Em meio a tantas mudanças nessa pandemia que parece que nunca acabará, um comportamento se destacou: a transformação da nossa relação com a moradia, e por extensão com a cidade.

Se antes o mercado imobiliário tinha uma relação quase compulsiva com o conceito location, location, location, hoje essa ideia, assim como tantas outras, simplesmente foi colocada em xeque. A partir do momento que passamos quase um ano inteiro dentro de casa, e na iminência de passarmos mais algum tempo, a localização da sua moradia pouco acaba importando. Tomemos o meu próprio exemplo, morador apaixonado do centro de SP há quase uma década, me deparo, nas minhas incursões semanais pelos arredores com um bairro triste, sem vida. As ruas apinhadas de pessoas deram lugar às placas de aluga-se, restaurantes fecharam, negócios quebraram, e o que era o coração da cidade se transformou numa área periférica de uma cidade do Brasil profundo. Melancolia é a palavra que define, não se tromba mais com as pessoas, não se ouve mais a confusão de vozes oferecendo chips da Vivo, Tim, da Claro e da Oi, exatamente nessa ordem, não se pode mais comer um pastel de nata na Casa Matilde, comprar um vinil de alguma banda obscura no Big Papa, comer uma esfiha igualmente maravilhosa e cara, com a barriga encostada no balcão secular do Almanara da Basílio. Centro de São Paulo e Rio Branco me parecem a mesma coisa.

O que cidades podem nos ensinar sobre a pandemia. (Ilustração de Celyn Brazier – Hyperlocal Pandemic em The New Yorker)

Já falei exaustivamente sobre o processo de desterritorialização que sofremos com a pandemia. Se nossa relação interpessoal se tornou virtual, a cidade, palco até então desses encontros, também se tornou virtual, embora ela não tenha percebido isso, nem os que a gerenciam. Se sempre nos relacionamos por identificação, por tempos essa identificação se refletia no lugar que habitávamos e frequentávamos, agora essa identificação virtual pode se dar com lugares, pessoas e marcas do outro lado do mundo, embora o próprio conceito de outro lado do mundo também tenha sido colocado em xeque, afinal, finalmente vivemos a aldeia global de Mcluhan, ou ainda o metaverso de Stephenson. Nos tornamos avatares nessa imensa vídeo-conferência que virou nossa vida.

Ao mesmo tempo que mudamos nossa relação com a cidade, voltamos nossa atenção, energia, e o pouco dinheiro que sobrou, quando sobrou, para a nossa moradia. Assisto com um sorriso de canto quando vejo os “influenciadores” falando de Biofilia como se ela tivesse sido inventada agora e não por Wilson em 1984, em outro século literalmente. Se passávamos muito pouco tempo em nossas casas, as quarentenas da vida nos fizeram nos aproximar dela, matamos a saudade do genius loci, colocamos plantas, muitas plantas, assassinamos várias, salvamos algumas, fizemos home-gym, home-theater, home-restaurant, home-shopping, homeschooling… aqueles que puderam, óbvio.

Em meio a esse cenário caótico, outro segmento permaneceu forte além dos garden centers, o bom e velho mercado imobiliário. Contrariando as previsões mais pessimistas, inclusive a minha, esse mercado manteve seu fôlego e ainda não da sinais de cansaço. Mas afinal, se a cidade se desterritorializou, qual será a nova abordagem, o novo caminho desse mercado tão tradicional e notoriamente avesso a inovação?

Algumas obviedades se apresentaram, home offices gourmet por exemplo, sim me divirto com as invenções marqueteiras desse segmento, afinal elas são abundantes.

Mas além da necessidade de concentrar nossas necessidades e desejos em dimensões cada vez menores é preciso entender e estender a compreensão desse novo momento para muito além das unidades. Se a cidade agora é um lugar de contemplação e experiência e não mais de funcionalidade, é preciso criar conexão entre unidade e bairro, entre bairro e cidade, entre prédio e rua. Um dos aprendizados recentes é a necessidade crescente das micro centralidades, que podemos chamar de comércio e serviços de proximidade. Foram eles que nos salvaram durante os momentos mais duros. Ao entorno dessas pequenas centralidades, não só nos abastecemos como sabemos do que se passa na região, buscamos apoio, oferecemos ajuda, é ao entorno desses pequenos núcleos que a vida comunitária acontece com mais vitalidade.

Se antes terrenos longínquos eram extremamente problemáticos, e a ideia de segunda moradia (aquela de veraneio, férias, fim de semana) era um segmento praticamente abandonado, agora a desterritorialização, trouxe um novo fôlego para esses empreendimentos, agora, afinal, podemos, pelo menos alguns de nós, morarmos como segunda residência e trabalharmos como primeira. Importante aqui ressaltar que embora esse processo dê nova vida a vetores de cidade até então esquecidos, a necessidade por uma vida comunitária precisa ser reforçada. Além da necessidade de criação das micro centralidades outro elemento deve ser levado em conta, o significado.

Se sempre buscamos por uma vida com significado, podemos dizer que em grande parte nossa felicidade (como sinônimo para bem-estar) depende do significado que damos as nossas vidas. Ao longo da minha trajetória no place branding, sempre imaginei que essa seria a principal colaboração da disciplina confundida comumente com marketing ou design. Afinal falamos de identidade e significado é o resultado desse alinhamento de identidades que podemos chamar de identificação.

Os novos empreendimentos pós-pandemia precisam não só olhar para os aspectos práticos e racionais da vida cotidiana, mas também, ou principalmente, para os aspectos emocionais e intangíveis, para os quais a tecnologia ainda não conseguiu grandes resultados.

As novas comunidades planejadas devem buscar exatamente o que o seu nome propõe, ou seja, serem comunidades de fato. Agora, o que nos junta enquanto comunidade (que na verdade sempre nos uniu, mas o excesso de ruído não deixava claro) é a nossa identificação com o lugar, que por sua vez é resultado da identificação com as pessoas do lugar, uma vez que, como prega a geografia humanista ( ou humana), o lugar é feito pelo significado que as pessoas dão ao que até então se comportava como espaço ( território com ausência de significado).

Outro destaque é para o termo planejado. Tradicionalmente quando pensamos em algo planejado, como móveis de cozinha para ficarmos num exemplo próximo, pensamos em algo sob medida, que funciona naquele determinado lugar e não pode ser transferido para outro. Por um lado, esse pensamento é absolutamente correto, afinal, cada lugar é único e sua identidade e singularidade intrasferíveis, por outro, é preciso entender que esse planejamento precisa prever uma certa informalidade, um dinamismo capaz de promover sua adaptação ao cenário incerto que se aproxima. Planejamento aqui não é a característica hermética em si, e sim, planejado para se adaptar e principalmente evoluir.

Comunidades planejadas devem ser lugares vibrantes, que na minha opinião, são lugares com pessoas, significado e atividade, que formam um tripé onde a ausência de qualquer um dos apoios torna a estrutura instável e inviável.

Se até pouco tempo os bairros planejados eram bolhas, agora a solução é serem cada vez mais cidade, e se cidades são pessoas como diria Shakespeare, comunidades planejadas não tem absolutamente nada a ver com território, área, terreno e sim com cultura, significado e claro, pessoas.

Ilustração: Celyn Brazier

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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