“O sentido é uma silhueta que se recorta contra o fundo da realidade”

Viktor Frankl

Nada era o que eu pensava. Ou como. Ou por quê.

Algumas pessoas expressaram essas frases em palavras; outras, transpareceram no corpo. Essa é a potência de uma experiência de aprendizagem que abre horizontes enquanto ilumina a nossa própria vida.

Aconteceu na 35ª Bienal de São Paulo, com o artista e professor Danilo Oliveira, e foi uma das mais marcantes pela qual já passei. Uma combinação perfeita de conhecimento, interação e afetos – o tripé que nós educadores buscamos tanto, realizado à perfeição.

Foram aulas online de arte contemporânea acompanhadas de visitas guiadas à exposição Coreografias do Impossível, nome da 35ª[1]. Refletindo depois da experiência, percebo que foi tão marcante porque os afetos foram o eixo de tudo. Da forma como a história dos artistas foi contada à orientação explícita de não colocar o celular como intermediário do primeiro contato com as obras. Primeiro viver, ver, sentir; depois, se ainda fizer sentido, fotografar.

As aulas nos levaram a conhecer o Renascimento do Harlem, a história das Bienais no mundo, informações sobre a vida de alguns artistas, linguagens e muito mais. Esse conhecimento todo construiu a possibilidade de sentir, por exemplo, a obra O estrangeiro de Sidney Amaral. O artista retrata o próprio corpo negro em uma separação radical do venerado espaço de arte – o inconfundível prédio da Bienal. Uma coreografia do impossível que se realizou. Fruir a obra no próprio prédio retratado, sabendo que Amaral não viveu para ver isso – a presença do nosso corpo e a ausência do corpo do artista – fez com que cada um de nós refletisse: o que mais eu deixei de enxergar todo esse tempo? Onde eu estava? Fazendo o quê? Nada é mais urgente do que isso.

A espiral do propósito

“A arte contemporânea é sobre o que acontece quando você volta para a sua realidade e a vê de uma forma diferente, age de uma forma diferente”. Foram muitas as frases do Danilo Oliveira que ficaram ressoando em mim. Mas o motivo que me fez guardar essa (talvez imprecisa) é porque a mesma ideia se aplica perfeitamente à aprendizagem. Eu, aliás, já disse algo muito parecido, tomando emprestado do Josh Bersin – é só ler este meu artigo aqui, de 2021.  Aprender não é consumir conteúdo, aprender é o que acontece quando a gente coloca o conhecimento no contexto, criando, transformando a nossa realidade (essa frase é minha mesmo, remixando Oliveira, Bersin e experiências).

Ouvir uma frase que aproxima tanto a experiência com arte contemporânea à experiência de aprendizagem derrubou a primeira peça no meu dominó mental, que levou à epifania de entender que sempre foi isso. Desde lá na época do teatro, e depois o trabalho social que virou gestão cultural que virou educação pública que foi para a corporativa e, pronto, virou a possibilidade de empreender e inventar o novo com base nisso tudo.

Sempre foi isso desde o teatro porque o que sempre me interessou foi o processo criativo e as invenções coletivas. Sempre foi isso também trabalhando com arte com adolescentes em situação de vulnerabilidade extrema porque o importante era a reconexão à potência criativa da vida. Sempre foi isso trabalhando com educação pública com uma visão progressista por acreditar que todos merecemos uma existência complexa, não óbvia, quente e não só de sobrevivência. Sempre foi isso quando, ao entrar na educação corporativa, fui inventar logo de trabalhar com cultura de aprendizagem – e ao escolher um tema, qual foi? A importância da rebeldia nas organizações. Sempre foi isso. Mais perguntas, menos respostas. A espiral.

“Ensinar é um ato teatral. (…) Esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais, a se tornar parte ativa do processo de aprendizado” diz bell hooks, em Ensinando a Transgredir. E foi exatamente esse o poder da visita à Bienal, revelar não apenas o sentido que costura as experiências vividas – em espiral – mas aquele que conecta presente e futuro. Sempre foi isso, é e será.

As mad skills

São aquelas habilidades que desenvolvemos ao exercer algum hobbie, o que significa praticar com consistência alguma atividade não ligada ao trabalho. É aquele tempo dedicado a explorar as possibilidades de ser de outras formas, que não o binômio que não nos deixa em paz: produzir ou consumir. Consumir ou produzir.

