Microsoft havia patenteado uma tecnologia de chatbot capaz de “reencarnar” pessoas digitalmente. Assim como visto no episódio Be Right Back (Volto Já) do seriado Black Mirror, aqui o que encontramos é uma tecnologia que seria capaz de usar “dados sociais” como “imagens, dados de voz, posts de mídias sociais, mensagens eletrônicas e cartas” para o desenvolvimento de um perfil artificialmente inteligente de uma pessoa que, por sua vez, pode já ter falecido — daí a ideia de um “algoritmo zumbi”.

Apesar de ter causado surpresa entre as pessoas, a proposta não é exatamente inovadora. Um exemplo disso é a rede social Eter9 desenvolvida pelo empresário português Henrique Jorge, cuja funcionalidade se parece muito com o aplicativo de inteligência artificial conversacional Replika, uma vez que em ambos os casos há um software que vai aprendendo a emular o comportamento do usuário a partir da análise de seus dados compartilhados. Só que, no caso da Microsoft, a patente parece sugerir que o algoritmo será mais “independente” ao ser capaz de organizar um pacote de dados pessoais previamente separado se tornar um simulacro que poderia, inclusive, ganhar um avatar ou potencialmente, mais a longo prazo, uma versão robótica como visto no seriado britânico.

Nesse caso em específico, as notícias giraram muito em torno da ideia de que a Microsoft seria capaz de “reviver” uma pessoa através desse construto virtual, o que já é um debate um tanto superado no âmbito do transumanismo. Isto porque, se eu conseguir criar um chatbot igual a mim hoje, ainda viva, não significa que deixou de ser quem sou para que o programa passe a ocupar minha existência enquanto indivíduo. Mas mais do que entrar nessa seara existencialista, o que gostaria de ressaltar aqui é menos a capacidade desses simulacros de inteligência artificial nos substituírem do que, na verdade, nos complementarem e nos ajudarem a visualizar mudanças e comportamentos que não reparamos no dia a dia.

O aplicativo Replika, enquanto um algoritmo de inteligência artificial programado para nos “emular” para fins terapêuticos, por exemplo, também encontra paralelo com as pesquisas feitas pelo pesquisador Flávio Kapczinski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de ter contribuído com a formalização do campo da psiquiatria biológica, que tem como foco abordar e centralizar os efeitos biológicos das doenças mentais, como coordenador do Programa de Tratamento do Transtorno de Humor Bipolar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Kapczinski também criou um aplicativo capaz de analisar o comportamento de um indivíduo e, inclusive, prever uma tentativa de suicídio. Sua equipe conseguiu chegar a esse resultado analisando os escritos de Virgina Woolf e, com isso, predisseram corretamente os momentos que antecederam o ato suicida da autora. 

Segundo a Organização Mundial da Saúde, 4,4% da população mundial sofre de depressão, enquanto que, no Brasil, esse índice é de 5,8%. Devido a complicações de transtornos como a depressão ou a bipolaridade, muitas pessoas acabam desenvolvendo ideações suicidas, o que nos leva ao dado, também da OMS, que cerca de 800 mil pessoas morrem de suicídio a cada ano. Esta é a segunda principal causa de morte na faixa dos 15 aos 29 anos de idade, apesar de também afetar idosos. 

O maior problema, no entanto, está na estimativa de que apenas 10% das pessoas que sofrem com depressão se submetem a um tratamento médico especializado. A longo prazo, depressivos que não estão em tratamento tendem a desenvolver outras comorbidades como diabetes ou ainda provocar infarto e acidente vascular cerebral (AVC). Porém, caso esses transtornos sejam tratados, como afirma Kapczinski, é possível mitigar tais efeitos ou até mesmo prevenir casos de suicídio, inclusive, com a ajuda de diagnósticos feitos via aplicativos. 

Se conseguirmos juntar a possibilidade de criar um “clone digital” a partir da patente registrada pela Microsoft e com isso gerar uma série de análises como as performadas pelo aplicativo do HCPA, poderemos aumentar ainda mais o diagnóstico dessas condições e a prevenção de casos de suicídio ou de demais crises de mania ou depressão, por exemplo. 

Claro, aqui estou apenas especulando um possível e mais positivo desdobramento que não necessariamente pode ser viável tecnológica, científica e comercialmente, porém é importante estabelecer esses tipos de conexão para que entendamos que novas tecnologias podem ir muito além do sonho distópico. 

Por isso, um exercício que sempre ofereço durante minhas aulas e workshops é justamente esse de perguntar “e se?”. E se, em vez de criar algoritmos zumbis, nós usarmos essa tecnologia patenteada pela Microsoft para criar um duplo virtual que nos permita visualizar e prevenir doenças? 

Conforme cada vez mais laboratórios oferecem mapeamento genético para detecção de doenças, também poderemos contar com a inteligência artificial para outros acompanhamentos de saúde que não perpassam apenas a nível biológico, mas também comportamental. Hoje, o uso da IA para acompanhamento psicológico é uma das frentes mais amplificadas, porém, a expectativa é que isso se estenda para uma visão mais totalizante da saúde individual — isto é, tanto a nível psicológico quanto físico com a ajuda de dispositivos vestíveis e implantáveis. 

Do ponto de vista social, esse tipo de solução tecnológica está cada vez mais sendo vislumbrada, por exemplo, no momento de triagem nos hospitais, assim como o SUS também desenvolveu um aplicativo para ajudar no controle e diagnóstico do COVID-19 e, assim, evitar aglomerações nos hospitais. O que a pandemia trouxe, portanto, foi uma maior urgência em unir estratégia com ferramentas tecnológicas, apesar de muitas questões a nível de privacidade e de absorção das pessoas ainda estejam sendo debatidas e analisadas por pesquisadores e instituições.

Ilustração: Marly Gallardo

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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