É comum, numa livraria, as pessoas ficarem curiosas ao ler um título como “O Segredo”, “A Física da Alma” ou qualquer coisa supostamente capaz de nos surpreender e ensinar algo. Acho que esse também seria o caso do mais recente livro do filósofo sueco Martin Hägglund. 

Primeiro, é preciso dizer que a obra foi publicada duas vezes, primeiro com o título “This Life: Secular Faith and Spiritual Freedom” (Esta Vida: fé secular e liberdade espiritual) para depois sair como “This Life: Why Mortality Makes Us Free” (Esta Vida: Por que a mortalidade nos torna livres). Foi pela resposta a essa pergunta que eu resolvi ler o livro e entendi que, assim como nas chamadas dos sites, aqui também rolou uma estratégia “clickbait”.

Só que não com um resultado ruim. As primeiras páginas do livro se dedicam a falar sobre filosofia e religião, nos certificando a partir de uma lógica hegeliana de que viver para sempre seria nunca ter vivido (isto é, que sem a escuridão, não há como discernir a luz etc) e que é justamente a finitude que nos dá senso de urgência, que nos permite organizar e valorar as coisas. 

Só que, para Hägglund, viver uma boa vida é viver uma vida livre, e para ser livre, é preciso ter acesso às necessidades básicas (alimentação, educação, segurança, moradia etc), algo que nem sempre é garantido e usufruído por todas as pessoas. A essa altura, porém, você provavelmente já vai estar envolvido na escrita de Hägglund, o que torna mais fácil seu deslocamento para uma proposta política e econômica que ele chama de democracia socialista. 

Uma democracia socialista não é uma social-democracia ou um estado de bem estar social. O que o autor quer nos mostrar é que, sob o regime capitalista, é impossível viver uma vida plena e livre, algo que, por sua vez, poderia ser conquistado a partir de uma democracia socialista. 

Hägglund traz Marx e suas obras “O Capital” e “Grundrisse” como principal sustento para sua argumentação, inclusive nos esclarecendo que muitos leram o filósofo alemão de maneira incorreta. Primeiro, no sentido de que Marx não teria se oposto à inovação tecnológica, mas, na verdade, defendido-a como uma forma de emancipar os humanos de trabalhos morosos. Depois, que Marx não está propondo solucionar a desigualdade social e econômica através de uma distribuição de riquezas e sim de uma subversão do que é entendido como valor no sistema capitalista.

Enquanto Marx fala sobre mais-valia e analisa como o trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um salário, Hägglund observa que estamos, em última instância, vendendo nosso tempo de vida. Só que, no capitalismo, o objetivo não é apenas trabalhar para gerar o necessário e, sim, superar essa medição para que seja gerado lucro – isto é, acumulação de bens e riquezas.

A iminência de uma automação ainda mais pervasiva provoca ansiedade. (Ilustração: Max Löffler)

Nos últimos anos, devido às novas tecnologias de digitalização e automação, temos gastado menos tempo para gerar os mesmos ou ainda melhores resultados, bem como também temos precisado de equipes menores para realizar o mesmo trabalho. Só que, assim como na primeira revolução industrial, a iminência de uma automação ainda mais pervasiva provoca ansiedade em vez de alegria entre os trabalhadores. Uma vez que sua sobrevivência depende do salário e o salário advém de sua força de trabalho, quando essa força é exercida por uma máquina, já não há mais o que Hägglund chama de “trabalho vivo”.

Diante do “trabalho morto” das máquinas, os trabalhadores humanos são dispensados. Desempregados e, portanto, inibidos de uma fonte de sobrevivência (o salário), os trabalhadores passam a aceitar pagamentos menores e exigências maiores e, assim, consequentemente, há uma precarização generalizada.

Hägglund comenta que, sob o capitalismo, as crises são, na verdade, necessárias para a perseverança do sistema. Quando uma sociedade se vê colapsada em desemprego, mais as pessoas se “dispõem” a aceitar qualquer proposta que permita a sobrevivência. E é justamente diante desse desespero, dessas crises, que os capitalistas geram lucro – daí também a importância das guerras e a destruição proporcionada por estas.

Enquanto o trabalho estiver associado à sobrevivência, é impossível ser livre. Para abordar essa questão, Hägglund usa os termos “trabalho socialmente necessário” e “tempo livre social”. Atualmente, no sistema capitalista, todo trabalho é socialmente necessário porque precisamos do dinheiro para nossa subsistência. 

O tempo que teríamos “livre”, isto é, fora da jornada de trabalho, seria o tempo em que poderíamos tanto aproveitar para o lazer como para outras atividades que gostamos, mas que não necessariamente geram fundos. Só que, o que ocorre, muitas vezes, é que esse “tempo livre” é usado, na verdade, para um outro trabalho ou um outro serviço que complementa a renda. Tempo é dinheiro e acumulação de riqueza é garantia de conforto no futuro. Em última instância, esse tempo pode ser usado para o descanso, assim tornando a vida uma engrenagem que gira apenas em torno do trabalho como fim pela sobrevivência.

