Considerado um dos maiores escritores de ficção científica ainda vivos, Kim Stanley Robinson lançou, no final de 2020, seu décimo nono romance, The Ministry for the Future. Com uma trajetória abrilhantada por prêmios como o Nebula e Hugo Awards, o autor americano retorna com um romance ainda mais realista e plausível ao redor de temas já muito presentes em suas obras, mas agora mais próximos de nosso presente. 

Ainda que The Ministry for the Future se situe trinta anos à nossa frente, a maneira como o escritor encaixa tópicos como mudanças climáticas, justiça social, capitalismo e globalização são tão próximos de nossa realidade que, em certos momentos, parece que estamos lendo um artigo científico. Na realidade, ao longo das quase seiscentas páginas do livro, Robinson se dedica muito à abordagem de tecnologias e conceitos científicos verdadeiros, extrapolando-os a partir de um novo olhar político. Afinal, estamos falando de um suposto comitê formado após o Acordo de Paris.

De fato, esse livro pode não ser muito palatável para os fãs de ficção científica que estão acostumados com épicos interestelares ou então que usem a tecnologia apenas como uma inspiração para a discussão de algo profundamente humano. Entre outras coisas, é isso que diferencia a hard da soft sci-fi. No começo do século 20, autores como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke traziam muito de seus conhecimentos científicos (biologia, astronomia, física) para sustentar o enredo de suas histórias, mas a partir da segunda metade do século, a ficção científica ganhou um aspecto mais reflexivo e subjetivo com a chegada de autores como Philip K. Dick e do subgênero cyberpunk.

Na virada do século 21, porém, e mais especificamente nesta segunda década que se inicia, a ficção científica parece estar voltando ao seu lado mais “hard science” e ganhando um aspecto ainda mais politizado, porém pragmático. Robinson comentou em uma entrevista que, apesar de já ter tratado desses mesmos assuntos em várias outras obras, somente agora ele resolveu inserir essas pautas em um contexto mais próximo do leitor, assim salientando a emergência dos assuntos. 

O livro, então, se inicia com a descrição de uma onda de calor que atinge a Índia e mata milhões. Não só o autor se dedica a tornar a vivência do personagem Frank o mais realista e sensorial possível, mas começamos a ter uma ideia do que o colapso ambiental realmente pode significar e como isso vai muito além de um aumento na temperatura média. 

Em Novacene, o ambientalista James Lovelock traz as mesmas provocações, mas não necessariamente se empenha tanto em descrever soluções e planejamentos estratégicos, o que é diferente em Robinson: The Ministry for the Future não é apenas uma descrição do colapso, mas uma arma apontada para cada leitor – a mesma que Frank aponta para Mary, líder do Ministério do Futuro, que é sequestrada e “forçada” a tomar uma atitude real.

No momento, conceitos como migração climática podem não parecer tão comuns no nosso dia a dia enquanto brasileiros, mas isso já é uma realidade global: já existem pessoas mudando de seus locais de origem devido a estressores climáticos, como mudanças no comportamento das chuvas, enchentes, aumento no nível do mar, entre outras ocorrências relacionadas. Moradores de ilhas do Pacífico como Kiribati e Tuvalu são alguns exemplos de povos que já estão enfrentando dificuldades com o aumento do nível do mar, assim como fazendeiros do oeste africano que não mais conseguem cultivar plantas e gado devido à maior incidência de enchentes e secas. Já no Bangladesh, a intrusão de salinidade está dificultando o cultivo de arroz, enquanto que enchentes no Quênia estão matando o gado e destruindo plantações. 

De acordo com uma análise feita pela ONU, são as pessoas mais vulneráveis que precisarão recorrer à migração climática, mas não há como estimar a taxa de incidência de migração climática por não necessariamente sabermos o que vai, de fato, acontecer na prática. No momento, essas pessoas ainda não são consideradas refugiadas, uma vez que a Convenção não entende o clima como um agente de perseguição. Mais do que deslocados de um acordo diplomático, esses migrantes carregam consigo tanto a perda de seus lares como também o trauma deixado por esses eventos massivos e incontroláveis por eles.

Em The Ministry for the Future, o personagem Frank sofre de transtorno de estresse pós-traumático após ter sido o único sobrevivente da onda de calor na Índia, algo que o impulsiona a cometer crimes como o sequestro da diplomata Mary. Entre a ação prática de voluntariado nos campos de refugiados e projetos de conservação dos glaciais, o livro também perpassa pela burocracia e as dificuldades de se negociar política com economia, o que pode tornar a narrativa um pouco maçante para quem não é da área, mas extremamente importante para quem quer ter insights mais estratégicos para projetos, por exemplo, de crédito e taxação a partir do carbono.

Ainda sem tradução para o português, o livro permanece uma referência para aqueles interessados em uma leitura de ficção mais realista, pragmática e permeada por referências científicas plausíveis. Fora isso, a obra serve ainda de um acalento para quem se sente preso na alegação de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Dito isso, vale a pena também conferir as palestras que Robinson, como esta fala na qual ele argumenta que a ficção científica é o realismo dos nossos tempos. Isto é, talvez a inspiração que estejamos procurando em nossos projetos profissionais não esteja apenas em uma pesquisa de benchmark, mas também nas páginas de livros de ficção científica.

Crédito imagem da capa: The Ministry for the Future

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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