nossa condição de observadores

Algumas pessoas buscam sempre estar atentas ao momento atual. Seja individualmente ou coletivamente, elas estão tentando fazer parte de algo, sentirem-se úteis e relevantes, participar da modelagem do futuro, desvendar ou legitimar o tal propósito de vida, consolidar um legado. Essa busca, no mínimo, está implícita nas questões que norteiam nossas vivências cotidianas:

Ilustração por Diogo Souza

O mundo está seguindo nessa direção – expressões como essas, repetidas incessantemente provocam em nós um senso de disciplina e urgência, o que nos leva a considerar: sim, precisamos seguir nessa direção. O ponto crítico é saber como sair da condição única de influenciados e de dependentes, nos tornando capazes de refletir sobre os efeitos das ondas e que, possamos moldar nosso olhar de interpretação e força reflexiva emancipatória. Sem suprimir nossa subjetividade e prejudicar o desenvolvimento de uma jornada de aprendizagem emancipatória. 

A reflexão aqui é: até que ponto minha vulnerabilidade diante dos elementos que me influenciam pode me aprisionar em uma única perspectiva de observação ou podem me fazer despertar para outras possibilidades?

Quando reflito que podemos estar perdendo nossa condição de observadores, como uma das qualidades mais intrínsecas à natureza humana, trata-se de tatear uma provocação linguística, crítica e multidisciplinar, com força reflexiva para entender porque somos tão vulneráveis a nos comportarmos como em rebanhos e como somos seduzidos por ideias cujo consenso (a sensação de entendimento geral) as legitimou. Nesse contexto, fenômenos que se consolidam como tendências (e não modismos) podem ser relevantes e podem vir carregados de vantagens, entretanto, podem também nos conduzir perigosamente para seguirmos como manada, limitando nossa capacidade de descobrir e de desbravar.

Diminuir ou perder a condição de observador ou observadora significa correr o risco de seguir consensos, por não conseguir refletir criticamente ou por puro comodismo mesmo. Significa não fomentar o pensamento complexo e permitir o enfraquecimento da força reflexiva e emancipatória. Significa deixar de contemplar a paisagem por não investir, ou não conseguir investir, na aprendizagem intencional por meio dos sentidos, significados e das experiências vivenciadas.   

O que pode amadurecer a condição de observador?

Ilustração por Diogo Souza

É evoluir da condição exclusiva de consumidores de conhecimento para cocriadores de conhecimento, e acredito que, nesse contexto, a discussão mais importante não seja se esse conhecimento se origina a partir do senso comum ou da ciência, mas se é legítimo, considerando que foi proposto de maneira consciente pelo indivíduo.

Ao valorizarmos e desenvolvermos nossa condição de observadores, estamos aprendendo a pensar conscientemente, abrangendo nossa subjetividade, autoconsciência, autoconhecimento, senciência e diversificando nossos conhecimentos.

Novas urgências para a reconfiguração do mundo surgem. A desigualdade crescente é um dos maiores desafios políticos, econômicos, ambientais e sociais do nosso tempo. Mudanças climáticas deixaram de ser assunto exclusivo de cientistas e se tornaram uma questão de gestão, aprendizagem (comportamento), política e econômica. O desafio de desenvolver uma economia de baixo carbono – bioeconomia, que é a economia do futuro – já começou, e no Brasil, ainda não há uma estratégia de Bioeconomia definida.

Como amenizar os impactos de eventos negativos e ao mesmo tempo, de maneira fluida, cocriar oportunidades benéficas frente a alguns dos maiores desafios do nosso tempo, para que quando as gerações futuras olharem para trás, não tenham dúvidas que fomos capazes de construir um mundo melhor para elas?

Para entender o século XXI é preciso compreender que, diante de forças que têm acelerado mudanças e que, em alguns momentos nos faz sentir confusos e em estado de aceleração, podemos e precisamos desacelerar para apreciar e OBSERVAR a paisagem pela qual estamos passando e:

refletir livremente acerca dos perigos, mas, sobretudo, da extraordinária possibilidade que temos de empreender nossa força reflexiva desenvolvendo conhecimentos para produzir condições existenciais equânimes, de tal modo, assegurando aos indivíduos condições de estabelecerem um diálogo entre si, permitindo verdadeiramente um engajamento e interesse pelo mundo, para assim cocriar soluções que garantam um presente mais justo e igualitário, e moldando futuros melhores.

A importância de desenvolver nossa condição de observadores, é para que, a partir de agora, não nos fuja ao olhar, a consciência dos riscos de banalizamos, relativizarmos ou permitirmos que questões como, por exemplo, racismo ou machismo, ainda sejam culturais e estruturais da nossa sociedade.

Penso que, se não for por meio de um mundo em que, as pessoas pensem livremente e consigam exercer com autonomia sua condição de observadoras e observadores, demoraremos mais tempo para diminuir ou acabar as desigualdades e injustiças. Quanto mais inclusão, diversidade e cooperação, melhor.

Ainda há um longo caminho a percorrer e não podemos estar alheios aos riscos que ameaçam o emergir de uma sociedade mais pacífica, menos preconceituosa, menos individualista, e que seja mais justa e igual. Por isso antes de falarmos em pós-modernidade precisamos aprimorar o desenho da modernidade.

Crédito foto da capa: Baba Zola | Wamuhu Njuguna

Diogo Souza

Pai de João Pedro, administrador, professor e mentor. Tem procurado fazer parte da construção de um mundo sem desigualdades, empenhando-se em contribuir com o desenho de estratégias de inovação social e ecossistemas mais inclusivos e justos. E tem buscado ajudar as pessoas a construírem seu próprio caminho por meio de sua dedicação ao desenvolvimento de ambientes e espaços de aprendizagem.

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