“Os ricos (…) consomem pouco mais que os pobres, e apesar de seu natural egoísmo e rapinagem, e, apesar de seu egoísmo e de sua rapacidade naturais, embora desejem apenas sua própria conveniência, embora o único fim ao qual destinem as labutas de todos os milhares que empregam seja a gratificação de seus próprios desejos vãos e insaciáveis, eles dividem com os pobres o fruto de todos os seus melhoramentos. São levados por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição do que é necessário à vida que teria sido feita se a terra tivesse sido dividida em porções iguais entre todos os seus habitantes, e assim, sem o pretender, sem o saber, promovem o interesse da sociedade.”

Esse foi um trecho do texto que “meu colega” economista Adam Smith escreveu em A Teoria dos Sentimentos Morais (1759).

Smith introduziu o termo mão invisível para se referir à interferência natural que o mercado exerce na economia, como querem os defensores do liberalismo econômico. Seria o mecanismo básico para propiciar as condições para o funcionamento do chamado livre mercado.

Uma economia liberal, com seu laissez-faire (termo em francês para “deixe fazer”), em tese, trabalharia com autorregulação, onde o liberalismo econômico acredita que as próprias empresas (e empresários) se ajudariam em caso de necessidade, ainda que não intencionalmente.

Vale ressaltar que, interpretar um conceito de mais de duzentos e cinquenta anos não é fácil. E temos que considerar ainda que Smith nasceu e cresceu durante o mercantilismo, com forte controle estatal da Economia.

Sem querer entrar aqui no mérito se liberdade individual e a consideração do indivíduo como peça central da economia é o melhor caminho ou não, a provocação que trago é:

Será que os mercados se auto-organizam em benefício de TODOS?

O sistema de saúde americano é um exemplo que NÃO. Histórias sobre pessoas contraindo dívidas milionárias e até perdendo a própria casa por passarem alguns dias em um hospital ficaram bem conhecidas. Robert H. Frank explica nessa entrevista e nesse artigo no The New York Times, porque o sistema americano orientado para o mercado (único entre as nações ricas) se sai tão mal e “porque não devemos confiar em ideólogos liberais”.

Por que ideias econômicas não conseguem atingir objetivos coletivos que são desejáveis?

Se confrontarmos a Economia com a evolução, ambas envolvem a mágica da “mão invisível” – sistemas intrincados e auto-organizados.

Evolução não se trata apenas de seleção ou de competição. Evolução é implacavelmente cooperativa e ocorre em todos os níveis da vida, desde genomas, células complexas e organismos multicelulares até sociedades e mutualismos entre espécies diferentes.

A cooperação que sustenta a vida (a nossa vida) requer deixar o egoísmo de lado, como conclui o artigo dos biologistas Nicholas Davies, Kevin Foster e Arvid Ågren. Eles revisaram toda a amplitude de sistemas cooperativos, e descobriram que, frequentemente, dependem de mecanismos de imposição que não permitem comportamentos egoístas. Os três autores mostram que sempre que “novos elementos egoístas são introduzidos em uma população, rapidamente o egoísmo é suprimido”.

Um exemplo de como a ganância é prejudicial é o câncer. Tumores são uma forma de egoísmo em nível celular em que todos os organismos tentam fazer o possível para suprimir. Como Athena Aktipis, autora de “The Cheating Cell”, e outros biólogos evolucionistas explicam em um artigo de 2015, uma característica definidora das células cancerosas é que elas ganham “à custa do organismo”. Eles fazem paralelos de mercado, descrevendo duas estratégias do câncer como “trapaça demográfica” e “trapaça econômica”. As células cancerosas trapaceiam no contrato social biológico do corpo.

Todo contrato biossocial viável em organismos multicelulares deve cumprir esta regra: a saúde do todo deve superar o interesse próprio de qualquer parte. Caso contrário, as partes tornam-se parasitas, ganhando à custa da viabilidade do todo.

Nós, humanos, somos cooperadores compulsórios: para sobreviver, muitas vezes não temos escolha a não ser cooperar com outros humanos. O biólogo evolucionista David Sloan Wilson chama esse trabalho em equipe de “adaptação exclusiva” da humanidade.

