No começo deste mês, fomos surpreendidos pela trágica notícia de que o ilustrador Kim Jung Gi, de 47 anos, havia falecido subitamente. Kim era conhecido por seus desenhos complexos, em perspectivas inusitadas e que ele criava sem nem fazer um rascunho antes. Para quem trabalha com arte, é comum usar referências e rascunhar possíveis cenários, mas Kim se diferenciava por fazer tudo “de memória”. 

Seu trabalho era tão impressionante e único que o ilustrador tinha o hábito de viajar mundo afora para demonstrar sua técnica e habilidade. Foi numa dessas viagens, porém, que o artista sofreu um ataque cardíaco fulminante. Diante dessa perda, fãs do artista e ilustradores em geral foram ao Twitter prestar as condolências, enquanto que o usuário @BG_5you resolveu treinar uma inteligência artificial para gerar imagens baseadas nas obras de Kim.

Apesar de o programador ter compartilhado o código usado na confecção dessa IA generativa e ter esclarecido que seu objetivo era prestar homenagem ao artista, as reações na rede social foram bastante negativas ao entender que aquilo era, na verdade, um desrespeito. Mas, independentemente disso, programas e plataformas como o Dall-E estão, de fato, cada vez mais se aprimorando na geração de imagens a partir de diferentes inputs, sejam eles textuais ou imagéticos.

Tempos atrás, a artista canadense Grimes chegou a compartilhar uma ilustração que levou horas para ser feita. Porém, como uma expoente voz na defesa pela inovação tecnológica, a cantora questionou se fazia sentido continuar gastando todo esse tempo e esforço para fazer uma ilustração quando uma IA pode fazer algo semelhante em segundos. Em outras oportunidades, por exemplo, durante um podcast, Grimes chegou a dizer que talvez toda arte será, num futuro breve, gerada por IA. 

Na ficção científica, esse tipo de ideia, de que IAs seriam as principais responsáveis por gerar conteúdo e arte, sempre teve um tom mais distópico do que otimista. Seja a partir da música sintética proposta em 1932 no livro Admirável Mundo Novo ou então, mais recentemente, no jogo Detroit: Become Human, em que o jogador pode escolher o tipo de arte que um androide fará. Essa é uma cena, aliás, que vale a pena ser mencionada aqui.

Dentre tantos outros questionamentos levantados pelo jogo quanto à relação homem-máquina, uma das cenas que mais me chamou a atenção foi essa em que um androide cuidador de um artista idoso tem a oportunidade de pintar sua própria tela. No caso, o jogador pode escolher qual tipo de arte o androide fará: uma replicação de um objeto que ele vê no estúdio, uma cópia da arte de seu dono, algo de sua memória ou então algo mais criativo.

Enquanto o jogo se passa em um futuro no qual a IA está muito mais avançada, imagina-se que é possível falar em criatividade de máquina (computational creativity) para além de modos sofisticados de se criar conteúdo a partir de reconhecimento de padrões. Acontece que, mesmo hoje, com aplicativos como Midjourney ou Dall-e, que funcionam a partir de uma lógica de reconhecimento de padrões, os resultados continuam sendo surpreendentes porque essas IAs conseguem lidar com uma grande quantidade de referências. 

E se a discussão acerca do que é arte continua em aberto, a inserção da IA nessa equação só torna o debate ainda mais complexo e amplo. O que ocorre é que, de certa forma, essa inovação tem surtido reações similares àquelas decorrentes do advento da fotografia. Baudelaire, por exemplo, foi um dos grandes críticos da fotografia em face à técnica e maestria que pintores e ilustradores desenvolveram ao longo dos séculos. 

Hoje, porém, já não discutimos esse tipo de coisa e não chegamos a questionar se fotografia é uma forma de arte ou não. Pouco tempo atrás, esse conflito havia se instaurado na ideia de reconhecer video-games como expressão artística, algo que também já parece estar sendo superado para que a IA se torne o novo gatilho de reflexão. 

Para o usuário @BG_5you, as reações negativas que sua proposta recebeu fazem sentido e são respeitáveis, mas não é como se estivéssemos em um ponto no qual é possível escolher seguir com a IA ou não. Ela simplesmente já é um fato:

Portanto, assim como no caso de outras tecnologias midiáticas, a questão não é “se” vamos adotá-las, mas sim “como” isso se dará. Em tese, é possível afirmar que as IAs generativas já são um caminho sem volta, o que depende é de como iremos lidar com isso. Nesse caso, a lógica do “centauro” me parece continuar bastante relevante. 

Nos anos 1990, quando o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov foi vencido pela IA Deep Blue, ele tirou desse ocorrido uma outra conclusão que não simplesmente se sentir obsoleto e superado. O que foi concluído à época e que parece continuar fazendo sentido ainda hoje é que tanto uma IA ou um humano sozinhos não conseguem chegar a resultados tão sofisticados quanto o trabalho em conjunto dessas duas forças – daí a imagem do centauro, ser mitológico que é parte cavalo e parte humano.

