Lá pelos anos 1980, os antropólogos Gilles Deleuze e Félix Guattari propuseram uma forma diferente de ver o mundo e, quiçá, compreendê-lo, pegando emprestado da botânica o conceito de rizoma.

Rizoma é um modelo epistemológico que, nas últimas décadas, vem sendo considerado por acadêmicos e estudiosos de um valor inestimável para explicar como, ao mesmo tempo, as coisas podem ser diferentes e entrelaçadas. Na Conferência de Estudos de Deleuze na Índia, por exemplo, alguns deles mostraram como o pensamento rizomático poderia tornar a política, a filosofia, o cinema, o design e o planejamento urbano melhores e mais compreensíveis.

Mas por que Deleuze e Guattari elaboraram um conceito filosófico rizomático expresso em sua coleção Mil Platôs?

Um dos motivos seria para que as pessoas percebessem e apreciassem melhor a singularidade das coisas e a miríade de conexões de cada coisa com outras coisas.

Para onde olharmos podemos ver singularidades. A compreensão de um mundo interconectado de singularidades pode justamente mudar a forma como discutimos nossas ideias e como agimos no dia a dia.

Rizoma pode ser explicado como a extensão do caule que une sucessivos brotos, podendo ser bem extenso e semelhante a um arame ou bem curto, quase invisível. Dele partem o caule, pseudobulbos e raízes. A grama é um exemplo de planta rizomática, assim como o bambu e a cana de açúcar. A bananeira também tem rizomas, responsáveis por sua eficiente reprodução por “clonagem”.

Na interpretação da filosofia, o rizoma difere do caule da raiz ou da estrutura em forma de árvore. Uma raiz tem um centro e vai fundo, aprofunda-se. Um rizoma, ao contrário, é uma estrutura em crescimento em largura e sem centro semântico.

Um modelo arborescente trabalha com conexões verticais e lineares, enquanto um rizoma trabalha com conexões planares e transespécies. (Ilustração: Kevin Murray e Katerina Gloushenkova)

As árvores nascem das sementes, e estas sementes transmitem a mesma composição genética a muitas outras árvores. Por sua vez, árvores são platônicas na medida em que existe uma ideia e várias instanciações. “O platonismo nos assegura que existe uma ordem cósmica com uma instanciação perfeita de cada coisa. Muitas vezes pensamos que há apenas uma ideia de algum assunto. Nesse caso, o senso comum é arborescente”, reflete Nicholas Tampio, professor de ciência política na Fordham University em Nova York.

Talvez uma das melhores coisas que poderíamos fazer pra nossa vida pessoal e profissional seria parar de buscar consenso e uniformidade de como as coisas deveriam ser, e valorizar a diversidade de ideias. Enxergando essa mudança de olhar, Deleuze e Guattari propuseram que as pessoas pensassem em termos de rizomas. Um rizoma não possui sementes ou troncos; em vez disso, lançam caules e se reproduzem quando uma parte se quebra, crescendo novamente, cada um ligeiramente diferente de seu antecessor. Por isso, o rizoma é antigenealógico, se materializa em outra dimensão – transformadora e subjetiva, fundamentalmente não axial, não linear e não obedecendo a nenhuma estrutura ou modelo gerador.

Estruturas podem quebrar e aprisionar o rizoma. É o que acontece com as teorias: elas afastam as multiplicidades, reduzem seu objeto. “Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação” (Deleuze & Gattari, Mil Platôs, volume I). O rizoma não se deixa conduzir ao Uno (n), evitando a unidade, assim, pode ser definido como n-1, contra um fechamento, contra regras pré-estabelecidas. O pensamento rizomático se move e se abre, explode em todas as direções.

Um rizoma resiste a estrutura organizacional do sistema radicular-árvore que mapeia a causalidade ao longo de linhas cronológicas e procura a fonte original das ‘coisas’ e olha para o topo ou a conclusão dessas coisas”, escreveram eles. Um rizoma, por outro lado, estabelece “conexões incessantemente entre cadeias semióticas, organizações de poder, e circunstâncias relativas às artes, ciências, e lutas sociais”. Um ‘rizoma não tem começo ou fim; está sempre no meio, entre as coisas, interser, intermezzo. ‘O movimento planar do rizoma resiste à cronologia e à organização.

