Quando pensamos no futuro do trabalho, uma das coisas que buscamos é uma forma de harmonizar o trabalho com aquilo que gostamos de fazer (nossas paixões) e nossas vidas pessoais.

A pandemia consagrou o trabalho remoto, o que proporcionou à muita gente uma flexibilidade para gerenciar a vida doméstica junto com as demandas do trabalho de uma maneira que não era possível antes. Agora, o que estamos observando são empresas começando a implementar algo ainda mais contundente: quatro dias de trabalho na semana.

Recentemente, a Kickstarter – maior site de financiamento coletivo do mundo e que busca apoiar projetos inovadores – anunciou que estava experimentando quatro dias de trabalho. Em vez de 40 horas, seus colaboradores estão trabalhando 32 por semana, enquanto a empresa espera que eles mantenham o mesmo nível de produtividade com a mesma remuneração.

“Esta decisão decorre da minha convicção de que todos os que trabalham para a Kickstarter tenham capacidade para impulsionar a empresa, ao mesmo tempo em que buscam seus próprios projetos, passam tempo com seus entes queridos e se envolvem com comunidades e causas que lhes são importantes.” – Aziz Hasan / CEO da Kickstarter

A Unilever também, desde dezembro de 2020, está testando a semana de trabalho de quatro dias com algumas centenas de colaboradores. O teste ainda está em andamento e será concluído em dezembro de 2021.

Não são apenas as empresas que estão experimentando a semana de 32 horas de trabalho. O governo japonês divulgou, no final de junho, diretrizes de política econômica que recomendam quatro dias na semana, com o intuito de possibilitar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional dos trabalhadores, para que tenham mais tempo com os filhos, cônjuges, pais idosos, ou mais tempo para se divertir e gastar dinheiro e, assim, impulsionar a economia do país. As primeiras-ministras da Nova Zelândia e da Finlândia, Jacinda Ardern e Sanna Marin, também já sugeriram uma semana de trabalho de quatro dias.

Estudos já mostraram que semanas de 32 horas de trabalho estão associadas ao aumento da produtividade – sugerindo que mais tempo fora do escritório leva a uma maior motivação, redução de estresse e melhora do bem-estar. É possível que os programas piloto da Unilever e da Kickstarter comprovem isso.

De acordo com pesquisas realizadas por Charlotte Lockhart e Ashley Whillans, a produtividade e o bem-estar podem aumentar – mas apenas quando a redução é implementada eficazmente. Charlotte é CEO de uma organização sem fins lucrativos que financia pesquisas sobre práticas semanais de trabalho de quatro dias, e Ashley é pesquisador acadêmico focado em tempo, dinheiro e felicidade.

Os dois criaram um guia de seis etapas para ajudar organizações a planejar e implementar a redução na jornada de trabalho. Embora o guia seja focado em trabalhos realizados dentro de escritórios, eles acreditam que as recomendações possam ser aplicadas a qualquer empresa que tenha abertura para ajustes de horários.

Vamos entender esses passos?

Passo 1: Mudando a mentalidade

Pesquisas sugerem que tendemos a nos concentrar em métricas de sucesso facilmente quantificáveis – por exemplo, horas trabalhadas –, em vez daquelas mais qualitativas, como produtividade ou bem-estar. Com isso, muitas empresas priorizam a capacidade de resposta imediata e o tempo passado no escritório – mesmo quando essas métricas raramente correspondam ao valor real agregado à empresa – ao invés do nível de comprometimento de suas equipes.

Charlotte e Ashley avaliam que, para que haja uma redução bem sucedida de dias trabalhados, os líderes devem começar a valorizar a produtividade real, não apenas as horas trabalhadas, garantindo que as pessoas não fiquem preocupadas com a possibilidade de serem penalizadas por priorizar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Isso começa com uma modelagem para um equilíbrio mais saudável entre trabalho e vida pessoal. A pesquisa de Ashley descobriu que configurar a redução do trabalho como uma política da empresa, em vez de um projeto informal ou opcional, pode ajudar muito a encorajar essa mudança de mentalidade.

Além disso, os líderes devem estar abertos às incertezas quando se testa algo novo. O primeiro erro que Charlotte e pesquisadores viram é que muitos gestores tentam antecipar todos tipo de problema possível e eliminar todas as possibilidades de risco antes mesmo de o piloto começar. Embora o planejamento seja importante, há um risco de cair na inércia para tomada de decisão – e a verdadeira solução dos problemas só é possível por meio de tentativa e erro.

