“Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.

Agora vale a vida,

e de mãos dadas,

marcharemos todos pela vida verdadeira.”

Os Estatutos do Homem, Thiago de Mello

Fonte: A Complexidade Nos Estatutos Do Homem Thiago De Mello, Cássia Maria Bezerra do Nascimento

Dia seguinte ao golpe militar de 1964. Thiago de Mello era adido cultural do Brasil no Chile e ouviu a notícia pelo rádio junto com Pablo Neruda e Salvador Allende. Além de renunciar ao cargo na diplomacia brasileira, para não servir à ditadura, o poeta escreveu, logo em seguida, seu poema mais conhecido – Os Estatutos do Homem – traduzido para mais de 30 idiomas (sendo Neruda o tradutor para o espanhol).

Talvez a recorrência do “fica decretado” ao lado de afirmações líricas ressoe em sua memória – como no Artigo XII, em que “decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela”. Mas conhecer o contexto em que foi produzido muda completamente a dimensão do impacto que o texto tem. E o atualiza. Assim como transforma a nossa compreensão sobre esse poeta que morreu aos 95 anos em janeiro de 2022, como defensor da Amazônia, dos direitos humanos e um dos grandes da nossa literatura.

A poesia de Thiago de Mello é lírica e política. Bela e contundente. Simples e corajosa. Precisa. Necessária. Relê-la nestes tempos foi um antídoto para voltar a acreditar em um Brasil sonhável. “Faz escuro mas eu canto”. Não à toa esta frase inspirou a Bienal de São Paulo de 2021. (Recomendo que você leia, ou veja o próprio poeta declamando Os Estatutos do Homem aqui neste vídeo de um evento em 2006).

Eu já vinha desejando fazer um texto inaugural de 2022 para falar da aprendizagem em uma dimensão menos técnica e mais afetiva, quando a morte do poeta da Amazônia me colocou de novo em contato com sua obra e eu pensei: mais do que afetiva, é poética o termo que estou buscando.

“A poesia é hoje um modo de conhecimento, afetivo embora, conatural embora, ainda que imperfeito e fazendo mesmo dessa imperfeição a sua grandeza, e por mais paradoxal que pareça, a sua perfeição mesma”

Jorge de Lima

Fonte: A Complexidade Nos Estatutos Do Homem Thiago De Mello, Cássia Maria Bezerra do Nascimento

Desejo que em 2022 a sua aprendizagem traga a mesma sensação que a leitura de um bom poema: presença e inteireza. Que a aprendizagem, como a poesia, abra a sua percepção de forma irreversível. Que habilite a enxergar mais riqueza no cotidiano. Que inaugure infinitas possibilidades sobre você mesmo, mas que gere calma e pertencimento – e não ansiedade.

Quem aí já leu poesia (ou ouviu música, para quem AINDA não tem intimidade com os poemas escritos) pensando em todas as poesias que existem e que está deixando de ler enquanto frui a escolhida? Não faz sentido, assim como o FOMO – medo do que estamos perdendo, da sigla em inglês fear of missing out – não faz sentido algum quando falamos de aprendizagem.

Que em 2022, consigamos avançar na busca pelo equilíbrio entre aprender sempre e celebrar os aprendizados alcançados, diminuindo cada vez mais a sensação de insuficiência que nos acompanha. Que as metas que vimos nas redes sociais na virada do ano – como “ler um livro por mês” – não se transformem e troféus a serem postados, mas em conhecimento em movimento, compartilhado e recriado a partir do que a vida real apresenta.

“Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Tabacaria, Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

A aprendizagem é uma forma de autoria da própria vida em suas várias dimensões, incluindo a convivência, o trabalho e a capacidade de imaginar e construir novos futuros coletivos. Essa visão em nada se confunde com uma visão idealizada ou “jovem-mística”. É o contrário: a aprendizagem que importa é aquela comprometida radicalmente com o contexto, todas as suas complexidades e contradições. O que inclui o cansaço e o desgaste que se acumulou nesse longo período pandêmico e das mais assustadoras incertezas em nosso país.

