Recentemente, entrei em contato com um artigo muito interessante intitulado “Facing the Strategic Sublime: Scenario Planning as Gothic Narrative” de Matt Finch e Marie Mahon. Em outras oportunidades, já escrevi aqui n’O Futuro das Coisas sobre a relevância de se usar ficção científica para pensar o futuro, algo que está cada vez mais em evidência tanto no meio acadêmico quanto comercial. Contudo, o que Finch e Mahon sugerem é que, mais do que usar ficção científica, é a literatura gótica e o conceito de sublime que podem trazer um novo olhar para os estudos dos futuros.

Antes de entrar em maiores detalhes sobre o argumento dos autores, queria ressaltar que o livro que é considerado a primeira obra de ficção científica é o romance “Frankenstein” (1818) de Mary Shelley. Trata-se de uma narrativa que inaugura a ficção científica, mas também está profundamente enraizada nas tradições da literatura gótica. E faz todo sentido que uma coisa tenha levado à outra, uma vez que a literatura gótica fazia, justamente, essa reflexão acerca das mudanças que ocorriam no mundo – uma mudança de uma era antiga e até mesmo pastoral para um contexto de industrialização.

“Frankenstein” conta a história de um cientista que consegue dar vida a um cadáver usando uma tecnologia que estava em emergência naquele momento, a eletricidade ou a galvanização. O que Shelley aborda em seu romance são os perigos que a ciência pode trazer ao mundo quando o homem resolve “brincar de deus”. Não é à toa que o subtítulo de “Frankenstein” é “O moderno Prometeu”, mito grego sobre um titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos humanos e, por isso mesmo, é destinado à punição eterna. Isto porque, aqui, fogo significa conhecimento e, na obra de Shelley, ciência.

Mas o que Finch e Mahon sugerem é o foco no conceito de sublime trabalhado pela literatura gótica, o qual pode ser descrito como uma “intensa experiência estética” através da qual “o eu se torna um mero ingrediente na paisagem, sentindo-se insignificante, esmagado e diminuído pela natureza”. Os autores mencionam a pintura “Darvaza” (2010) de Julian Bell como uma referência contemporânea a esse sentimento, uma vez que a obra retrata o que o artista viu ao visitar o Turcomenistão.

Contudo, a fenda que foi aberta no chão e por onde parece haver uma eterna combustão não é um fenômeno natural. Na verdade, Darvaza (que quer dizer portal do inferno em persa) foi criado inadvertidamente por engenheiros soviéticos em 1971, quando eles estavam procurando por locais de extração de petróleo. Os engenheiros resolveram queimar o conteúdo daquela cavidade cheia de gases, assim resultando em uma combustão que, desde aquele dia, nunca cessou.

Ou seja, o sublime aqui trazido por Finch e Mahon, bem como Bell, não tem a ver com o sublime das pinturas náuticas de William Turner ou então com a contemplação da natureza em ocasiões como uma erupção vulcânica ou uma tempestade. Darvaza é uma atualização do monstro de Frankenstein conforme esta é uma experiência na qual homens da ciência acabam perdendo o controle sobre seus experimentos e produzem um resultado avassalador.

Nesse sentido, fica mais evidente pensar que os diferentes problemas que estamos vivenciando hoje em dia são, justamente, resultado de um desajustado uso do conhecimento científico e tecnológico por parte do ser humano. Isso aparece, por exemplo, nos efeitos do aquecimento global e como isso tem ecoado de maneiras muito maiores e assustadoras do que se podia imaginar. Ao mesmo tempo em que encurtamos distâncias com novos meios de transporte e a internet, também começamos a perceber como, evidentemente, a Terra é um sistema interconectado. Ou seja, o derretimento das geleiras no polo norte não é um problema reservado àquela região, mas é algo que tem impactado o mundo inteiro, a começar por algumas regiões em específico.

Finch e Mahon citam o conceito de “futuros ferais” proposto por Ramírez e Ravetz, no sentido de que estamos nos deparando com acontecimentos e cenários avassaladores como consequência, por exemplo, da globalização. A própria pandemia do Covid-19 é um exemplo disso: se o mundo não fosse tão interconectado quanto é hoje, talvez o vírus tivesse ficado concentrado apenas à China e países vizinhos como ocorreu no caso da gripe espanhola ou da própria peste negra. 

Agora, do ponto de vista estético e filosófico, os pesquisadores sugerem que incluir a noção de sublime e de futuros ferais no planejamento de cenários futuros é algo que pode trazer uma nova camada de reflexão. Isto porque as experiências sublimes são, na verdade, “tanto encontros com nossas próprias limitações quanto encontros com algo que está fora de nós”. Citando Brady, os autores indicam:

“Em situações estéticas marcadas pelo sublime, a imaginação e os sentidos são desafiados, e há limites para até onde conseguimos chegar e entender. (…) A ciência pode nos proporcionar a racionalidade que nos faz admirar grandes fenômenos naturais, mas talvez só consigamos ter um verdadeiro sentido de grandeza quando (esses fenômenos) nos são apresentados através do imediato e da intensidade da experiência estética do sublime.”

Essa experiência, no entanto, não é normalmente alcançada quando se assiste a um filme de desastre, por exemplo. Então, quando os autores propõem o uso do sublime no planejamento de cenários futuros, não é sobre imaginar catástrofes, mas sim a dimensão subjetiva e mesmo ontológica dessas imagens. É menos sobre “A Falha de San Andreas” e mais sobre “O Anticristo” (e isso não tem a ver com julgamento do valor das obras, somente a maneira como a narrativa apresenta a relação entre homem e natureza).

O que os autores do artigo concluem, portanto, é que procurar por esse tipo de história ou de experiência extrema é menos sobre adrenalina e mais sobre desafiar certezas e proporcionar o encontro com o desconhecido – ou, como preferem alguns, é encarar os cisnes negros. Portanto, ao “se tornar testemunha de futuros plausíveis que beiram ao avassalador, somos capazes de reavaliar o mundo ao nosso redor, desaprendendo antigas concepções e desenvolvendo novas apreciações sobre como o futuro pode se desdobrar.”

Imagem da capa: quadro Memento Mori

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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