Isso também significa aceitar que alguns colaboradores não irão gostar das mudanças e alguns podem até desistir. E tudo bem, segundo a dupla. É preciso reconhecer abertamente que o novo formato pode não funcionar para todos. Lembrando que, quando um decide ir embora, cria espaço para outras pessoas abertas à nova cultura, fortalecendo a equipe e o negócio.

Passo 2: Definindo metas e métricas

Entendendo que sua empresa já esteja pronta para fazer a mudança, é hora de começar a planejar. Tanto colaboradores quanto líderes devem se envolver ativamente em uma série de decisões críticas. Uma empresa com a qual Charlotte e sua equipe trabalharam criaram um comitê formado pelos colaboradores para liderar a implementação da redução de horas. O pequeno grupo se reunia por uma hora todos os dias ao longo de seis semanas para discutir possíveis problemas antes de lançar o piloto.

Com base neste e em outros estudos de caso, estas são algumas perguntas que Charlotte e Ashley consideram úteis:

Perguntas para os colaboradores:

– Devemos trabalhar quatro dias por oito horas ou cinco dias com horas reduzidas?

– Em que dias ou horários devemos folgar?

– Como podemos evitar que a mudança tenha um impacto negativo sobre nossos clientes e stakeholders?

– Quais medidas podemos tomar para aumentar nossa produtividade?

– Como compartilharemos entre a gente nossas ideias para melhorias de processo?

Perguntas para liderança:

– Como a organização irá medir a produtividade?

– Qual suporte os colaboradores precisarão para que este piloto seja um sucesso?

– Por quanto tempo a empresa deve executar este piloto?

– Há alguma questão legal a qual devemos estar cientes?

Como parte dessas discussões, os dois acreditam ser fundamental considerar como será medido o sucesso do programa em relação às metas, as quais devem constar tanto as mudanças esperadas – como a felicidade dos colaboradores –, quanto os resultados que não devem mudar, como a satisfação dos clientes e a produtividade.

Etapa 3: Comunicando-se interna e externamente

Em seguida, é pensar no plano de comunicação. Há uma série de preocupações que provavelmente estão na cabeça dos stakeholders – dentro e fora da empresa –, e é importante que os líderes sejam proativos ao considerá-las.

Internamente, as principais questões giram em torno de como a mudança afetará os empregos. A liderança deve ser clara sobre os motivos para experimentar a semana de quatro dias de trabalho e garantir ao time que ninguém será demitido ou sofrerá cortes no salário ou perderá outros benefícios, como férias remuneradas.

Além disso, é provável que a redução das horas de trabalho exija mudanças em alguns processos e normas internas, por isso é importante discutir isso com antecedência. Estas conversas sobre como fazer mais em menos tempo – seja implementando novas ferramentas, eliminando reuniões desnecessárias ou tornando as reuniões mais eficazes – são bem vindas.

O mesmo deve ser feito com o público externo. Muitas empresas se preocupam com o que seus clientes irão pensar se reduzirem o horário de expediente, mas, segundo Charlotte e Ashley, essas preocupações podem ser amenizadas com uma simples conversa. Eles recomendam identificar quais clientes, parceiros, fornecedores ou outros stakeholders podem ser afetados, buscando garantir que a redução das horas trabalhadas seja comunicada com clareza.

Em um dos estudos de Ashley, foi feito um experimento bloqueando um período (horas e até mesmo dias) dos colaboradores, os deixando indisponíveis, inclusive para os clientes. Apesar dos temores, tanto os colaboradores quanto os clientes relataram níveis mais elevados de satisfação do que anteriormente.

Passo 4: Implementando um piloto

Decidido, planejado e comunicado – agora é hora de agir! No piloto o objetivo não é acertar tudo desde o início, mas identificar as ferramentas e processos de que sua empresa precisa para tornar possível a redução das horas ou dias de trabalho.

Será preciso pelo menos alguns meses para implementar um piloto em grande escala. Durante esse período, surgirão problemas, que devem ser solucionados da melhor forma conforme aconteçam, sabendo que soluções em grande escala podem ter que esperar até que o piloto termine. Quaisquer problemas que por ventura aconteçam não são indicadores de falha, mas oportunidades para melhorar e ajustar o plano de implementação. Algumas perguntas que surgem dos pilotos são:

– Quais limites preciso estabelecer para mim e para minha equipe?

