Está no ar a segunda temporada do Podcast “Mano a Mano” cujo apresentador é também o compositor, cantor, poeta e pensador Mano Brown. E, dessa vez, o entrevistado foi o multiartista, professor e empresário Emicida. Ambos conversaram por mais de duas horas sobre diversos assuntos, desde a trajetória do rap no Brasil, quais as próximas tendências, a constante luta contra o racismo, sobre literatura e a importância dos livros nas suas vidas. Falaram sobre o quanto estão lendo e aprendendo para sobreviver, para sempre estarem em evolução e na revolução.

Chama a atenção o respeito que um tem pelo outro, sobre o quanto aprendem com quem sempre esteve na cultura do hip-hop e também com quem chega.

Em diversos momentos, Mano Brown, hoje com 51 anos, mostra que seus pensamentos mudaram e Emicida lembra de conselhos recebidos dele. “Faça boas músicas e conceda boas entrevistas”, esse foi um que Emicida, de 36 anos, parece seguir muito fielmente.

Esses mesmos artistas falam da importância da educação nas suas vidas, desde a sua ausência e do quanto de angústia e preocupação estiveram associados a um futuro incerto, das estratégias para não se distanciarem tanto dos livros e, principalmente, do quanto se aprende ao abrir e “dialogar” com as páginas. Ambos tiveram nos livros uma estratégia para ficar bem durante a pandemia.

Mas o que atraiu a minha atenção foi o quanto eles enaltecem suas ancestralidades.

Quando se pensa em ancestralidade, é muito comum que se faça menção a eventos muito antigos ou a pessoas muito velhas. Essa ancestralidade comumente tem barba ou cabelos brancos, uma voz mais baixa, às vezes trêmula, um dedo já um pouco mais encurvado em razão de adoecimentos, como a artrose.

Essa percepção não está errada. Pessoas mais velhas são aquelas que, muitas vezes, detêm a sabedoria da vida. O saber viver se resume, antes de mais nada, em estar vivo e chegar aos 50, 60 e até 100 anos de vida! Essa sabedoria é do saber falar, do saber ouvir, agir, esperar, compartilhar e, quando necessário, avançar.

Na perspectiva africana e afro-brasileira, a ancestralidade nem sempre faz referência a quem é mais velho. Muitas vezes, se refere a quem veio primeiro. Numa roda de capoeira ou em casa de candomblé, o mais velho nem sempre é quem tem mais anos de vida, mas quem tem mais anos vivenciando aquele espaço, seja por acertos, erros, aprendizado e convivência. Isso é um saber ancestral.

Os dias de hoje não nos ofertam muitas oportunidades para que possamos viver a nossa ancestralidade. São escassos os momentos que temos para lembrar do que vivemos e aprendemos com nossos pais, avós, bisavós, tios e tias-avós e tantas outras pessoas, com vínculos biológicos ou não, mas que vieram antes de nós e deixaram um legado de saberes que nem sempre compreendemos nas nossas primeiras décadas de vida. Como disse a doutora Katiúscia Ribeiro: ancestralidade é um princípio filosófico e que não é valorizado pela academia tradicional. Para ela, nosso futuro é ancestral, ou seja, precisamos resgatar o que nos constitui para seguirmos em frente, e estarmos sempre em movimento com a vida.

Em certo momento da conversa, Brown e Emicida se autodefinem como contadores de histórias. E isso tem referência aos griots, que são pessoas contadoras de histórias, um hábito muito praticado por diversos povos africanos. Uma particularidade dos griots é que as histórias contadas por eles costumam ser atemporais, ou seja, a forma de narrar pode até mudar, mas os princípios e ensinamentos sempre estarão ali, no conto ou no fato visto somente por eles. Assim são algumas músicas do grupo Racionais MC´s ou do próprio Emicida. Poderíamos falar de outras pessoas contadoras de histórias como Cartola, Beth Carvalho, Tim Maia, Fundo de Quintal, o Rappa e Arlindo Cruz, pois todos falam da vida cotidiana, como suas alegrias ao ver um filho nascer, a importância da amizade, a busca eterna pelo emprego, a reclamação da falta de dinheiro e dos prazeres e dores de quem ama.         

Viver a ancestralidade é, muitas vezes, olhar para trás para saber para onde se quer chegar e entender o que se busca no futuro. Para muitos povos africanos, há grande valorização do passado e a própria linguagem demonstra isso ao apresentar diversos tempos verbais referentes ao passado e menor quantidade para o tempo futuro. 

Olhar para trás significa também lembrar das suas origens, dos valores e crenças que definiram quem você é hoje, seja com couraças defensivas mais flexíveis ou não. Olhar para trás é ver suas raízes, seus ancestrais e saber o quanto essas pessoas lutaram, evoluíram para que hoje você estivesse aqui, com mais possibilidades de escolha e exercício da sua autonomia.

