Só nesta semana, pelo menos dois amigos me mandaram o link para essa matéria que falava que o exército da França estava contratando escritores para pensar o futuro das guerras e que, inclusive, chegou a contactar autores brasileiros para tal. Cheguei a comentar algumas impressões pessoais no meu Twitter, mas aqui quero me reter ao fato de uma instituição militar estar contratando artistas para pensar não o futuro de um ponto de vista mais abrangente, mas sim o futuro da guerra.

Curiosamente (ou não), no mesmo dia o site Popular Mechanics também publicou um artigo falando sobre como a França estava aprovando um projeto de soldados ciborgues biônicos. Enquanto algumas visões compartilhadas pelos escritores brasileiros não compactuavam com uma possível guerra física, mas sim informacional (como já vemos a nível de fake news, Cambridge Analytica e gabinete do ódio), o que ocorre é que, guerra é guerra, e quando os “meninos” podem brincar com seus soldadinhos de chumbo, então melhor.

Ao contrário de exércitos como o da Suíça, que historicamente adota uma postura mais neutra e até de conciliação, a França não possui uma história militar exatamente pacífica. Mesmo quando tratamos do evento como a Revolução Francesa (sob o viés dos vencedores, como diria Hobsbawm), parece até que se tratou de uma vitória da razão, quando, na realidade, ao vermos quadros como “El tres de mayo de 1808 en Madrid” de Francisco Goya, descobrimos um outro olhar sobre o avanço do exército napoleônico, em especial a partir da simbólica presença de uma luminária por debaixo dos fuzis.

Goya foi um dos principais artistas a pintar os horrores da guerra, termo que inclusive dá título a uma série de ilustrações feitas pelo espanhol. Em sequência, conterrâneos como Picasso também figuram no inesquecível “Guernica” a mesma sensação de apavoramento que segue vivo até hoje nas obras do austríaco Gottfried Helnwein, cujo trabalho foi tema da minha dissertação de mestrado. Ao entrevistá-lo, descobri que o artista, na realidade, lê muito sobre história e que, cada vez mais, ele se depara com eventos horríveis que fariam qualquer um perder a fé pela humanidade. É por isso que, como alguém nascido logo após o fim da Segunda Guerra Mundial em Viena, suas pinturas refletem a agonia de vivenciar uma guerra mesmo após seu término. Berlim é uma cidade onde essas memórias ressoam por todos os cantos, mas foi na East Side Gallery que encontrei uma das inscrições que mais me marcaram: “du hast gelernt was Freiheit heisst, und das vergiss nie mehr” (você aprendeu o que a liberdade significa e isso você não deve esquecer nunca mais).

Como é possível que ainda hoje abrimos o ano de 2020 com Trump bombardeando o Irã? Como é possível falar de um futuro de singularidade tecnológica enquanto, por exemplo, palestinos e israelenses ainda guerreiam? Em outras palavras, como é que a guerra ainda continua sendo um tópico importante para o futuro e para a tecnologia? Simples: a indústria bélica é uma das indústrias com maiores recursos financeiros e foi dali que surgiram tecnologias como a criptografia e logo o computador, a internet, e assim por diante.

Uma vez, meu namorado questionou se seria ético impedir o desenvolvimento dos mísseis usados na guerra, que, por sua vez, deram origem à tecnologia que mais tarde seria usada para propulsionar foguetes. Isto é, se esse desenvolvimento tecnológico tivesse sido barrado, talvez demoraríamos muito mais para conseguir chegar à Lua e assim por diante. O mesmo vale quando pensamos que Marie Curie descobriu a radioatividade não porque estava pesquisando formas de desenvolver armas letais, mas foi ali que suas descobertas encontraram utilidade em determinado momento na história.

Ou seja, a princípio, desenvolver tecnologias militares têm como propósito focar-se na iminência de um conflito, mas não significa que esse mesmo conhecimento tecnológico fique concentrado apenas à finalidade bélica. Acontece que, no caso do exército francês, a notícia desse projeto, já divulgada no ano passado, trazia justamente esse objetivo de mapear possíveis riscos, vislumbrar ataques terroristas e como responder a eles.

Hans Jonas, em seu conceito de futurologia comparativa, por exemplo, falava muito sobre como devemos, justamente, imaginar cenários negativos para desenvolver defesas ou, prioritariamente, evitar chegar a esse ponto. Então, do ponto de vista do departamento de defesa, faz sentido contratar especialistas em criatividade (artistas) para trabalhar junto a cientistas e criar mundos especulativos de ficção científica que explorem possíveis conflitos.

Mas se o governo já aprovou intervenções cibernéticas no corpo do soldado, desde que se preserve seu “livre arbítrio” (partícula tal hipotética de acordo com a referência filosófica), então o quanto estamos realmente nos precavendo ou fomentando uma guerra? Não é como se precisássemos criar super soldados para poder explorar membros biônicos e exoesqueletos – Miguel Nicolelis já está fazendo isso há tempos no Brasil e com finalidade de ajudar pessoas com mobilidade reduzida.

Em entrevista para o UOL, a escritora Sheyla Smanioto, que foi contactada pelo governo francês, menciona que, apesar de ficar lisonjeada pelo convite, ela não se autoriza “a criar essa guerra do futuro”, porque prefere usar suas “tecnologias de imaginação para criar outras coisas.” Isto é, até que ponto participar ativamente nesse tipo de projeto é benéfico para a sociedade e o quanto é preventivo e não inspirador?

Curiosamente, na obra “História do Futuro” de Georges Minois, o historiador menciona que tanto entre os povos mesopotâmicos ou ainda na Grécia Antiga, os governantes recorriam a oráculos e videntes que os auxiliavam a tomar decisões políticas e militares. Até Napoleão chegou a se consultar com uma vidente para orientar suas decisões durante a guerra. Sendo assim, a história se repete (de um ponto de vista mais cientificista) ao ter o governo francês chamando escritores de ficção científica para pensar o futuro da guerra.

O motivo? Minois analisa que, à época das guerras antigas, nem os governantes e nem os militares sabiam o que fazer diante daquele momento. Apesar das estratégias de guerra e dos cálculos mais práticos sobre o tamanho do exército ou do poder de fogo, o elemento humano de confirmação da convicção vinha através das narrativas organizadoras, proféticas e até mesmo psicanalíticas oferecidas por esses videntes. Nada muito diferente das fake news de hoje em dia, que apenas verbalizam convicções pré-estabelecidas e as tornam “concretas” em forma de artigo em site, texto no WhatsApp ou montagem fotográfica.

Portanto, finalizo o texto reforçando a pergunta já feita anteriormente: quão desejável é trabalhar para um exército imaginando o futuro da guerra? Quão aspiracional ou quão aterrorizante é pensar que estamos vivenciando tempos como estes?

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Crédito da ilustração da capa: Joe Sacco, reconhecido mundialmente como o precursor do jornalismo em quadrinhos. Joe também é um dos expoentes do gênero reportagem histórica. Seus trabalhos mais destacados nessa área são os livros Notas sobre Gaza, Palestina: na faixa de gaza e Área de Segurança: Gorazde. Nos últimos anos, tem se dedicado à reportagens com narrativas em quadrinhos sobre regiões em conflito em vários quadrantes do mundo.

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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