A palavra “Karoshi”, de origem japonesa, descreve a morte pelo excesso de trabalho. O óbito acontece de forma súbita ou dentro de 24 horas após o início dos sintomas. As consequências são ataques cardíacos, acidentes vasculares cerebrais (AVC), trombose ou infarto cerebral, infarto agudo do miocárdio e insuficiência cardíaca.

Foi o que aconteceu em 2013 com uma repórter japonesa chamada Miwa Sado, de 31 anos, que morreu subitamente. Em apenas um mês, ela havia acumulado 159 horas extras para cobrir duas eleições consecutivas. Quando foi encontrada, ainda segurava o celular. Sua morte foi diagnosticada como um caso de karoshi.

A história de Miwa e o fenômeno karoshi são abordados pelo antropólogo James Suzman em seu livro, “Work: A History of How We Spend Our Time“. James destaca que, na economia pós-industrial, tanto o volume de trabalho quanto nossas ambições podem estar passando dos limites. “O que leva pessoas como Miwa Sado a perder ou tirar suas vidas não é privação ou pobreza, mas suas ambições refletidas nas expectativas de seus empregadores”, escreve.

Em 2013, Miwa foi uma das 133 pessoas que, no Japão, oficialmente morreram por karoshi. Mas um primeiro estudo global feito pela OIT revelou que 745 mil pessoas morreram em 2016 de derrame e doenças cardíacas relacionadas a longas horas de trabalho.

O Brasil está na faixa de países que têm até 4% da população exposta a longas jornadas de trabalho (55 horas ou mais por semana, ou 11h de segunda à sexta). A pesquisa da OIT descobriu que trabalhar 55 horas ou mais por semana está associado a um risco 35% maior de AVC e 17% maior de morrer de doença cardíaca, em comparação com uma semana de 35 a 40 horas de trabalho.

“Oh, esquece – meu trabalho aqui já está pronto.” (Cartoon: Emily Flake)

Será que deveríamos nos permitir trabalhar além da conta?

No livro “Company of One: Why Staying Small Is the Next Big Thing for Business”, algo como “Porque continuar pequeno é a próxima grande tendência para os negócios”, Paul Jarvis argumenta que, em vez de querer que seu negócio cresça, e com isso faturar mais, propositalmente é deixá-lo menor para minimizar estresses e maximizar o tempo para o lazer. Essa ideia contrasta fortemente com os livros de negócios que vemos nas livrarias ou com o que pregam os gurus.

Em seu artigoWhy Do We Work Too Much?(Por que trabalhamos tanto?), Cal Newport, professor de ciência da computação da Universidade Georgetown, levanta uma questão interessante:

“A maioria das pessoas que têm a sorte de ter algum controle sobre sua rotina de trabalho – como trabalhadores do conhecimento e empresários – trabalham além do nível que poderia ser considerado já suficiente, como por exemplo, 20% a mais do que precisariam. Esses 20% extras são suficiente para gerar um estresse contínuo – sempre há algo atrasado, uma mensagem que não pode esperar até o dia seguinte, sempre há uma sensação incômoda de irresponsabilidade em qualquer momento de inatividade. No entanto, essa sobrecarga está abaixo de um nível que seria insustentável e que forçaria uma mudança. […] Se quisermos que nossos ambientes de trabalho se tornem mais produtivos e mais humanos, vamos ter que descobrir como contornar os 20% extras que acumulamos”.

Cal adverte que a sobrecarga de trabalho nem sempre é culpa do capitalismo – seja diretamente, por meio de demandas exaustivas e até irracionais, salários baixos ou indiretamente, sustentando uma cultura que valoriza a laboriosidade.

Quando se trata de trabalhadores do conhecimento, profissionais autônomos e empresários, a questão se torna mais sutil e arriscada. Muitos desses profissionais que se sentem sobrecarregados não têm um gerente ali no pé medindo sua produtividade e os pressionando a fazer mais. A pressão vem de si próprios e também em função do alto custo de vida hoje. Muitos até gostariam de aliviar esse frenesi, mas não conseguem.

Cal recorre a uma sátira publicada na The Economist em 1955 por um historiador naval britânico chamado Cyril Northcote Parkinson, e que acabou se tornando um clássico entre os estudiosos do trabalho e da produtividade. Parkinson discute a burocracia desenfreada do Almirantado Britânico que ocorreu entre 1914 e 1928. Durante o período do pós-guerra, o número de navios de guerra e marinheiros que os tripulavam diminuiu significativamente. Mas, nesse mesmo período, a burocracia administrativa naval aumentou demasiadamente. Parkinson argumenta que, na ausência de diretrizes estritas sobre o trabalho que deveria ser realizado, tornou-se um sistema independente e autorregulado que começou a crescer, sem relação com as reais demandas organizacionais que atendia.

Uma possível verdade pode estar embutida nessa sátira segundo Cal: sistemas de trabalho onde há total autonomia podem evoluir, de forma independente, escapando da racionalidade. Uma vez que consideramos essa possibilidade, o problema de estarmos tão ocupados pode ficar mais fácil de entender. A autonomia que alguns profissionais têm para decidir quais tarefas vão assumir (e quais vão adiar ou recusar), também pode ser a causa desses 20% extras de trabalho.

Esses profissionais definem eles mesmos como será o dia de trabalho. Diariamente são bombardeados com projetos, demandas, oportunidades e convites. Como fazer a triagem? Se você recusa um convite para uma reunião no Zoom, haverá um custo de capital social, pois poderá estar causando algum tipo de entrave ou desconforto à quem lhe convida ou à sua equipe e poderá estar passando a impressão de que não se importa tanto com o assunto a ser discutido. Mas, se você sente que está completamente esgotado e estressado pelo volume de trabalho, esse custo pode se tornar aceitável pra você e para os outros: estar “ocupado” lhe dá um escudo psicológico para poder escapar dessa reunião.

“Este esquema de autorregulação pelo estresse garante que você continue sempre moderadamente em estado de sobrecarga”, Cal sugere. “Nossa tendência de trabalhar 20% ou 30% a mais não é arbitrária: é um efeito colateral da natureza aleatória em que permitimos que nosso trabalho e esforços se desdobrem”, complementa.

Ao pensarmos mais intencionalmente sobre como o nosso trabalho é priorizado, podemos evitar algumas armadilhas dessa autorregulação. A pandemia nos mostrou que é possível emergir novas culturas de trabalho: trabalho remoto, trabalho híbrido, uma semana de 4 dias de trabalho, como exemplos. Mas esses novos formatos não são garantia de que iremos trabalhar de forma moderada e a sobrecarga pode continuar. Será que no futuro optaremos por expectativas mais baixas de crescimento profissional (ou nos negócios) para priorizar nossa saúde e tempo de lazer?

A questão aqui é: para redirecionar o futuro do trabalho temos que ter algum controle no presente dele.

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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