E precisamos associar ancestralidade com tecnologia! Considere o Egito, por exemplo. Como podemos pensar a origem da tecnologia usada para a construção das pirâmides? Por que alguns custam a atribuir essa tecnologia avançada a pessoas humanas e preferem pensar que seres de outro mundo as construíram? Vale lembrar que grandes matemáticos, como Pitágoras, foram buscar conhecimento nessas mesmas terras.

Na saúde, há as práticas de meditação como a Kemetic Yoga. E um dos pontos importantes que essa prática nos mostra é a conexão corpo, mente e espírito. E o que se percebe, atualmente, são diversas especialidades médicas que apontam para um caminho diferente do proposto lá no início da civilização dos povos cujos descendentes estão também no Brasil e constituem mais da sua metade populacional.

Pensar ancestralidade é ressignificar o que é velho e valorizá-lo da forma que merece! A árvore que levou décadas para crescer e ser refúgio para dias de intenso calor, o bom vinho cuja produção e tempo para sua degustação supera uma década, um bom livro, escrito há séculos e que ainda emociona quem o lê, a sua mais velha ou seu mais velho que te mostram, dia após dia, os segredos da vida.  

Ancestralidade é eternizar na nossa vida a presença de pessoas que queremos bem. Lembre de uma pessoa muito querida que a vida te deu? O que você costuma fazer para sentir essa pessoa “presente” na sua vida, mesmo que fisicamente ela não esteja mais ao seu lado? Pode ser ouvir uma música que ela gostava, preparar um prato que era sua especialidade, rever as fotos e revelar, vez ou outra, algumas para deixar à vista, lembrar de fatos, “causos” ou ensinamentos deixados por ela. Agindo assim, você não deixa morrer a pessoa que tanto gosta.

Algo muito forte que Emicida e Brown conversaram foi sobre a ausência da figura paterna e o quanto outras pessoas mais velhas do gênero masculino foram suas referências ancestrais de masculinidade, ora reforçando o que hoje machuca e adoece – construído na base do machismo –, mas também a celebração da vida e busca por um propósito para ser alguém. Mano Brown falou que muitos cantores mais velhos tornaram-se suas referências como pai.

Como reforça o professor e psicanalista Christian Dunker, a masculinidade heroica, essa que machuca, que briga, que não pode dizer que ama, não gera boas condições de vida. Talvez o que Brown e Emicida conversaram possa ajudar muitas pessoas a viver uma masculinidade sadia, dessas que se pode chorar, se emocionar e compartilhar de fazeres que, historicamente, são delegados às pessoas do gênero feminino.

Emicida e Brown falaram da importância de suas mães nas suas vidas, de ensinamentos e exemplos que até hoje são fundamentais para que tenham alcançado esse lugar que é de reconhecimento e, indiretamente, traz sucesso e possibilidades de viver fazendo o que gosta.

Brown fala do medo de perder sua mãe, dos pesadelos que tinha e do álbum que fez quando ela estava muito doente. “Boogie Naipe” é nome desse álbum inovador, cuja proposta é diferente de outras obras já realizadas por ele e seu grupo. Talvez tenha sido essa a forma que criou para homenageá-la também. Emicida fala do momento que viveu enquanto seu padrasto também morria. Falaram das transformações que esses fatos trouxeram para suas vidas. E o resgate desses valores ancestrais são transmitidos, ainda que indiretamente, para milhões de pessoas que apreciam a arte produzidas por eles.

E a música sempre foi o espaço de segurança, de felicidade e de pertencimento para ambos. E quantas pessoas sentem-se bem enquanto cantam ou enquanto ouvem as músicas que mais gostam! Para muitas pessoas, a música é a oportunidade de lamentação, do desabafo ou do conforto para a saúde mental. E o quanto as músicas carregam de nossas ancestralidades? Recentemente, um estudo de revisão sistemática, que reúne as melhores pesquisas sobre um assunto, publicado em uma das mais conceituadas revistas científicas, mostrou uma associação positiva entre ouvir música e ter uma melhora da saúde mental.

Não é à toa que muita gente mais velha nos ensina a cantar para espantar os nossos males. E isso lembra a parte de uma ou mais músicas já escritas no nosso país!

A entrevista é encerrada com um recado para que a sociedade brasileira não deixe de investir na boa educação e que esta seja, cada vez mais, acessível a todas as pessoas.

O saber ancestral também é a capacidade de perceber as oportunidades que os minutos e segundos nos oferecem. A felicidade ou a chance tanto esperadas podem passar diversas vezes na nossa frente, mas nem sempre conseguimos notá-las. Olhar para trás é também preparar o salto para um futuro que ainda nem sabemos qual será!

Ilustração da capa: Douglas Lopes e Max Koubik 

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Alexandre da Silva

Alexandre da Silva é Secretário Nacional dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa - MDHC, Especialista em Gerontologia pela Unifesp e Doutor em Saúde Pública pela USP. Ponto focal para questões raciais do Centro Internacional de Longevidade (ILC-Brasil), Membro do GT Racismo e Saúde (Abrasco).

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