Os anos 1990 e 2000 foram marcados por uma euforia pelo ciberespaço e pela transcendência através do digital que se expressou principalmente em obras de ficção científica como Ghost in the Shell, Serial Experiments Lain, Matrix ou ainda o livro Snow Crash, com o qual Neal Stephenson inaugurava o conceito de metaverso como uma intensificação imersiva do ciberespaço proposto nos anos 1980 por William Gibson. Na prática, apesar de filmes como The Lawnmower Man tentarem trazer uma lente eufórica à realidade virtual, foi só por volta de 2015 que começamos a ver a tecnologia chegando ao mercado a partir dos headsets da Oculus, HTC, Samsung e Sony.

Assim como Tron contava a história de um humano que viaja para o mundo dos softwares representados por seres humanos, também Nirvana trazia a possibilidade de um personagem de videogame confrontar seu criador ao ganhar consciência e, portanto, cansar-se de sua rotina repetitiva que invariavelmente culmina em sua morte. Nesse sentido, tecnologias imersivas, apesar de não serem exclusivamente destinadas ao entretenimento, frequentemente estiveram associadas ao mundo dos videogames tanto no imaginário popular quanto na pauta das empresas de tecnologia.

Se outrora se discutia a capacidade de conexão entre usuários em jogos de MMORPG ou até mesmo a possibilidade de jogadores com diferentes graus de autismo conseguissem interagir melhor com outras pessoas através da interface digital (tema abordado no filme holandês Ben X, por exemplo), hoje os jogos online se tornaram muito mais democráticos e não necessariamente associados à persona do nerd/geek antissocial. 

Games se tornaram ainda mais lucrativos e interessantes no mundo dos negócios ao se transformarem em e-sports e em superproduções que transcendem as capacidades midiáticas do cinema para oferecer interatividade ao público. Diretores como Hideo Kojima e estúdios como Quantic Dream conquistaram a audiência por seus jogos essencialmente narrativos e cinematográficos, enquanto que jogos competitivos online como Counter Strike, League of Legends, Fortnite, Overwatch e Valorant se tornaram um ambiente de investimento tão factível quanto times de futebol, por exemplo.

Matéria publicada na Wired mostra que, nas favelas do Brasil, os eSports são uma fonte de esperança. Com vários obstáculos, desde o acesso à internet, a uma conexão confiável, até presenciar disputas entre criminosos, traficantes, polícia e milícias, hoje, os jogos estão oferecendo um caminho para a mobilidade econômica dos jogadores de baixa renda. (ILUSTRAÇÃO: PHELLIPE WANDERLEY)

Hoje, não é mais tão surpreendente descobrir jovens que mudaram suas vidas após entrarem no cenário competitivo dos videogames que, aliás, se tornou uma nova opção de ascensão social e econômica para jovens periféricos. Por outro lado, também entendemos que a maioria dos jogadores não é composta por homens. No caso do Brasil, mulheres e negros dominam o cenário, o que reflete na escolha dos estúdios em acrescentar mais personagens que se identifiquem com esse demográfico – tanto em Overwatch quanto em Valorant, temos personagens brasileiros que são negros e que representam ou o arquétipo do carioca (Lucio) e da baiana (Raze). Do ponto de vista das questões de gênero, jogos como The Last of One II causaram polêmica no cenário gamer por incluir personagens trans e por introduzir um relacionamento homoafetivo na história da protagonista. 

Isso é especialmente importante quando consideramos a conexão estabelecida entre jogador e personagem. Em Corpo e Arte do Pós-Humano (2003), a pesquisadora Lucia Santaella aponta justamente para as diferentes formas de representação do corpo no ciberespaço e sua forma de interagir com essa outra “dimensão” (cada vez mais indistinguível). A imersão através de avatares se dá através do uso de figuras gráficas virtuais para a representação (ou máscara digital) do usuário, de modo a guiá-lo e gerar identificação no contexto simulado. 

Para Santaella (2003, p.203), o uso desse recurso faz com que o usuário tenha sua identidade duplicada, já que há ainda uma hesitação entre presença e ausência no mundo virtual e no mundo físico. Se, por um lado, certos jogadores podem preferir adotar um avatar totalmente diferente de sua aparência física ou que ainda que nem se tratem de representações humanas, outros se sentem cada vez mais representados com a inserção de novos arquétipos de personagens de videogame que fujam do padrão “homem branco de barba” (Max Payne, Uncharted, Heavy Rain, Metal Gear Solid, Half Life, Red Dead Redemption etc) ou da femme fatale especialmente representada pela personagem Lara Croft da série Tomb Raider que, aliás, ganhou uma repaginada em seu visual e abordagem nos últimos títulos lançados para videogame e também nos cinemas, com a interpretação de Alicia Vikander.

Todas essas mudanças se transbordam não apenas no ambiente de jogo, mas também nas convenções em que cada vez mais pessoas se veem encorajadas a fazer cosplay de personagens com aspectos físicos similares ou então ainda em fazer adaptações, como é o caso dos cosplayers negros que repaginam personagens asiáticos e/ou caucasianos.

Enquanto alguns lamentem o fato de a indústria dos videogames ter mudado para se adaptar à sua popularização e, portanto, adoção de outros públicos que fogem do demográfico único ao qual as produções se dedicavam anteriormente, outros se sentem ainda mais entusiasmados em jogar novos títulos e se tornar “main” em algum personagem com o qual se identificam de verdade.

Ilustração da capa: Momo Pixels

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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