Mad skills. E se… a gente pegasse os termos em inglês e, em vez de apenas eliminá-los, usasse-os como ponte intencional, colocando em pauta em alguns ambientes questões que eles antes expulsariam?

Eu aprendi o “e se…” com a Carolina Sanches em uma aula aberta do Clube da Escrita CC e percebi que já fazia isso intuitivamente, em especial nas pequenas transgressões do dia a dia. Claro que a língua portuguesa oferece todas as possibilidades de expressão, e que a comunicação simples e inclusiva é o nosso valor mais importante. Mas se Danilo não tivesse usado nosso vocabulário não teria nos transformado tanto. Não, ele não usou “mad skills”, mas eu estou usando. Fiz um experimento neste post aqui e comprovei a minha hipótese.

Há quanto tempo falo da importância da arte e de uma formação ampla, humanista, além do imediatismo e da relação transacional com o conhecimento? Se contarmos linearmente na minha espiral do propósito, há uns 127 anos. Mas nunca senti tanta ressonância quanto ao usar o termo mad skills – habilidades loucas, malucas, insanas, radicais, fora de série.

O termo chegou a mim recentemente, em artigos enviados por alunas (as melhores leituras!). Se precisamos de um termo em inglês para lembrar que somos mais do que produzir e consumir, let it be. Partimos daí, não chegamos aí.

Ao vivenciar a experiência na Bienal na mesma época que conheci as habilidades insanas, fiquei achando que o termo em inglês pode ser muito útil para multiplicarmos as pontes transgressoras nos nossos ambientes de trabalho. Se está na Forbes e na Exame, está feita a validação. Agora, também as mesas de debate mais pragmáticas podem passar a conversar sobre o fato de que não dá mais para adiar uma visão de aprendizagem que potencialize a nossa humanidade. Inclusive – e principalmente – quando falamos de tecnologia.

O americano John Hagel, cofundador do Deloitte Center for the Edge, neste artigo curto e brilhante traz alguns pontos sobre Inteligência Artificial e aprendizagem. Ele diz que em uma época de transformação, muito mais conhecimento tácito é criado do que conhecimento explícito – e a IA só se alimenta de conhecimento explícito. Conhecimento tácito é aquele que está dentro de nós, que adquirimos pela experiência e que temos dificuldade de colocar em palavras; conhecimento explícito é aquele que está fora de nós. Por exemplo: conhecimento tácito é o que senti, pensei, ressignifiquei e conectei com a visita à Bienal; aí fiz um esforço de colocar alguns desses aspectos em conhecimento explícito para você, leitora do O Futuro das Coisas. Outro aspecto que Hagel destaca é a crescente importância do contexto que, adivinha só, também foi um dos maiores destaque do Danilo em relação à arte contemporânea.

Mondrian e Valentim na mesma sala

Retângulos amarelos, azuis, vermelhos, pretos e brancos, de diferentes tamanhos, divididos por linhas pretas perfeitamente perpendiculares. Provavelmente você reconhece essa imagem e, mesmo que de forma não consciente, a associa à “arte universal”. Referência plástica que saiu dos quadros do holandês Piet Mondrian para estampar canecas, meias e outros objetos.

Pois bem: na visita à Bienal, aprendemos que a pretensão à universalidade é uma eficiente violência simbólica do colonialismo.

Mondrian e Valentim na mesma sala seria uma boa metáfora, mas eu de fato vi os dois juntos na Tate Modern (Londres) recentemente. Mondrian não estava na 35ª, mas estava na sala dedicada à Bienal de São Paulo na Tate e chamada de, em tradução livre, Uma visão de São Paulo: abstração e sociedade

Sem dúvida, Mondrian povoa muito mais o nosso imaginário do que Rubem Valentim, homem negro, baiano, que pintava seus emblemas com símbolos da Umbanda e do Candomblé. Como essas palavras, Umbanda e Candomblé, ressoam em você? A pretensão universalizante é uma violência tão profunda a ponto de se fazer invisível nas formas como nomeamos o outro, o diverso, o exótico, o naif, o popular, o folclore. Todas essas palavras colocam o branco europeu como medida padrão do mundo – e “o outro” como o fora da medida.

“Nada era o que eu pensava. Ou como ou por quê.” foi com a descoberta do problema dessas palavras, principalmente o folclore, que observei os corpos daquele grupo dizerem isso.

