O sol entra pintando de uma cor laranja intensa o pequeno quarto onde durmo até então profundamente. Num processo de autossabotagem, esqueço conscientemente de configurar os vidros da janela no automático para escurecer aos primeiros raios de sol, afinal é preciso exercitar-se uma vez que o envelhecimento ainda não foi completamente desvendado pela medicina.

São 6 da manhã, e lembro vagamente do que um dia foi chamado de horário de verão, que na sua versão inglesa faz mais sentido – “daylight saving time”. Memória de um tempo em que a energia era cara e escassa, onde apagões eram mais ou menos constantes nas cidades brasileiras e em quase todos os países em desenvolvimento no que um dia se configurou como terceiro mundo. O horário de verão há anos tinha perdido o sentido, uma vez que após a crise dos combustíveis fósseis, que levou o mundo a uma dezena de conflitos armados, finalmente países desenvolvidos envolveram-se no desenvolvimento de um plano de geração de energia renovável, onde o Brasil inclusive passou a ter um papel importantíssimo devido a sua localização geográfica, a incidência de luz solar e presença constante de ventos em grande parte do país. Claro, como sempre ficou comprovado e evidente que muito antes dessa decisão o mundo já dispunha da tecnologia necessária pra isso, enfim.

Começo meu processo tradicional de procrastinação, olho pela janela e já consigo imaginar o calor senegalês que me espera do outro lado do vidro. Se o horário de verão entrou em desuso, o verão por sua vez reina absoluto, afinal aprendemos a lição tarde demais e temos somente duas estações, quente e quente como o inferno. O banho é rápido, nada mais de banho-relaxante-terapêutico de outrora, quando o maior dos problemas era o nível baixo do sistema Cantareira. Simplesmente não aprendemos como criar água, ainda.

O tempo de descida é rápido. O elevador percorre as dezenas de andares até o térreo em poucos segundos. A concentração de pessoas nas cidades aumentou drasticamente após os efeitos devastadores do aquecimento global que as empurraram ainda mais – incluindo refugiados – para os grandes centros urbanos, embora o conceito de grande centro urbano tenha mudado consideravelmente. Se antes tínhamos enormes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife, com suas regiões metropolitanas dependentes e fragilmente conectadas cheias de cidades dormitórios e milhões de pessoas que pendulavam diariamente no transporte público precário, hoje temos a possibilidade de viver de forma menos centralizada, com cidades pequenas e médias igualmente desenvolvidas em uma retomada da vida no interior, senão invertendo, pelo menos equilibrando o outrora êxodo urbano.

Após a segunda pandemia da variante Zeta, o trabalho remoto se consolidou mundialmente, impulsionado por novas tecnologias e pela busca de maior flexibilidade e bem-estar pelos trabalhadores. A inteligência artificial de fato ocupou nossas rotinas e os trabalhos repetitivos, seriais e operacionais foram substituídos por processos autônomos e com isso, gradativamente, nos vimos obrigados a nos relacionarmos com o tempo livre, pesadelo Yuppie e sonho Hyppie.

É visível um estado de bem-estar social impensáveis nas primeiras décadas do século. Lembro de ter lido “10 Visions for Our Future”, de Lee e Qiufan, e do meu ceticismo em relação ao fim da desigualdade promovido pelo mundo “pós-escassez”. Ainda não chegamos – e talvez nunca chegaremos – a um mundo completamente sem desigualdade e pós-escassez – em que bens, serviços e informação são universalmente acessíveis até porque, nem tudo é substituível, compartilhado ou abundante.

Tivemos que reaprender a viver, mas não fomos subjugados pelas máquinas. Nem Matrix nem Terminator, as máquinas fazem parte de nossas vidas, mas ainda sabem o seu lugar, talvez porque tenhamos sabiamente desenvolvido uma expertise de psicologia de robôs, que os mantém numa espécie de transe-prozac, que fazemos de conta que será uma solução eterna. Com o quase-fim da desigualdade, a maioria de nós tem acesso ao básico: alimentação, saúde, moradia e educação. A abundância do básico impera e o trabalho se tornou opcional, muitas vezes voluntário em prol de uma ou outra causa e não mais essencial à sobrevivência.