Desejo que em 2022 você se aproprie da sua trajetória de aprendiz como um artista – ou um poeta – vivencia seu processo criativo: unindo imaginação e matéria, a abstração do sonho aos contornos da linguagem. Que possa achar o ponto justo para você nos passos possíveis hoje para o futuro que deseja construir em sua carreira. Que você tenha sim as suas metas, mas que elas sirvam principalmente para revelar as oportunidades que o imprevisível apresentará ao longo do ano.

Que seus grandes propósitos não impeçam de enxergar as ervas e árvores que se apresentam pelo caminho.

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Leia com calma:

“Cidade Maravilhosa, és minha

O poente na espinha das suas montanhas

Quase arromba a retina de quem vê”

Carioca, Chico Buarque   

Leia de novo.

Um dia, cantarolando essa música do Chico – é aquela que começa com “Gostosa, quentinha, tapioca…” – simplesmente entendi os versos acima. Instantaneamente virou uma de minhas músicas favoritas, pois me transporta aos momentos de contemplação da beleza da silhueta das montanhas do Rio de Janeiro. Como palavras tão simples criam uma imagem tão forte? Eu, paulista, me sinto espiritualmente carioca ao me conectar com essa imagem. Que é o nome da música! Coisa de gênio.

Desejo que em 2022 você consiga encontrar os pontos precisos da aprendizagem mais significativa. Que a aprendizagem cause aquele mesmo espanto que temos quando lemos um poema que nos toca: não poderia haver forma melhor de dizer isso! A perfeita junção da forma e do conteúdo, algo inédito mas ao mesmo tempo límpido, sem excessos ou complicações. Pequenos sustos felizes.

“O sentido é uma silhueta que se recorta contra o fundo da realidade”, nas palavras de Viktor Frankl; ou, como na famosa frase atribuída a Michelangelo: “Como faço uma escultura? Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário.”

Que 2022 proporcione momentos inesquecíveis de aprendizagem, que você leve para a vida como a lembrança carinhosa daquela professora da escola.

“O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Sozinho?

César bateu os gauleses.

Não levava sequer um cozinheiro?

Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada

Naufragou. Ninguém mais chorou?

Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.

Quem venceu além dele?”

Perguntas de um trabalhador que lê, Bertolt Brecht

Fonte: Bertolt Brecht, Poemas 1913-1956. Editora 34, 2000.

Nunca ninguém venceu guerras sozinho, mas por um tempo essa foi a história contada – só que, para quem está de fato construindo o futuro, esse papinho não cola mais. A aprendizagem do presente e do futuro é colaborativa. A inteligência coletiva é muito mais do que a soma das inteligências. Estamos mais conectados do que nunca.

Meu desejo para sua aprendizagem em 2022 é que você encontre muitos cúmplices. No trabalho, entre amigos, conexões digitais. Pessoas que você chame para pensar junto e se disponibilize a ajudar também. Que você encontre ambientes em que aprendizado e criatividade andem juntos, naqueles momentos de grande energia e entusiasmo. Que você tome para si a responsabilidade de criar esses ambientes.

Meu principal desejo para 2022: que você descubra o seu poema favorito – ou que lembre sempre de reler o que já tem.

Aqui está o meu:

“Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre


Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás — como se diz — a casa térrea —
Construirás a partir do fundamento”

A Casa Térrea, Sophia de Mello Breyner Andresen.

Ilustração desse artigo: Katharina Bourjau

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Clara Cecchini

Clara Cecchini é coautora do livro Aprendiz Ágil (com Alexandre Teixeira, Arquipélago Editorial, 2020). É apaixonada por aprendizagem contínua e pela construção de sentido que ela proporciona. Especialista em estratégias de aprendizagem, inovação e curadoria de conteúdo. Formada em Artes Cênicas pela Unicamp, com MBA em Bens Culturais pela FGV e cursos complementares na Schumacher College (Inglaterra) e na Kaospilot (realizado no Brasil pela escola dinamarquesa). Trabalhou com educação sob diversas perspectivas, desde a formulação de políticas públicas até a criação de universidades corporativas, passando também por ONGs e escolas de negócios. Hoje, atua como consultora, escritora e mentora, com o propósito de reconectar a aprendizagem à vida e ao trabalho.

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