E quais os “take aways”?

Não se preocupe. Eu te fisguei com o termo mad skills combinado a arte e propósito, e é a essa convergência que estamos chegando.

Aqui da curva da espiral em que estou hoje, sintetizo quatro ideias principais vindas da arte contemporânea e que podem inspirar que você siga na sua busca de sentido (no trabalho ou fora dele).

1. O compromisso com o contexto é o único caminho justamente porque não apaga as contradições.

Trabalhando com educação corporativa, eu já tinha incorporado a ideia do contexto como essencial à aprendizagem. Mas só com a arte contemporânea percebi que colocar pessoas e lugares em primeiro plano é uma forma de olhar para o que realmente importa, sem transformar a realidade em uma simetria perfeita de cores primárias. Ver artistas que nunca tiveram espaço no mundo da arte retratando corpos que nunca foram retratados e jogando magistralmente com a linguagem é transformador. Devolve-nos à nossa realidade com sede de entender o que não conseguíamos enxergar e quem estávamos ajudando a silenciar – e agir a partir disso.

2. Não há universalidade na arte, não há neutralidade na aprendizagem.

Essa é difícil de digerir. Mas se o aprendizado acontece quando você transforma seu contexto, é preciso entender sobre quais valores essa transformação está acontecendo. A intenção é fundamental tanto para quem planeja aprendizagem quanto para quem aprende.

3. A arte contemporânea joga luz às questões coletivas inadiáveis.

Não é moda, não vai passar e não é um momento. Algumas pessoas lutam para manter seus espaços de poder blindados de discussões sobre o meio ambiente, a urgência da regeneração do planeta, as desigualdades e violências múltiplas que aprendemos a naturalizar. Essa luta está perdida, seja com um desfecho utópico – como o que vemos na Bienal, em que as coreografias do impossível se realizam – seja com um desfecho distópico, em que todos padeceremos. Fim. Sinto muito, mas é isso. Lutemos pela utopia.

4. Contemporâneo é o que criamos. 

Respondendo à nossa cara de “ué?” a uma obra feita há décadas exposta na Bienal de 2023, Danilo respondeu que, não havendo descolamento da arte do contexto, contemporânea é a presença daquele artista naquele contexto. Contemporâneo é o nosso olhar para essas conexões todas, desde que ouse recortar novos sentidos da realidade.

Exponha-se para girar a sua espiral do propósito. Se for desenvolver suas mad skills, vá. Se for a exposições, seja mais do que um “visitante”, vá além do consumo de informações e fotos para postar: mergulhe no mundo condensado pelos artistas. Encontre bons professores, angarie cúmplices e faça boas leituras. Alimente seu conhecimento tácito.

Um dos textos mais marcantes na minha trajetória como educadora, Notas sobre a experiência e o saber da experiência, de Jorge Larrosa Bondía, começa com a citação de Kafka: “no embate entre você e o mundo, prefira o mundo”.

Nunca a silhueta de sentido que essa frase recorta esteve tão nítida para mim.

Dedico este texto aos alunos e educadores da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, que sofrerão as consequências de uma decisão que vai na contramão de tudo o que falo aqui, eliminando do currículo justamente tudo o que constrói as bases para uma aprendizagem transgressora, criativa, questionadora. Espero que encontrem outros caminhos – porque o planeta precisa, a existência merece e, surpresa!, o tal “mercado de trabalho” exige (caso você ainda precisasse desse argumento…).  


[1] Conheci o Danilo pelo convite incrível da Monica Dalgé, a quem agradeço novamente.

Clara Cecchini

Clara Cecchini é coautora do livro Aprendiz Ágil (com Alexandre Teixeira, Arquipélago Editorial, 2020). É apaixonada por aprendizagem contínua e pela construção de sentido que ela proporciona. Especialista em estratégias de aprendizagem, inovação e curadoria de conteúdo. Formada em Artes Cênicas pela Unicamp, com MBA em Bens Culturais pela FGV e cursos complementares na Schumacher College (Inglaterra) e na Kaospilot (realizado no Brasil pela escola dinamarquesa). Trabalhou com educação sob diversas perspectivas, desde a formulação de políticas públicas até a criação de universidades corporativas, passando também por ONGs e escolas de negócios. Hoje, atua como consultora, escritora e mentora, com o propósito de reconectar a aprendizagem à vida e ao trabalho.

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