Tudo isso enquanto cantarolo uma velha música dos Beatles: “I read the news today, oh boy. About a Lucky man who made the grade…” Como uma espécie de taslimã, ainda mantenho meu antigo tocador “Pono player”, aquele desenvolvido pelo Neil Young que vendeu umas 2 unidades (um pouco mais na verdade), com um acervo considerável de clássicos. Bons tempos quando as plataformas de streaming ofereciam catálogos gigantescos e uma série de sugestões de músicos obscuros. O desespero pela customização levou os músicos e produtores musicais a compor só pequenos trechos de músicas, loops e rifs, afinal atualmente a garotada quer consumir música tão particularmente que “montam” suas próprias trilhas a partir de trechos compostos e comercializado pelos artistas. Não tenho nem aptidão e nem vontade pra isso, então aproveito o espólio de tantos grandes artistas que tiveram suas obras em altíssima definição compartilhadas por seus herdeiros, que me pareceu uma forma de protesto contra o fim da música como a conhecíamos.

A chegada ao trabalho também é rápida. As cidades, embora adensadas, se comportam como micro-centralidades, não dependendo de um centro único como no século XX. Com as pandemias, muito buscaram refúgio no interior e com isso veio a descentralização que pulverizou a população em diversas cidades pequenas e médias e não unicamente apinhadas nos antigos centros urbanos. Todos trabalham, quando não nas suas próprias casas, muito próximo a elas. Mas como uma pessoa nascida na era do trabalho presencial, prefiro pegar diariamente o trem rápido para o centro da cidade. Nada comparado aos trens que partiam com pessoas penduradas pelas janelas e portas, hoje pouca gente depende deles. Os trajetos maiores são raramente feitos e as pessoas passam, muitas vezes, meses sem sair dos seus bairros-centro, vivendo na dinâmica local que por isso mesmo passou a ser ainda mais importante do que na era das pandemias. Ouço duas vozes jovens que se sobressaem no silêncio do meu vagão e sou obrigado a ouvir a conversa alheia refletindo sobre como o conceito do metaverso evoluiu para o multiverso, afinal por que viver num mundo virtual se posso viver em diversos mundos ao mesmo tempo? Sim, eles tinham um ponto, embora para mim, um mundo já fosse o bastante.

Chego ao Ministério da Felicidade, onde trabalho, e todos os dias dou um pequeno sorriso ao pensar no quanto esse lugar soaria ridículo décadas atrás. A nova organização social e os novos sistemas políticos, que através da tecnologia, criaram novos fóruns de governança, mais transparência e proximidade na gestão pública, transformaram a divisão política dos países. Agora eles são formados por cidades-estado, com independência jurídica e governança própria. O mundo passou por uma nova queda da Bastilha ao entender que um governo distante, física e conceitualmente, não era mais capaz de atender as necessidades das pessoas, e embora ainda exista uma ideia guarda-chuva para chamarmos de nação, o governo central tem uma função mais de relações-públicas e representação da nação do que efetivamente governar e gerenciar os problemas do dia a dia

Com as necessidades básicas garantidas, a nova aspiração era a felicidade, tudo se organizava em torno dela. Ninguém mais acumulava bens, era uma cafonice anos 20 esse tipo de comportamento, o novo hype era “viver-feliz”. Pelo menos era o que todos buscavam, era a nova aspiração. Quando o trabalho pelo acúmulo de dinheiro e de bens perdeu o sentido todos se pegarem em busca de um novo significado para suas vidas.  Claro que, aqui no Brasil, a coisa demorou um pouco mais para acontecer, afinal era tudo muito estranho para nós. Foi preciso uma colaboração próxima com os escandinavos, que saíram na frente, para entender como viver num constante estado de “Hyper- Hygge”. Num primeiro momento veio a euforia, logo após a depressão. Veio daí a necessidade de um ministério para a felicidade, que atua de forma pontual e específica em cada cidade-estado.