– Qual assistência preciso da minha liderança para cumprir um cronograma de trabalho reduzido?

– O que acontecerá com as atividades lúdicas e divertidas às sextas-feiras?

Criar um ambiente no qual as pessoas se sintam seguras ao fazer essas perguntas é um ingrediente essencial para um piloto de sucesso.

Etapa 5: Avaliando o piloto

Depois que o piloto for concluído, há várias maneiras de analisar os resultados. Há métricas qualitativas e quantitativas que podem ajudar a compreender como o experimento afetou o bem-estar das equipes.

Qualitativamente, entrevistas em grupo dão uma visão sobre a experiência com a semana de quatro dias, e pesquisas de satisfação podem identificar tendências e mudanças auto-relatadas dos níveis de estresse, equilíbrio entre vida-trabalho e qualidade de vida.

Quantitativamente, existem métricas, como por exemplo, menos dias de licença médica durante o piloto, o que pode sugerir menor esgotamento mental.

Quanto à produtividade, as métricas vão depender das áreas. Na equipe de vendas, pode fazer sentido focar na quantidade de negócios fechados, taxas de conversão ou tempo médio de fechamento.

Dados também podem ajudar a entender como o time está otimizando o trabalho: se estão trabalhando mais horas extras, diminuindo reuniões, fazendo menos pausas, trabalhando mais rápido. Não é desejável que as pessoas deixem de ter suas pausas, ou apressem seu trabalho ou fiquem mais tempo trabalhando, então, se houver evidências desses comportamentos, será preciso conversar sobre como reduzir as cargas de trabalho individuais ou encontrar maneiras de tornar o trabalho mais eficiente com a redução das horas ou dias.

Não é preciso reinventar a roda nessa etapa da análise. Existem vários white papers, relatórios e estudos de caso para buscar inspiração ou dar sentido aos resultados. Também pode ser interessante fazer uma parceria com algum especialista que possa ajudar a identificar métricas mais úteis e processar os dados e números.

Etapa 6:  Aumentando a escala – sem parar de iterar

Depois de avaliar o piloto e resolver os problemas que surgiram, agora é hora de perpetuar a mudança. Os líderes precisarão incorporar novas práticas na cultura de trabalho, garantir que as pessoas não caiam em velhos hábitos (como enviar e-mails nos dias de folga) e para que fiquem focados na produtividade – não nas horas trabalhadas.

Ao mesmo tempo, é fundamental acompanhar as métricas de sucesso a longo prazo e adaptar processos de acordo com o que elas mostram. Uma boa estratégia é manter sessões conduzidas pelos colaboradores e grupos de foco, mesmo depois que os resultados do piloto tenham sido analisados, para ajudar a identificar e superar os constantes desafios.

Por exemplo, depois de implementar os quatro dias de trabalho na semana, uma empresa com a qual Charlotte trabalhava descobriu que os colaboradores estavam se tornaram excessivamente focados em tarefas urgentes, mas menos importantes. A empresa então revisou com eles os planos estratégicos de longo prazo, mantendo alinhadas as prioridades.

Essa empresa também descobriu que as equipes de vendas, que eram remuneradas com base no número de negócios fechados, começaram a priorizar contas menores para fechar mais negócios em menos tempo, em vez de focar em contas maiores e estrategicamente importantes. A empresa então reorganizou as equipes em especialistas dedicados para pequenas e grandes contas.

Outra empresa com a qual Charlotte trabalhou descobriu que os colaboradores estavam trabalhando 10 horas por dia para encaixar o trabalho em uma semana de quatro dias, impactando significativamente a satisfação e o bem-estar no trabalho.

Cada empresa irá descobrir desafios particulares no momento de implementar ou ampliar uma política de redução de horas de trabalho. A experimentação e iteração constantes serão essenciais para uma redução bem-sucedida de longo prazo.

Um avanço

Considerando desafios como o aumento do estresse no trabalho, burnout, despesas elevadas com creche para quem tem filhos pequenos, dentre outros, a semana de trabalho de 32 horas representa um importante avanço para a saúde e o bem-estar das pessoas e para que possam ter mais tempo de cuidar de outras áreas da vida.

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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