Economia 101

Biólogos conseguem perceber o momento em que o ethos da “ambição” torna-se destrutiva. Essa percepção deveria merecer atenção também para os economistas, observa Jag Bhalla, em seu artigo “The Other Invisible Hand”.

Porém, a economia como ela é ensinada na maioria das universidades, não nos faz pensar em termos evolutivos. Para o economista político Blair Fix, autor de Rethinking Economic Growth Theory From a Biophysical Perspective (2015), “a economia mainstream [neoclássica] é uma barreira para fazer ciência evolucionária. Se você cursar Economia 101, estará aprendendo ideias do século XIX que deveriam ter sido (mas não foram) abandonadas”, diz. Essa sensação de estar aprendendo ideias e conceitos desconectados do mundo real, esteve bem latente enquanto eu cursava Economia.

Na escola neoclássica o ser humano é abordado com um consumidor racional, egoísta e otimizador, movido pelos seus interesses particulares, predominantemente materiais. O comportamento individual é retratado na abordagem neoclássica pela teoria do consumidor e pela teoria da escolha racional. Assim, não podemos usar a economia neoclássica para entender a evolução humana.

Então, o que um estudante de Economia (com mentalidade evolucionária) deve fazer? Blair Fix recomenda encontrar espaços para também aprender fora dos ambientes tradicionais. Uma opção é estudar em departamentos de economia “heterodoxos” que estão abertos a ideias plurais e são geralmente céticos em relação à teoria neoclássica. Outra opção seria aprender economia em ambientes interdisciplinares, onde alunos e professores vêm de diversos nichos acadêmicos.

“Economistas precisam interagir não apenas com outros cientistas sociais, mas também com biólogos, ecologistas e outros cientistas naturais. Em um programa interdisciplinar, você pode fazer isso diariamente. Isso evita que você fique preso em um ‘silo’ acadêmico” – Blair Fix

Interesse individual e interesse do grupo

Ao longo de bilhões de anos, organismos antes autônomos começaram a cooperar em grupos. Às vezes, esses grupos se tornam tão coesos que pensamos neles como “indivíduos”. É uma história que se repetiu inúmeras vezes ao longo do tempo. E os humanos fazem parte disso.

Nosso corpo não é uma entidade única, mas sim um grupo de células que evoluíram para cooperar. Todos os organismos multicelulares são semelhantes – um grupo evoluído de células cooperantes.

Para que esses grupos sejam bem sucedidos, os membros devem agir de forma pró-social, observam David Sloan Wilson e E.O. Wilson. O problema é que, dentro dos grupos, alguns agem de forma egoísta. Entre os animais sociais, então, há um choque entre o interesse individual e o interesse do grupo. Eles chamam esse conflito de “problema fundamental da vida social”.

Todos os animais sociais bem-sucedidos resolveram esse problema fundamental. Eles suprimiram o interesse próprio (pelo menos até certo ponto) e promoveram a pró-socialidade. Mas como?

Em alguns animais (como as formigas), parece claro que a pró-socialidade é instintiva. Mas em outros animais (como os humanos) a pró-socialidade deve ser estimulada. Quais normas e instituições melhor promovem a cooperação humana? Estamos começando a responder essa pergunta. E talvez essa pergunta deva formar a base da economia.

As bonecas matrioshkas

A vida opera em uma hierarquia de cooperação como a das matrioshkas (bonecas russas colocadas uma dentro da outra), em que suprimir o egoísmo ocorre em todos os níveis. Jag Bhalla alerta que devemos proteger nossos meios de sobrevivência alojados nas bonecas russas: comunidades, cidades, nações, até toda a biosfera planetária. “Nossas políticas devem impedir que nós, ou outros, ganhemos prejudicando qualquer um deles. A evolução ensina que, sem eles, o colapso coletivo acontece”, diz.

A mão invisível da biologia testou ao longo de bilhões de anos cooperações supercomplexas – e foi eliminando configurações auto-organizadas que não eram produtivas o suficiente ou que criavam uma catástrofe coletiva. No entanto, o “interesse próprio” que impulsiona os mercados, na prática, muitas vezes se torna coletivamente patológico.

Como podemos então criar futuros melhores para a humanidade?

Uma das formas é deixar de focar em ganhos individuais e encontrar satisfação em tornar o mundo um lugar melhor para todos.

Ilustração da capa: Niklas Wesner para Noema Magazine

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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