“Liderança e aprendizagem são indispensáveis uma à outra”.

Essa não é uma citação da Harvard Business Review, da Forbes ou da revista do MIT. E não fala de transformação digital, futuros ou inovação.

Essa citação se insere no contexto de um dos eventos traumáticos mais midiatizados do Século XX: o assassinato de John F. Kennedy em Dallas em 22 de novembro de 1963. A frase fazia parte do discurso presidencial planejado para aquela data e nunca proferido, compondo o campo simbólico que envolve o acontecimento.

“Num mundo de problemas complexos e contínuos, num mundo cheio de frustrações e irritações, a liderança da América deve ser guiada pelas luzes da aprendizagem e da razão ou então aqueles que confundem retórica com realidade e o plausível com o possível ganharão a ascendência popular com as suas aparentemente rápidas e simples soluções para todos os problemas mundiais.”

Discurso preparado para Dallas, novembro de 1963. Não realizado. Você pode ler a íntegra aqui.

Em que pese a necessária crítica ao ufanismo norte-americano, à aura mítica que envolve tudo o que se refere ao autor do discurso ou à complexidade do momento histórico, a ideia de que liderança e aprendizagem são indispensáveis uma à outra é muito potente e atual. Não apenas na perspectiva do líder que se dá a conhecer como alguém que precisa seguir aprendendo, pela própria essência de seu trabalho, como também pela sua responsabilidade em manter vivo o aprendizado coletivo. A aprendizagem é indispensável para que o líder possa construir o caminho entre a intenção e a realização de um propósito.

Será que aprender então é mais um item na lista já superlotada da liderança? Executar e ter eficiência no presente, construir o futuro, cuidar das pessoas, potencializar a diversidade, desenvolver carreiras, conhecer o cliente, liderar por propósito, construir uma cultura respeitosa, ter compromisso com a sustentabilidade… tudo isso já está na alçada de preocupações – e agora mais a aprendizagem? Sim e não.

Sim, na medida em que aprender precisa fazer parte do trabalho para todos. Não, na medida em que não é mais um item da lista, mas uma forma de entender e realizar todos os demais.

Mudar para essa perspectiva é um caminho para diminuir o peso da cobrança por perfeição, ganhar aliados e abrir as portas para a criatividade. E não apenas para aqueles que são líderes no cargo / crachá, mas para todos nós que lideramos projetos, conduzimos reuniões e desenvolvemos outras atividades nas quais precisamos influenciar e mobilizar pessoas.   

Quando falamos de uma perspectiva sistêmica, pensamos a aprendizagem como cultura, abarcando a complexidade e os processos emergentes (tema que eu e o Alexandre Santille exploramos neste artigo aqui). Do ponto de vista das organizações, falamos de knowledge centricity (tema que toco neste artigo aqui). Olhando para o indivíduo aprendiz, a aprendizagem intencional é uma chave para ser oportunista perante as possibilidades que o dia a dia oferece (tema deste outro texto). Para complementar o quadro, é necessária a noção da liderança para a aprendizagem: o profissional que assume o compromisso ativo de gerar, consolidar e compartilhar novos conhecimentos nos processos de trabalho que conduz.

Mas como? Algumas ideias simples e práticas podem ajudar a colocar a aprendizagem no seu modo de liderar.

1. Lembre do Kennedy: coloque no discurso

Está aí algo que é de graça e faz bem: falar sobre a aprendizagem no processo de trabalho. Principalmente quando estamos liderando.

Amy Edmondson, professora da Harvard Business School, comentando sobre o erro, diz que: “até que um líder, de maneira explícita e ativa, torne isso [errar] psicologicamente seguro, as pessoas automaticamente procurarão evitar a falha” (A Organização sem Medo, p. 166, grifo meu). Nesse livro ela defende, com base em inúmeras pesquisas, a importância da segurança psicológica como elemento que habilita o aprendizado, a inovação e o crescimento – não é suficiente para garanti-los, mas é premissa para que se desenvolvam.

