Bem-vindos ao mundo da policrise! Com esse título, Adam Tooze, professor de história na Universidade de Yale (EUA), escreveu um artigo para o Financial Times que me chamou bastante a atenção. Pandemias, secas, inundações, mega tempestades, incêndios florestais, guerra na Ucrânia, elevados preços da energia e de alimentos, grandes economias desacelerando, um terço do PIB global entrando em recessão – em tempo recorde estamos vivendo uma imensa lista de choques.

Choques econômicos, sociais, ambientais, sanitários e humanitários se encontram e se entrelaçam. Assim, ganha força um novo termo para tentar explicar, conter e compreender o atual contexto: a chamada policrise ou crise múltipla. “Um problema se torna uma crise quando desafia nossa capacidade de lidar e, assim, ameaça nossa identidade. Numa multiplicidade de crises, os choques são diferenciados, mas interagem de modo que o todo é mais ambíguo do que a soma das partes”, explica Tooze.

Mas o que é exatamente uma Policrise? Se pensarmos na etimologia da palavra, poli vêm do grego polys significa cidade, muito ou ainda um elemento de composição de palavras que traz consigo a ideia de vários. Já no latim, a palavra crise tem a ver com o estado de caos e incerteza e do grego, krísis, significa decidir ou separar. Como uma apaixonada pelo significado das palavras, fiquei fascinada ao saber que a palavra crise (krísis) contém em si o poder de decisão. Bastante sugestivo, pensei. Será a luz no fim do túnel? Mas essa conversa pode esperar. Vamos primeiro entender o que é exatamente uma policrise, sua origem e desdobramentos.

Policrise é um termo que foi utilizado pelo ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, para uma série de desafios interligados que a União Europeia (UE) enfrentava em 2016, tais como crise e desemprego, a saída do Reino Unido da União Europeia (o chamado Brexit), as divergências sobre os refugiados e o terrorismo crescente.

O teórico francês Edgar Morin também discorreu sobre o termo pela primeira vez na década de 1990. Depois, por ocasião da pandemia e em entrevista ao jornal Le Monde em 20 de abril de 2020, Morin reativou o termo atribuindo a ideia de que estaríamos vivendo uma série de crises ao mesmo tempo. “A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”, avaliou Morin. Segundo o filosofo, a marcha da policrise estaria atravessando nossos modos de ser, de conviver, de produzir, de consumir e de estar no mundo, desafiando todos a repensar os paradigmas que nortearam a modernidade que mais nos separou, compartimentou e fragmentou, do que incluiu e integrou.

A ideia de que várias crises estão em jogo, interagindo umas com as outras de maneiras que às vezes tornam as coisas ainda mais difíceis, fica clara quando vemos a interação da pandemia com os movimentos de imigração, instabilidade financeira, desigualdade global e do risco econômico. Em um gráfico, Tooze mostra algumas dessas conexões. Por exemplo, a invasão da Ucrânia pela Rússia, aumenta o aquecimento global ao causar um aumento na produção de petróleo na OTAN e nações aliadas. Aumenta também o preço da gasolina, a inflação e o número de pessoas atravessando fronteiras em busca de refúgio em países próximos.

Segundo a Agência Para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR), por exemplo, mais de sete milhões de pessoas deixaram a Ucrânia devido à guerra. Tooze mostra dois mapas em dois momentos distintos.

O primeiro mapa, proposto em 1 de janeiro de 2022, mostra de maneira clara as interconexões de várias crises:

Mapa 1: 1 de janeiro de 2022

O segundo mapa, de 24 de fevereiro de 2022, quando a guerra na Ucrânia é desencadeada, vemos que aumenta espetacularmente a escala de tensão e a complexidade destas interconexões. O que antes era um mapa relativamente legível torna-se uma confusão emaranhada. Confira:

Mapa 2: 24 de fevereiro de 2022

Vemos, portanto, que os sistemas globais – das finanças a energia – são altamente suscetíveis a um risco sistêmico. A interconectividade desses sistemas permite que um problema em uma parte do sistema se espalhe rapidamente e desabilite todo o sistema. A pandemia da covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia confirmaram esses riscos. A agressão de Putin, por exemplo, perturbou os sistemas globais de alimentação e energia, revigorou a aliança da OTAN, exacerbou posições ideológicas em muitos países e continua a ameaçar o desvio de recursos internacionais da ação climática.

