Nos últimos anos, cada vez mais países e empresas têm se dedicado ao estudo e à comercialização de produtos canabinóides. Enquanto no Brasil ainda há uma certa estigmatização da cannabis, apesar de isso estar mudando principalmente devido a seus benefícios médicos, na Europa e nos Estados Unidos, a substância já está mais assimilada – inclusive num sentido de se usar produtos canabinóides não apenas com uma finalidade terapêutica, mas sim recreativa. 

Na realidade, já se sabe hoje que, dependendo da planta, é possível de se conquistar diferentes estados de consciência, por exemplo, relaxamento ou maior concentração. O aplicativo Leafly é um exemplo de solução tecnológica orientada a esse objetivo para quem quiser consumir a planta através do fumo. Por outro lado, há também bebidas, cosméticos e alimentos que se utilizam da cannabis em sua composição.

Mas para além da cannabis, há também um nicho dedicado à experimentação e ao estudo dos psicodélicos para além do seu efeito medicinal. O chamado microdosing ou microdosagem é justamente uma abordagem que visa ao uso minucioso de substâncias psicodélicas como psilocibina, LSD e ayahuasca de modo a se atingir um estado de consciência que não necessariamente perpassa por uma necessidade médica.

Na Amazônia, a ayahuasca é utilizada por grupos que associam a bebida a rituais específicos ou até mesmo a religiões, como é o caso do Santo Daime. Ao subirmos um pouco mais para o norte global, no entanto, encontraremos a ayahuasca sendo comercializada em centros especializados e sem associação religiosa. 

Na primeira temporada da série Goop, que mostra a empresa de Gwyneth Paltrow e suas empreitadas no mundo das terapias alternativas, vemos sua equipe experimentando a ayahuasca com a ajuda de profissionais. Também no documentário (Un)Well, assistimos a uma análise do uso de substâncias psicodélicas, seus riscos e benefícios, inclusive contando com o depoimento de cientistas brasileiros que investigam a substância. Em outros casos, canais de divulgação científica como Física e Afins, também há vídeos que comentam os estudos científicos já disponíveis sobre a ayahuasca.

Com exceção dos exemplos ritualísticos e religiosos, hoje é possível de se afirmar que o uso de psicodélicos está mais orientado a uma preocupação com o corpo, ainda que a finalidade seja a saúde mental. Nos anos 1970, porém, psicodélicos estavam fortemente conectados ao movimento cultural New Age, que buscava um outro olhar passível de ser conquistado através do consumo de substâncias. A própria arte e cultura da época refletia muito disso, seja no nível mais popular com o álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles e a guitarra psicodélica de Jimmy Hendrix, ou ainda em um nível mais nichado. 

A animação Fantastic Planet (1973), por exemplo, ilustra muito dessa subversão de olhares da década. Nesse filme de ficção científica, conhecemos um planeta habitado por hominídeos gigantes e azuis que domesticam ou buscam erradicar os seres humanos. Dentre seus hábitos culturais, está um ritual de meditação através do qual esses seres conseguem se conectar a um outro plano que poderia, de certa forma, ser comparado a um estado de graça.

Desse ponto de vista, podemos mencionar então o trabalho de pesquisadores como Timothy Leary e Robert Anton Wilson que, à época, tornaram-se líderes culturais e devido a seus estudos e experimentações com substâncias psicodélicas. A dupla chegou a propor o Modelo de Oito Circuitos de Consciência, através do qual tentavam organizar os diferentes níveis de consciência experienciados pelos seres humanos.

Timothy Leary (1920 – 1996), Ph.D., professor de Harvard, psicólogo, neurocientista, escritor e futurista, ícone dos anos 1960. Foto: Curtis Knapp.

Combinando neurociência com psicanálise e demais referências culturais e científicas, Leary e Anton Wilson propunham que os quatro primeiros níveis seriam os mais rudimentares, aqueles experienciados pelos seres humanos desde seus primeiros anos de vida e, portanto, classificados como “terrestres”. Apesar de serem circuitos primitivos e conectados às primeiras fases de desenvolvimento humano, ainda assim, seríamos capazes de ativar esses níveis de consciência com o uso de substâncias como opióides, antidepressivos ou álcool, por exemplo.