Por isso, diferentes artistas têm usado essas plataformas generativas para testar os limites e as possibilidades da IA. Seja tentando “quebrar” a lógica do input ou então usando os resultados como base para a criação de novas artes híbridas, as maneiras de se trabalhar em conjunto com a IA são variadas e podem ser consideradas muito mais de um ponto de vista de ferramenta do que de substituição.

Ao longo da história da arte, o expressionismo foi um movimento que buscou uma alternativa ao realismo vigente à época, enquanto que o modernismo decidiu romper com as imagens figurativas e trabalhar questões tecnológicas daquele momento (daí movimentos como o futurismo, por exemplo). 

Já nos anos 1950 e 60, vemos o fotorrealismo surgir como uma maneira de mostrar a técnica do artista ao replicar, em minúcias, os detalhes de uma fotografia em quadros de grandes dimensões, ao mesmo tempo em que a pop art se utilizava de bens de consumo para produzir arte e questionar a lógica do mercado. Desde então, a lowbrow art ou o pop surrealismo têm feito uma combinação dessas duas propostas até chegarmos nesse momento em que IAs conseguem criar imagens mais ou menos acuradas a partir de um input de texto.

Dependendo do esforço dedicado àquele algoritmo, conseguimos chegar a resultados cômicos e registrados em contas como Weird Dall-e, ou então ainda conseguir imagens que são vencedoras de premiações artísticas. Há também o surgimento de novas figuras como essa mulher que aparece em diferentes renderizações ou o infame monstro Crungus que substitui os cachorros psicodélicos da Deep Dream

Levando em conta que esses algoritmos trabalham com reconhecimento de padrões e que até pouco tempo atrás lidamos com um grave problema de falta de diversidade nos bancos de imagens, é esperado que uma IA com referências menos diversas venha a gerar uma imagem de uma mulher branca e magra para o input “beautiful woman”. Mas, por outro lado, são esses “glitches” ou casualidades (sincronicidades, caso queira ir para um lado mais junguiano) que acontecem nessas plataformas que ganham um novo sentido para nós humanos que, por nossa parte, também raciocinamos a partir de uma base de reconhecimento de padrões. Termos como pareidolia, por exemplo, explicam como pessoas são frequentemente levadas a ver rostos humanos em objetos inanimados ou que sequer possuem algum referencial nesse sentido. 

Como alguém que se aventura também no mundo das artes, eu tenho usado o Dall-e como inspiração para quando vou ilustrar algo. Por exemplo, talvez eu queira desenhar uma mulher no campo, mas eu não tenho muita ideia de que perspectiva (ângulo) vou usar, como será a aparência dessa mulher, quais serão as cores do campo (ou qual estação do ano). Se eu colocar “mulher no campo, estilo realista” no Dall-e, vou conseguir diferentes renderizações que podem me servir de base para criar algo novo.

Enquanto alguns artistas mais experientes e profissionais, como Kim Jung Gi, têm a capacidade de desenhar a “partir da memória”, muitos ainda se utilizam de referências concretas, sejam elas modelos vivos, fotografias, manequins articulados, ou simplesmente objetos no local em que se encontram. Dito isso, enquanto Kim se diferenciava por sua maestria, pergunto-me se a maneira como o mercado de arte o tratou enquanto ser humano foi realmente aceitável e o quanto do estresse de suas viagens e trabalhos pode ter influenciado em sua morte. 

Não dá para saber, mas dá para usar essa irreparável perda como reflexão para o quanto desejamos extenuar seres humanos a fazer tarefas e trabalhos que já são possíveis de serem automatizados e o quanto estaremos valorizando a habilidade e maestria de acordo com as suas características. Hoje já entendemos que uma confecção artesanal não irá nunca produzir a mesma quantidade de produtos que uma fábrica e, por isso, entendemos que há um preço a ser pago e um tempo de produção a ser considerado, bem como uma outra qualidade. Será que, no campo das artes, não está na hora desse tipo de reflexão ser reativado com o desenvolvimento das IAs generativas?

Em vez de demandar que um artista faça dezenas de ilustrações por dia ou por semana, não só os bancos de imagem conseguem suprimir a necessidade de tornar algo mais imagético como também essas IAs generativas podem ser usadas caso haja necessidades mais expressas de ilustração. Em vez de substituir o artista e torná-lo obsoleto, eu espero que essas IAs generativas, na verdade, liberem esses profissionais para se dedicarem a trabalhos mais autorais e que, assim, tenham sua maestria reconhecidas tanto quanto à época do Renascimento. 

Se o futuro do trabalho perpassa pela tecnologia como forma de liberação (como já propôs Marx em Grundrisse), me parece fazer sentido imaginar que a IA pode e deve ser utilizada como forma de liberar artistas de tarefas extenuantes. Com isso, artistas poderão produzir ao seu tempo e à sua maneira, sem chegar ao ponto do burnout e, desse modo, a crítica feita por Adorno em seu texto sobre a reprodutibilidade técnica de imagens poderia ser direcionada ao aspecto técnico e logístico. Isto é, com IAs trabalhando na geração de imagens “genéricas”, o quanto uma imagem precisa ser mesmo produzida em massa ou o quanto é possível de se permitir um artista de conquistar mais equilíbrio em seu modo de trabalho.

Crédito foto da capa: Timelapse de Kim Jung Gi, por Ghost in The Shell

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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