Foi com alguma estranheza que me deparei com a notícia sobre a visão míope em relação ao trabalho daquele que quer nos levar à Marte. O bilionário Elon Musk “sugeriu” que todos na Tesla voltem ao regime presencial, reconhecendo que até existem outros modelos de trabalho, como o home office mas que essas empresas não lançavam ótimos produtos. Para alguém dito inovador, me parece que o mister M. não entendeu lá muito bem o mundo em que vivemos.

Nas vésperas da sociedade 5.0 (e da indústria 5.0) pouco soa mais anacrônico do que a ideia de que as pessoas em casa podem “fingir” que estão trabalhando, como se isso não acontecesse nos escritórios e nas fábricas desde sempre.

Muito já foi dito sobre o trabalho remoto e híbrido, principalmente nesse canal, então farei uma correlação entre o trabalho e a cidade. Disse aqui mesmo, no começo da pandemia o quanto a desmaterialização das relações impactaria as cidades, também relacionei esse impacto ao que considero o segundo grande fenômeno acelerado pela pandemia, a desterritorialização, termo que pego emprestado de Deleuze e Guattari mas com algumas novas nuances.  

Se o trabalho “remoto” não é algo novo, e não é mesmo, o grande fator modificador foi ter se tornado socialmente aceito, afinal a tecnologia para tanto estava disponível desde o nascimento da internet. Essa aceitação ocorre não só pelos clientes, mas também, ou principalmente, pelos colaboradores. Lembro da minha animação quando a pandemia arrefeceu e todo feliz comuniquei ao meu time que voltaríamos no modelo presencial. Eu tinha visto uma sala bonitona, estava com o projeto praticamente pronto, mas quando fui comunicar a equipe toda senti um cheiro de motim no ar e achei melhor mudar para uma sala menor só com os velhos (leia-se eu e minha sócia) e deixar os jovenzinhos trabalhando felizes de casa.

Esse movimento todo me fez repensar a nossa relação com a cidade, e agora, posso dizer que me relacionava com ela de uma forma primariamente funcional e coadjuvante. Explico: funcional na medida em que saía de casa para ir ao trabalho, comprar esse ou aquele produto, ir ao médico, essas coisas mundanas, e a cidade sempre era o cenário para esse percurso; ela simplesmente estava lá, despercebida, um tanto alheia a meus objetivos cotidianos.

É fácil entender que, ao eliminar a necessidade presencial de trabalho, compras e saúde, por exemplo, a cidade passa a ter uma nova função. No primeiro momento, de fato, ela não teve função, ficamos todos assustados, confinados em casa (os que puderam) e a cidade, todas as cidades, viraram não-lugares. De lá pra cá, nos acostumamos ainda mais com a tecnologia e suas facilidades, compramos mais pela internet, fizemos mais consultas online, passamos a nos vestir só da cintura para cima para reuniões de trabalho e passar o resto do tempo trabalhando de pijama. Descobrimos o quanto de tempo perdíamos no trânsito e como era mais fácil simplesmente rolar da cama, pegar o laptop e colocar a culpa na internet para deixar a câmera desligada. Tudo isso funcionou (de novo, para os privilegiados que puderam usufruir de tudo isso) e claro, somos notórios preguiçosos e economizamos energia em qualquer oportunidade desde que o mundo é mundo.

Ilustração: Lars Leetaru

Isso tudo nos aponta uma nova direção na nossa relação com o lugar onde vivemos, uma relação mais hedonista, prazerosa, onde o espaço público se torna protagonista e não mais coadjuvante. E isso muda tudo. Muda a forma como a cidade é pensada inclusive, muda a forma e a importância que damos aos espaços públicos, de parques e praças ao uso da calçada como ponto de encontro, muda também a necessidade de se repensar os modelos de varejo, comércio e serviços com a aparição de novos modelos como as dark kitchens e dark stores, cozinhas e lojas exclusivas para entregadores localizadas estrategicamente em diversos bairros com o objetivo de otimizar os recursos e diminuir o tempo de entrega.

Mas, claro, essas facilidades criam outros problemas, que agora São Paulo, por exemplo, tenta regulamentar. Bairros tranquilos se viram repletos de movimento de motos, de cheiro de comida, de entregadores nem sempre pacientes. Esse talvez seja um dos fenômenos menos visíveis dos impactos da desmaterialização, porém o mais impactante na vida das pessoas, principalmente nas grandes cidades.

Outro fenômeno, muito mais visível dessa desmaterialização, é o impacto negativo no comércio de rua, principalmente nos centros urbanos. O que antes era simplesmente caminho, ou seja, paisagem que acompanhava você pela cidade do ponto A ao ponto B, como por exemplo da casa ao comércio, inadvertidamente se transformou em destino, sem o menor aviso ou preparação. Essa mudança de paisagem para destino se dá na medida que nosso comportamento sofreu mudanças profundas, e nos acostumamos com as facilidades experimentadas durante o terrível tempo de pandemia, ainda que esse processo de transformação não fosse exatamente novidade.

A pergunta que faço sempre para os varejistas é, por que alguém sairia de casa para ir até a sua loja? Se a resposta for preço ou facilidade, muito ainda precisa ser revisto. O mesmo se aplica aos centros empresariais impactados pelo trabalho remoto. Muito precisa ser feito para readaptar regiões inteiras ao novo modelo de trabalho e por consequência de percurso na cidade. Embora o trabalho presencial não tenha sido extinto, o “great resignation” é fato e várias cidades no mundo estão passando por momentos duros de adaptação.

Outra importante mudança embarcada no trabalho remoto é a redescoberta das cidades interioranas, antes preteridas pelos grandes centros urbanos, principalmente devido a quantidade de oportunidades oferecidas. Hoje, com eletricidade e sinal de internet, bom serviço de correio, qualquer cidade pode alojar o profissional de alta performance, que pode perfeitamente morar em Paraty e trabalhar em São Paulo sem sair do lugar, ou seja, é possível, e aceitável, viver o melhor dos dois mundos – vida e trabalho –, que antes pareciam incompatíveis, já que morar na praia seria considerado “bon vivant” pelo empregador e trabalhar em São Paulo considerado estressante pelo morador da praia.

Se a cidade sempre foi o lugar da serendipidade, e ela é distribuída de forma supraterritorial há tempos, ou seja, criando conexões por identificação muito mais do que por proximidade geográfica, nada mais óbvio que toda essa transformação de comportamento passe a ser aceita pela sociedade. Pena ter sido necessária uma terrível pandemia para colocar nossa relação com nós mesmos, nosso trabalho, o consumo e com a cidade em perspectiva, inclusive a escancarando a desigualdade profunda inserida nesse contexto, mas isso é assunto para outra coluna.

Ilustração da capa: Lars Leetaru

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Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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