Um passo fundamental nesse caminho é mudar a forma como lidamos com o erro. Da culpabilização imediata e punitiva – que Edmondson chama neste outro excelente artigo de blame game (jogo da culpa) – estamos tentando passar para frases de efeito que resolvem tudo, como “errar rápido para aprender rápido” ou “aqui toleramos o erro”. Frases que não passam de generalidades. E nas quais ninguém acredita, porque atrás de uma aparente boa intenção está escondido algo que não é verdadeiro. Não é verdade que todo erro rápido leva ao aprendizado; nem que todos os tipos de erro são toleráveis (alguns inclusive colocam vidas em risco, em plantas industriais por exemplo). O que Edmondson nos diz é que precisamos aprender a analisar o erro e agir em relação ao ocorrido em cada contexto específico, desenhando um caminho intencional entre o erro e o aprendizado. Isso não se dá de forma automática.

Segundo a pesquisadora (2020, p.168), uma das formas efetivas de fazer isso é, ao liderar, explicitar os tipos de erros esperados e como lidar com eles. Falhas evitáveis (desvios de procedimento) merecem um tratamento; complexas, que ocorrem perante uma situação imprevisível, outro tratamento; e as falhas inteligentes, que são consequências de processos de teste planejados, devem ser ainda tratadas de uma outra forma. Ao passar uma nova demanda, dar feedbacks sobre entregas, reorientar projetos, conduzir processos de cocriação, quem lidera para a aprendizagem pode ir formando entendimento comum sobre os tipos de erros e o que espera da equipe em cada um deles. Assim, não apenas se torna possível o aprendizado, como também se fortalecem a coerência e a confiança – na liderança e entre pares.

E esse insight sobre a importância de enunciar não vem só das pesquisas gringas! Em 2020, cofundei uma iniciativa muito especial, chamada Your Learning Landscape – YLL (Sua Paisagem de Aprendizagem), como parte do movimento LAR – Learning as a Revolution. O LAR foi criado para construir uma nova concepção de aprendizagem para as organizações, de forma colaborativa – e a YLL é uma pesquisa que vem para ajudar a construir uma visão analítica, baseada em dados, para a cultura de aprendizagem. Na pesquisa, geramos e analisamos dados em 4 eixos: indivíduo que aprende; indivíduo que gera aprendizados; liderança; características da organização.

Na primeira rodada de testes e validação da pesquisa, descobrimos algumas coisas interessantes. Entre elas, no eixo liderança, a afirmativa “Eu consigo reconhecer que minha liderança considera o desenvolvimento da equipe em todo seu planejamento, desde como delega tarefas até a maneira que conduz reuniões” foi das com menor favorabilidade e maior número de correlações. O que significa que tem muito espaço para melhorar e que tende a levar outras melhorias consigo.

Imagina que delícia trabalhar com alguém que fala abertamente sobre campos conhecidos e desconhecidos do trabalho, onde precisamos ter atenção e precisão e onde podemos esperar errar porque é desconhecido mesmo… inclusive para o “chefe”???

E, vamos combinar: diante de todos os desafios que enfrentamos no mundo do trabalho, explicitar a nossa intenção de aprendizado coletivo não é dos mais assustadores, certo? Desde que, claro, seja uma intenção genuína.

2. Falar não basta: pequenas práticas que, em conjunto, levam a grandes resultados.

Líder coach, multiplicador/disseminador de conhecimento, mentor: todos são papeis que podemos assumir quando lideramos. E, normalmente, estão bem delimitados no tempo e espaço, fazendo uso de metodologias e conteúdos preparados e estudados. Para esses papeis, algumas técnicas nos apoiam, como facilitação, comunicação em público, didática etc.

