Uma filosofia ancestral com a visão de que a mente ou algo semelhante à mente é uma característica omnipresente da realidade. Derivada das palavras gregas pan (“tudo, todo”) e psique (“alma, mente”),  o “panpsiquismo” tem a visão de que a mente ou algo semelhante à mente é uma característica omnipresente da realidade e que esta pode assumir uma variedade de formas.

Enquanto hoje os acadêmicos sustentam que a senciência é omnipresente e está fora de atributos mentais humanos, atribuindo a uma forma primitiva de mentalidade a entidades ao nível fundamental da física, os filósofos ao longo do tempo deram atributos como vida ou espíritos às entidades.

Há pouco tempo, li dois textos – “The Conscious Universe” e “A new place for consciousness in our understanding of the universe” – e a entrevista “The Romantic Reductionist” que abordam sobre o universo consciente.

O primeiro texto resgata a história de Margaret Cavendish, escritora, dramaturga e filósofa, que tinha uma noção de ética ambiental rara naquela Europa de 1600. Com suas teorias filosóficas sobre a natureza da realidade, ela acreditava que, em um nível fundamental, todo o universo seria feito de matéria animada, consciente, completamente interconectada e em harmonia com tudo ao redor. E que a consciência não seria exclusiva aos humanos, mas, de alguma forma, estava presente na natureza, nos animais, rochas e átomos. O mundo pulsava na sua percepção.

Suas “visões excêntricas” levaram a comunidade científica do século XVII lhes dar as costas, e muito de seu trabalho foi ignorado. Sendo a primeira mulher a visitar, em maio de 1667, a Royal Society, instituição científica exclusivamente masculina, o relato sobre sua visita se concentrou unicamente em seu vestido. Foi rotulada de louca, vaidosa, ridícula e irracional.

Antes dela, o frade e filósofo italiano Giordano Bruno acreditava que todo o universo seria feito de uma substância universal única que continha espírito ou consciência. Apontado como herege, foi amordaçado, amarrado a uma estaca e queimado vivo pela Inquisição no centro de Roma.

Em Amsterdã, o filósofo judeu Baruch Spinoza escreveu que cada coisa física tinha sua própria mente, e todas essas mentes estavam em harmonia com a mente divina. Como reação às suas ideias, a Igreja proibiu seus livros e ele foi excomungado.

Nessa época, a cosmovisão que o cristianismo e a ciência tinham era que a matéria era inanimada e o homem superior à natureza. Ao contrário, a Cavendish, Spinoza, Bruno e outros acreditavam em uma ideia ancestral presente no hinduísmo, budismo, taoísmo, misticismo cristão, na filosofia da Grécia antiga, e em muitas crenças indígenas. Essa ideia tem muitas formas e versões, e estudos modernos abrigam todas elas dentro de uma grande teoria geral: panpsiquismo.

Panpsiquismo é a ideia de que a consciência – o fenômeno mais misterioso que existe – não é exclusiva dos humanos e de organismos mais complexos, mas permeia todo o universo e é uma característica fundamental da realidade. “Em um nível muito básico, o mundo está acordado ou consciente”, escreveu o filósofo canadense William Seager.

Platão e Aristóteles tinham crenças panpsiquistas, assim como os estoicos. Na virada do século XII, São Francisco de Assis conversava com plantas e flores e pregava aos pássaros, de tão convencido de que tudo era consciente . William James, pai da psicologia americana, era panpsiquista; Max Planck, físico ganhador do Prêmio Nobel, considerava a matéria como derivada da consciência: “Tudo sobre o que falamos, tudo o que consideramos existente, postula a consciência”. Thomas Edison também tinha visões panpsiquistas: “Parece que cada átomo possui certa quantidade de inteligência primitiva”.

Mas ao longo do século 20, o panpsiquismo passou a ser visto como incompatível com a ciência e filosofia ocidentais. Karl Popper, um dos filósofos mais influentes dos últimos tempos, a descreveu como “trivial” e “enganosa”. Já o filósofo americano John Searle dizia que “a consciência não pode ser espalhada pelo universo como uma camada de geleia”.

A maioria dos filósofos e cientistas com crenças panpsiquistas se mantiveram quietos com medo da reação do público. “O panpsiquismo era ridicularizado”, escreve o filósofo Philip Goff em seu livro, “O erro de Galileu: fundamentos para uma nova ciência da consciência”.

Goff faz parte de uma corrente crescente de pensadores atraídos a essa teoria. Em seu livro, explica que a ideia básica é a seguinte: blocos fundamentais de construção do universo – elétrons e quarks – têm formas simples de experiências – como a de um cérebro humano. “Não significa que uma cadeira seja consciente, mas que as minúsculas partículas das quais ela é composta têm algum tipo de experiência rudimentar.”

Imagem da capa e aqui: arte de Arthur Rackham de uma rara edição de 1917 dos contos de fadas dos Irmãos Grimm (disponível em impressão)

O panpsiquismo lança dúvidas sobre os fundamentos de uma visão de mundo profundamente enraizada na sociedade: a de que os humanos são superiores a tudo ao seu redor.