Tampio, em seu artigo para a Aeon aborda a questão da unidade e do consenso quando menciona Cristina Beltrán. A teórica política usa o conceito de rizoma em The Trouble with Unity (2010). Beltrán discorda da concepção de “latinidade” de que todas as pessoas da América Latina teriam a mesma identidade de grupo e consciência cultural. Ela observa que, nos Estados Unidos, muitos presumem que os latinos são um “gigante adormecido” que, algum dia, vão despertar para sua identidade coletiva. Este seria um pensamento arborescente. “Infelizmente, o pensamento arborescente pode levar líderes a desconsiderar demandas específicas em prol da unidade. A política arborescente pode ser cruel“, acredita.

Por outro lado, Beltrán mostra que a vida e a política na verdade não têm centro, nem tronco. Elas são rizomáticas. Para ela, as comunidades latinas nos EUA deveriam ser percebidas dessa forma, seria mais realístico e ajudaria a valorizá-las “em sua capacidade de serem descentradas e expansivas“. A “Latinitinade Rizomática” possui elementos que fogem das normas da identidade latina. Beltrán destaca como por exemplo os universitários libertários porto-riquenhos em Nova Jersey ou os ambientalistas chicanos em um concerto de Morrissey, em Los Angeles, ou os cubanos “queer” trabalhando na campanha de Barack Obama. Segundo Tampio, “o conceito de rizoma possibilita uma visão mais matizada e generosa da política de identidade”.

Mil Platôs de Deleuze e Guattari aborda a distinção e a conectividade das várias coisas singulares que compõem o nosso mundo e a nossa realidade. O conceito de rizoma ajuda a ver nossas vidas como conjuntos de palavras, instituições, movimentos sociais e inúmeras outras coisas relacionadas, mas também distintas.

Um platô está sempre no meio, nem no início e nem no fim. Um rizoma é feito de platôs. O antropólogo Gregory Bateson, em Vers une écologie de l’esprit designa ‘platô’ uma região contínua de intensidades, “vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando qualquer orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior.”

O que podemos extrair dessas palavras de Bateson?

Quando estamos em um ambiente seguro, temos mais confiança para falar sobre nossas ideias ou pontos de vistas, nos manifestarmos de alguma forma. Quando existe espaço para a troca de ideias e para o debate, novas questões são levantadas, há um refinamento de ideias e de argumentos, mesmo quando existem divergências e discordâncias. Abre-se caminhos para a inovação.

Conversas, reuniões e debates não precisam terminar em consenso, em homogeneização de ideias. Quando existe essa direção à um ponto culminante, as pessoas que têm visões diferentes ou divergentes calam-se ou são vencidas.

O mito da Torre de Babel pode ter sido inspirado na torre do templo de Marduk, nome cuja forma em hebraico é Babel ou Bavel e significa “porta de Deus”. Hoje, entende-se esta história como uma tentativa dos povos antigos de explicarem a diversidade de idiomas. Naquela época, após o Grande Dilúvio, a humanidade era uniforme, falando um único idioma. Migrando para o oriente, vai para a terra de Shinar (שִׁנְעָר). Nesse local, resolvem construir uma cidade e uma torre, alta o suficiente para alcançar o céu. Observando a cidade e a torre, Deus mistura suas vozes para que eles não possam entender uns aos outros, os dispersando por todo o mundo. (Ilustração: Eilya Tahamtani)

O rizoma não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam.

Essa perspectiva de pensamento se move e se expande, se abre e se fecha, pulsa, explode em todas as direções, se liberta, torna-se diverso. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades. O pensamento rizomático é o pesadelo do pensamento linear.

“Como um mapa que se espalha em todas as direções, se abre e se fecha, pulsa, constrói e desconstrói. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades, cria seu ambiente. Se trata de ciência? Isso importa? São apenas agenciamentos, linhas movendo-se em várias direções, escapando pelos cantos, o desejo segue direções, se esparrama, faz e desfaz alianças. Chame do que quiser então: “riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I).

Crédito da ilustração da capa: Untitled | “Dialectics” Series | Eilya Tahamtani | 40x30cm | Pen on Paper | 2023

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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