Mas e nos outros 99% do tempo? Aí que entra a ideia de liderar para a aprendizagem. Não em tudo o que fazemos, mas em grande parte, há oportunidades escondidas. Quem lidera pode desenvolver a mente investigativa e gerar muito mais aprendizado investindo um pouco mais de tempo e energia.

Atitudes e reações

A autopercepção é fundamental para fomentar a aprendizagem enquanto executamos outras tarefas. Quando lideramos, estamos sendo constantemente observados e nossas reações compõem uma interpretação sobre o que valorizamos ou deixamos de valorizar. Por isso, quanto mais conscientes ficarmos dessas reações, melhores líderes seremos.

Ilustração: Nishant Choksi

Se você quer liderar para a aprendizagem, sugiro:

Ter atenção à postura quando alguém está apresentando uma ideia, especialmente se ela ainda não está completamente formatada. Uma equipe que só se comunica “defendendo ideias” ou que vive em permanente “estado de pitch” não abre espaço para a colaboração e serendipidade. Existem momentos para ideias prontas, existem outros para cuidar de ideias bebês. A postura corporal, expressão facial e reações verbais do líder são essenciais para criar espaço seguro para a exposição do que ainda é frágil – e que pode revelar ser uma preciosidade.

Outra reação que cria a confiança necessária ao ambiente de aprendizagem na sua equipe é a forma como você age quando erra. Assumir erros, mudar de ideia, rever decisões – não ter só certezas – são fundamentais para o líder forjar uma cultura de aprendizagem. Com certeza existem assuntos que sua equipe domina muito mais do que você, e ser capaz de se colocar como colaborador – e não como chefe – faz com que todo mundo aprenda mais. A professora Edmondson chama isso de “humildade situacional” (p.165). Já Kennet Mikkelsen e Harold Jarche, neste artigo de 2015, dizem lindamente que  “Os líderes devem sentir-se à vontade para viver num estado de constante transformação, um modo beta perpétuo.”

Para isso, despersonalizar a avaliação do trabalho também é fundamental. Criar critérios claros e compartilhados, com foco no propósito, são chave para que as pessoas desenvolvam autonomia para trabalhar e para aprender. Você não está na liderança para ser “agradado”, mas para ajudar o time a chegar a lugares novos, que não necessariamente você sabe quais são.  

E cuidado com o uso dos jargões corporativos!

– “Não me traga problemas, me traga soluções”: nem sempre temos competência para solucionar os problemas que enxergamos, mas poder falar sobre eles é fundamental para encontrar conjuntamente uma saída. Isso não significa absolutamente – outro jargão – “delegar para cima”, mas compartilhar preocupações e construir junto.  

– “Eu achei que você estava olhando isso”: usada em projetos de inovação, para situações emergentes (que ninguém estava olhando porque não existiam!), essa frase gera ansiedade, medo de experimentar e mina a confiança do time no líder.  

– “Mais rápido eu fazer do que ensinar”: muitas vezes estamos pressionados pelo tempo mesmo e é necessário tomar alguns atalhos. Mas essa frase não acrescenta absolutamente nada de bom, mesmo quando dita para outra pessoa que não aquela que seria ensinada. Se não entendeu o porquê, releia o item 1 deste texto.

Rituais

Algumas práticas recorrentes podem ser estabelecidas pelo líder, sem grandes investimentos de tempo ou recursos, para fomentar a aprendizagem contínua.

No seu novo livro Pense de novo: o poder de saber o que você não sabe (2021), Adam Grant apresenta 3 papeis interessantes que costumamos cumprir quando falamos e pensamos. O pastor, que protege crenças sagradas; o advogado, que argumenta em defesa de seu ponto de vista buscando falhas no raciocínio do outro; e o político, que quer ganhar corações e mentes. Ele nos convida a assumir, no lugar de todos esses, o modo cientista – que para ele é um estado de espírito.

“Entramos no modo cientista quando buscamos a verdade: fazemos experimentos para testar hipóteses e encontrar conhecimento. (…) As hipóteses pertencem à nossa vida tanto quanto aos laboratórios”. (p.27).