O dia a dia de trabalho meio que se repete, com inúmeros workshops virtuais e alguns presenciais, por pura resistência, com pequenos grupos comunitários locais avaliando e discutindo o impacto dos projetos propostos pelas mais diferentes frentes, entes e secretarias. Felizmente, com o fim dos trabalhos operacionais e uma busca por maior significado na vida das comunidades, passou-se dar a devida atenção para questões coletivas. Com a ajuda da tecnologia, que proporciona uma experiência imersiva nos mais diferentes lugares, o quórum passou a ter números nunca antes vistos. Claro que não é só uma questão de tempo extra ou tecnologia, e sim, a soma desses fatores com um modelo de governança transparente e inclusivo presente em quase todas as cidades-estado. Quase todas porque algumas caíram na armadilha do autoritarismo e, embora essas cidades-estado autoritárias tenham o mesmo acesso à tecnologia, preferem decidir por elas mesmas o futuro da comunidade, e sim, muitas pessoas preferem assim, enquanto outras são obrigadas a viver dessa forma, afinal, mesmo com todos os avanços, ainda não é exatamente simples deixar uma vida para trás e começar tudo de novo em um novo lugar, mesmo com as facilidades de uma rede de apoio e suporte decentralizada e virtual. Esse é só um dos paradoxos do Brasil 2.0.

Enquanto as cidades se tornaram autônomas com uma vida comunitária mais próxima devido, em grande parte, a escala e aos novos comportamentos, as conexões humanas nunca foram tão decentralizadas. Ao mesmo tempo fazemos parte dessa pequena comunidade local e de uma mega comunidade global na “ultranet”, sem falar no multiverso, que ainda insisto em considerar um não-lugar, ou melhor, uma coleção de não-lugares.

Na volta para casa, dou uma passada na minha loja preferida. Atualmente é possível escolher o seu veneno recreativo sem grande culpa. O meu sempre foi o açúcar, que agora não me preocupa uma vez que o pâncreas híbrido já se vira bem com qualquer dose de insulina e basta controlá-lo nas preferências do sistema do aplicativo que o mantém em funcionamento. Nessa espécie de doceria vintage, é possível achar todo o tipo de veneno açucarado de antigamente, nada de low carb, sugar free e essas opções que hoje permeiam os hábitos alimentares. Aqui encontramos a velha gordura trans, açúcares refinados, corantes artificiais, ou seja, todas as “maravilhas” indutoras de felicidade – de Cherry Coke a baldes de Malteasers e alfajores Oreo brancos, sem o medo de antigamente, de dentes cariados a diabetes.

Após campanhas de conscientização e a infernal proibição do açúcar décadas atrás, nos acostumamos (menos eu) à uma alimentação saudável, muitas vezes plantada pelo próprio comensal na sua horta vertical própria ou nas diversas hortas comunitárias espalhadas pelos bairros. No meu caso, toda vez que visito essa loja compro quantidades absurdas na certeza de que ela não estará lá na próxima vez que visitá-la e só me restará a memória ou algum tipo e sabor emulado dessas delícias do passado, mais ou menos como foi com a carne, agora absurdamente cara e substituída por carne de laboratório ou impressa, que tem quase o mesmo gosto e textura.

O elevador faz um barulho esquisito, desacelera repentinamente. Sinto o corpo leve, mais leve, sim, estou caindo. Nesse momento, não adianta lembrar que elevadores são os meios de transportes mais seguros do mundo, é fato, estou caindo, sozinho, naquele poço gigantesco que ligo os trocentos andares do meu prédio.

O impacto com o chão tem um efeito surpreendente, nada de pernas quebradas, sangue espalhado e morte certa, apenas um acordar um tanto suado e assustado. Sentado no primeiro degrau que forma a pequena arquibancada do pequeno auditório do meu escritório, reconheço a fórmica rosa, as plantas e os meus livros nas prateleiras. Havia dormido no meio do expediente após uma noite em claro escrevendo, uma das poucas vantagens de ser um profissional liberal. Não estou em 2050 e, embora muitas dessas soluções já existam, ainda estou na São Paulo de sempre e mesmo não precisando atravessar uma rua se quer pra chegar ao escritório, ainda preciso controlar o açúcar, mesmo tendo a melhor loja de Cookies do hemisfério sul ao lado.

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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