“Talvez seja hora de uma revolução copernicana em nossa própria consciência.” – Philip Goff em “Consciousness and Fundamental Reality”

A noção de um mundo alerta e consciente parece pouco intuitiva para a maioria de nós, mas é algo que experienciamos naturalmente na infância. Em 1929, o psicólogo suíço Jean Piaget descobriu que crianças entre dois e quatro anos tendem a atribuir consciência a tudo, como por exemplo, conversar alegremente com um inseto e xingar a calçada ou uma pedra quando tropeçam.

A maioria de nós perde essa conexão com o passar dos anos; vamos estreitando o conceito de consciência, e considerando que ela está presente apenas em nós e em alguns animais.

Mas, a partir desse novo século, começamos ampliar essa perspectiva graças a avanços científicos. Livros e filmes foram produzidos sobre a comunicação inteligente dos fungos e da economia de partilha interespécies nas florestas. Hoje, sabemos que as abelhas reconhecem rostos, usam ferramentas, tomam decisões coletivas, dançam para se comunicar e parecem entender alguns conceitos. Estudos mostram que plantas aprendem, se comunicam e tomam decisões, escrevi sobre isso aqui.

Quando você considera que as plantas representam 82,4% da biomassa total da Terra (e nós, representamos apenas 0,01% da vida no planeta), estender a consciência a elas significaria que estamos vivendo em um planeta muito consciente.

“As coisas do mundo são coisas da mente”. A consciência não surgiu ou passou a existir; sempre esteve lá – a natureza intrínseca de nós e tudo ao nosso redor.” – Arthur Stanley Eddington, astrofísico

Ideias que floresceram nas décadas de 1920 e 1930 – de Eddington, Russell e de outros – foram ignoradas e apagadas. A academia ocidental foi tomada por um grupo de filósofos (Círculo de Viena) e por seu movimento de positivismo lógico. A Europa estava sendo bombardeada por ideologias dogmáticas e propaganda política, e os positivistas lógicos protestavam a favor do “pensamento exato”, de padrões científicos e de rigorosa objetividade.

O positivismo lógico tomou conta das universidades, rejeitando discussões metafísicas abstratas, baseando-se no que podia ser observado; o que acontecia dentro da mente foi ignorado em favor de como os humanos se comportavam, dando início à ascensão de B.F. Skinner e da psicologia comportamental.

A forma como vemos o mundo determina como o tratamos

O historiador Lynn Townsend White Jr, em seu discurso à AAAS, em 1966, disse: “A forma como as pessoas encaram a ecologia/natureza depende do que elas pensam sobre si mesmas e em relação às coisas ao seu redor”. Ele acreditava que para enfrentar a crise climática deveríamos repensar a mentalidade que a causa. Aos seus olhos, a causa seria ideológica.

White Jr. definiu o cristianismo como a “religião mais antropocêntrica que o mundo já viu” em contraste ao paganismo antigo que girava em torno da ideia de um mundo vivo e consciente: “Os espíritos nas coisas naturais, que antes protegiam a natureza do homem, evaporaram… e as antigas restrições à exploração da natureza desmoronaram”, disse.

“O cristianismo não criou a crise ecológica”, reforçava White, mas “lançou as bases para uma relação abusiva e de exploração do homem com a natureza”. Para ele, a ideologia religiosa foi infundida com a Revolução Científica que inaugurou uma era de tecnologia, capitalismo e colonialismo que prosperou explorando a Terra. O universo passou a ser visto não como orgânico e animado, mas como uma máquina sem mente, como um relógio, cujas engrenagens são governadas por leis científicas. A imprevisibilidade da natureza foi transformada em algo estável, previsível, cognoscível e, portanto, controlável. Florestas estavam ali para serem desmatadas, vales e colinas estavam ali para serem mineradas e animais estavam ali para serem abatidos. Era a visão de um “mundo mecanicista”.

Talvez a nossa visão de mundo mecanicista não seja um retrato verdadeiro da realidade, mas algo que foi construído. Portanto, pode ser reconstruído. E o panpsiquismo pode ser uma reconstrução possível.

A incapacidade compreender ou mesmo enxergar como o mundo natural está sob ameaça, pode ser consequência de nossa recusa em nos vermos como parte dele. Talvez precisemos colocar a mente de volta na matéria, nos reconectar à natureza, dissipar o excepcionalismo humano e revolucionar nossa ética.

Talvez agora estejamos à beira de outra mudança de paradigma, seja para o panpsiquismo ou para alguma outra visão de mundo que perceba a natureza como mais do que matéria insensível. Uma visão que não leve ao colapso ecológico do planeta. Uma visão que nos acorde sobre a saúde dos oceanos, sobre a mudança climática e nos coloque em um continuum de consciência com tudo o que vemos ao nosso redor.

Enfrentar os desafios requer uma mudança cultural em nossa relação com a natureza e com a energia – como a produzimos e como a consumimos. Isso torna a ação de cada um de nós importante, porque são os comportamentos e atitudes coletivos que definem e mudam uma cultura. Sim, precisamos de políticas climáticas mais potentes e lideranças mais fortes para levá-las adiante, mas tudo será resultado da mudança cultural.

As respostas biológicas às mudanças climáticas estão visíveis e são um lembrete diário de que nós, humanos, somos governados pelas mesmas forças que afetam plantas e animais. O que escolhermos fazer agora não determinará apenas o que vem a seguir na natureza e no planeta; determinará nosso lugar neles.

Ilustração capa: Pablo Hurtado de Mendoza

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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