O que parecem ser crises separadas, na verdade são crises que interagem, exacerbam e remodelam umas às outras para formar uma “policrise” conjunta que deve ser compreendida e abordada como um todo, sistemicamente. “Uma policrise global ocorre quando crises em múltiplos sistemas globais, tornam-se causalmente emaranhadas de maneiras que degradam significativamente as perspectivas da humanidade. Essas crises interativas produzem danos maiores do que a soma daqueles que as crises produziriam isoladamente, se seus sistemas hospedeiros não estivessem tão profundamente interconectados”, revela o paper O que é uma policrise global? E como ele se diferencia de um risco sistêmico, publicado em setembro de 2022, pelo Cascade Institute.

Segundo os especialistas desta pesquisa, Dr. Michael Lawrence, líder de pesquisa do Polycrisis Project, Dr. Scott Janzwood, diretor de pesquisa do Cascade Institute e  Dr. Thomas Homer-Dixon, fundador e diretor do Cascade Institute, uma policrise global pode combinar de três ou mais riscos sistêmicos interativos e tem o potencial de causar uma falha em cascata descontrolada dos sistemas naturais e sociais da Terra que degradam de forma irreversível e catastrófica as perspectivas da humanidade. Um ponto importante e bem específico da policrise é que herda quatro propriedades principais de riscos sistêmicos: extrema complexidade, alta não linearidade, causalidade transfronteiriça e profunda incerteza – enquanto também exibe uma sincronização causal entre os riscos.

Como nos explica Tooze, na década de 1970, se você fosse um comunista europeu, um ecologista ou um conservador preocupado, você ainda podia atribuir seus medos a uma causa: capitalismo subdesenvolvido, crescimento econômico, etc. Hoje, o ritmo de mudança é bastante diferente. No início da década de 1970, a população mundial era menos da metade do que é hoje, e a China e a Índia estavam em extrema pobreza. Hoje, o mundo está organizado principalmente em nações poderosas que percorreram um longo caminho para erradicar a pobreza extrema, gerando um PIB global de US$ 90 trilhões, mantendo um arsenal combinado de 12.705 armas nucleares e esgotando o orçamento de carbono a uma taxa de 35 bilhões de toneladas métricas de CO₂ por ano.

Imaginar que nossos problemas futuros serão os mesmos de 50 anos atrás é não compreender a velocidade e a escalada desta transformação histórica. O mundo “está num momento muito complicado, numa ‘policrise’ com impactos na segurança, no clima, nos preços da energia e dos alimentos, atingindo todos os países de uma só vez, pelo que não podemos continuar com os negócios como de costume, temos de pensar em novas ideias”, afirmou a política nigeriana Ngozi na abertura do fórum público anual da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 2022.

Já adentramos esse portal da multiplicidade das tensões. A diversidade dos desafios, sem especificar uma única contradição dominante ou uma única fonte de tensão deixa tudo mais exacerbado.

Agora, nossa missão será a de imaginar quais potenciais escondidos existem nessa complexidade. Portanto, convido o leitor a recuperar o significado da palavra policrise descrita no início desse texto. Crise ou krísis em grego significa decidir. Me parece que é ali mesmo, na origem das Krísis, que temos uma resposta: o poder decidir quais serão as escolhas que vamos fazer diante deste contexto. Afinal são elas que irão definir o tipo de futuro que vamos viver. Todos nós. Emaranhados sistemicamente em torno desta pólis global.

Foto da capa: alliance / Ger Harley / EdinburghElitemedia

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Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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