O “modo cientista” ajuda a delinear alguns rituais que consubstanciam uma liderança para a aprendizagem:

– Observação: antes de sair fazendo, desenvolver um olhar analítico e crítico ao objeto do trabalho, acionando conhecimento interno e externo. Melhor ainda se isso puder ser feito coletivamente. A matriz CSD organiza as certezas, suposições e dúvidas acerca de algo, e é muito útil nesta fase. Especialmente para compartilhar conhecimento e separar o que é fato e o que é inferência. O líder, além de delimitar tempo e espaço para a realização desse ritual, pode facilitá-lo, fazendo perguntas que ajudem a emergir os diferentes pontos de vista.

– Desenhar hipóteses: e criticá-las no time. É possível construir as hipóteses em conjunto, ou você como líder pode trazer alguns caminhos possíveis e pedir para as pessoas criticarem. Algumas vezes a decisão final precisa ser do líder, em especial quando todos os caminhos envolvem riscos, mas criando esses espaços você não apenas pode enxergar detalhes e novas opções, como também desenvolve as pessoas ao compartilhar critérios de tomada de decisão e outras informações do contexto maior do projeto. Ouvir, ouvir, ouvir ativamente, buscar a divergência, antes de emitir o “veredito final”.

– Fazer experimentos: com critérios de observação e acompanhamento constante, interessando-se pelas descobertas do processo. Criar ocasiões para que pessoas com atribuições diferentes compartilhem seus métodos e achados.

– Sistematizar e compartilhar conhecimento: celebrar as entregas e ritualizar os aprendizados, tanto dos acertos quanto dos erros. Dissecar o que foi feito e revelar a complexidade. O que é “óbvio” para um, pode não ser “evidente” para outro.

“Quando estamos no modo cientista nos recusamos a deixar que nossas ideias se transformem em ideologias”, diz Adam Grant em uma outra frase inspirada (2021, p. 32). 

Em meu trabalho com líderes, quando aprofundamos nas discussões e nas reflexões, percebo sempre uma grande angústia. De forma geral, percebem que o modo comando e controle não serve mais, mas não sabem como fazer diferente, na prática. Nesse momento, acho sempre importante lembrar que não somos nós que somos insuficientes ou inadequados: a transformação é cultural (no sentido amplo), novos valores estão se consolidando e novas formas de fazer precisam ser incorporadas para que eles virem realidade.

Fazemos parte da construção de novos paradigmas. Colocar-se no modo experimentação – no modo aprendizagem! – e falar sobre isso, vulnerabilizando-se, é o único jeito sustentável de fazer essa transformação.

A boa notícia é que essa forma de agir que construirá o futuro, questionadora e um tanto rebelde, faz parte da humanidade há muito tempo, mas foi sufocada pela nossa necessidade de certezas e eficiência.

Se começamos com uma citação da segunda metade do Século XX, vamos voltar a uma que eu amo e que remete ao final do XIX:

“Nem sempre sou da minha opinião.”

Atribuída a Paul Valéry

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Ilustração da capa: Nishant Choksi

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Clara Cecchini

Clara Cecchini é coautora do livro Aprendiz Ágil (com Alexandre Teixeira, Arquipélago Editorial, 2020). É apaixonada por aprendizagem contínua e pela construção de sentido que ela proporciona. Especialista em estratégias de aprendizagem, inovação e curadoria de conteúdo. Formada em Artes Cênicas pela Unicamp, com MBA em Bens Culturais pela FGV e cursos complementares na Schumacher College (Inglaterra) e na Kaospilot (realizado no Brasil pela escola dinamarquesa). Trabalhou com educação sob diversas perspectivas, desde a formulação de políticas públicas até a criação de universidades corporativas, passando também por ONGs e escolas de negócios. Hoje, atua como consultora, escritora e mentora, com o propósito de reconectar a aprendizagem à vida e ao trabalho.

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