Utilizar o tempo de vida para aquilo que nos faz sentido e que nos faz bem. (Ilustração: Max Löffler)

Hägglund considera essa lógica contraditória, porque, tendo em vista a vida como algo finito, não deveríamos gastar tanto tempo da nossa vida trabalhando, mas sim com o que nos é importante e nos faz feliz. E isso nem é realmente necessário. Para o escritor, nós já poderíamos ter alcançado um outro patamar político e econômico se, a princípio, fosse subvertido um sentido básico no capitalismo: a noção de valor. 

Essa seria a primeira característica de uma democracia socialista, sendo a segunda regra a proposta de que os meios de produção devem ser de posse coletiva. Hägglund traz à tona o argumento de Marx sobre como o trabalhador assalariado é alienado do fruto de seu trabalho porque este é de interesse exclusivo do capitalista. Com a implementação de uma posse coletiva dos meios de produção, então, tecnicamente, todos estariam trabalhando em prol de algo que é próprio. Apesar de cada vez mais os meios de produção estarem ficando menos tangíveis e físicos, uma possível conexão com essa proposta de Hägglund poderia ser o conceito de uma DAO (organização autônoma descentralizada). 

Por fim, Hägglund cita Marx mais uma vez: “Daquele conforme seus talentos, àquele conforme suas necessidades.” Isso significa que a meta não seria concentrar riquezas, mas sim utilizar o tempo de vida para aquilo que nos faz sentido e que nos faz bem. De forma similar a outras propostas como o comunismo totalmente automatizado de luxo sugerido por Aaron Bastani, Hägglund também defende que, a princípio, todos devem ter acesso a serviços básicos para que, então, possam cultivar a liberdade para além da subsistência.

Bastani fala sobre, por exemplo, como a mineração espacial e sua abundância de recursos possibilitaria a geração de uma grande riqueza que, distribuída, poderia fazer com que todos vivessem um padrão de vida dos atuais milionários. Para Hägglund, no entanto, não se deveria nem estar falando sobre riqueza associada a materiais ou a dinheiro: o valor está na possibilidade de ter tempo livre para ser o que quer e fazer o que desejar.

Hägglund ressalta que trabalho não necessariamente precisa ser algo ruim e penoso, mas que trabalho enquanto atividade assalariada e associada à sobrevivência pode ser reduzido a um tempo cada vez menor a partir da inovação tecnológica. Porém, o que ocorre é que as máquinas estão sendo criadas não para libertar o ser humano e gerar riquezas que o possibilitem viver plenamente, mas sim fazê-lo perder o emprego (garantia de sobrevivência).

Assim, caímos de novo na mesma fórmula de geração de lucro advinda do desemprego, uma vez que, nesse contexto, Hägglund argumenta que o capitalista irá contratar novos trabalhadores humanos que vendem sua força de trabalho cada vez mais barata porque precisam sobreviver. O escritor, então, está sugerindo que estamos criando tecnologias que continuam fazendo a roda do lucro e da acumulação de capital girar, enquanto que se a noção de valor fosse deslocada do dinheiro para o tempo livre, então poderíamos ser emancipados.

Hägglund termina sua obra mencionando a luta e o ativismo de Martin Luther King e como este teria também proposto essa subversão de valores, porém não publicamente porque suas ideias já eram subversivas demais para aquele momento – ao ponto de causar sua própria morte. Nesse sentido, o escritor resgata uma popular frase atribuída a Marx que diz que a mudança não advém da palavra, mas sim da ação. 

Só que, para Hägglund, isso não condiz porque a própria filosofia se propõe como uma forma de interpretar o mundo e propor novos olhares que, consequentemente, podem levar à mudança, nem que, a princípio, seja apenas de maneira subjetiva. Como sua proposta é justamente a revisão e subversão do que entendemos como valor, faz sentido começar primeiro com uma argumentação e, nesse ponto, seu livro é bastante robusto ao apresentar a proposta de uma democracia socialista. 

Por isso que comentei que a obra é uma espécie de “clickbait” (mas que, no final, sai muito melhor que a encomenda), porque Hägglund não vai falar necessariamente sobre morte e vida de um ponto de vista filosófico e inclusive critica certas ideias de extensão da vida ou de vida eterna, como aquelas propostas por religiões, mas também por autores marxistas como Theodor Adorno. 

Hägglund, na realidade, acredita que a morte é algo necessário para que nossa vida faça sentido, mas para que a vida valha a pena ser vivida, para que possamos aproveitar essa nossa única vida, precisamos ser livres para fazer e ser o que desejamos. Contudo, sob o regime capitalista, isso seria impossível.

Ilustração da capa: Max Löffler

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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