Já os circuitos restantes se encaixam na classificação de pós-terrestre e demonstram níveis de consciência mais avançados que podem ser atingidos através de práticas como a yoga e meditação ou então por meio do uso de outras substâncias específicas. Isto é, são níveis que nós não experienciamos naturalmente, mas que demandam um “preparo” ou um “estímulo” que pode advir de uma prática ou de uma substância.

O curioso é que, nos últimos níveis, como o sétimo e oitavo, os autores acreditavam que seríamos, então, capazes de “desbloquear” certas capacidades e conhecimentos que não conseguiríamos em um estado de “sobriedade”. Mas enquanto Leary e Anton Wilson faziam esse tipo de sugestão em um sentido muito mais filosófico (no que diz respeito à busca por conhecimento e entendimento), o que vimos nas décadas seguintes foi o uso dessas mesmas substâncias de modo a aprimorar nossa capacidade produtiva.

Já é de conhecimento comum que Steve Jobs foi um empresário que fazia uso de microdosing para aprimorar sua produtividade e criatividade. Isso continua sendo algo praticado no Vale do Silício até hoje. É a partir desse tipo de aposta que filmes como Limitless (2011) mostram que o uso de uma determinada droga ou substância conseguiria tornar uma pessoa extremamente criativa, produtiva e inteligente, assim sendo capaz de trabalhar de forma eficiente, gerar riquezas e conquistar posições de proeminência na sociedade.

Como já mencionado em outra coluna minha aqui, o uso de dietas e receitas específicas também é outra abordagem do Vale do Silício quando o assunto é aumentar a produtividade. Aqui, no entanto, estamos falando do uso específico de substâncias psicodélicas, o que me leva a fazer a seguinte provocação: será que não estamos no momento certo para retomar os princípios de Leary e Anton Wilson, que previam no uso dessas substâncias um benefício à produção de conhecimento humano e não de capital necessariamente. Por conta disso mesmo é que as investigações dos dois cientistas acabaram influenciando movimentos de contracultura, nichos ocultistas ou mesmo praticantes da chamada Magia do Caos.

Curiosamente, porém, nos anos 1980, Timothy Leary passou a se interessar por tecnologias cibernéticas e pela internet, entendendo que o ciberespaço e a realidade virtual seriam a nova fronteira de transcendência para o ser humano. Vale lembrar que esse insight surgiu após Leary ter passado muitos anos sendo punido por experimentar e defender o uso de psicodélicos, então descobrindo nessa nova tecnologia uma forma mais “segura” de estender sua pesquisa.

Minha iniciação científica se concentrou na animação japonesa Serial Experiments Lain, de 1998. Foi através dessa pesquisa que tive contato com o conceito de oito circuitos de consciência e o trabalho de demais pesquisadores. É interessante ver como esse anime combinou o interesse de Leary ao ciberespaço e a noção de transcendência através da tecnologia que se formulava também com o desenvolvimento do transumanismo (em especial com Mind Children, de Hans Moravec). Fora isso, a obra ainda propõe que a internet ou a Wired (uma versão avançada do metaverso) foi uma conquista tecnológica humana advinda de nossa capacidade de transcender os níveis “normais” de consciência.

Em outra oportunidade, cheguei a comentar um pouco sobre o uso de realidade virtual e de outras tecnologias que seriam capazes não somente de apoiar tratamentos médicos e reabilitação de pessoas que, por exemplo, sofreram um derrame, mas também ajudar a canalizar determinados estados de consciência. Sendo assim, se levarmos em conta que estamos em um novo momento de percepção dos psicodélicos e em um resgate do desejo de se desenvolver o metaverso, me parece que a proposta de Leary ressurge com ainda mais relevância e até mesmo possibilidade de ser levada adiante.

Mais do que ser um novo ambiente para se fazer reuniões de trabalho, o metaverso pode ser a nova fronteira para a amplificação dos estados de consciência humana, assim potencializando insights e descobertas que estão bloqueados no limiar da “sobriedade”. É difícil acreditar que isso possa vir a acontecer quando o Facebook se torna Meta, sob a perspectiva de inaugurar um novo estágio da internet, mas a verdade é que a inovação acontece nas bordas, não no centro. 

Um exemplo disso está no próprio design e proposta da Meta sobre o que seria esse novo metaverso e como, há anos, jogadores de VR Chat têm trabalhado em cenários muito mais interessantes e com tecnologias que nem são tão avançadas, mas que proporcionam uma experiência muito mais interessante do que simplesmente ter um avatar-clone. Por isso mesmo, acredito que ainda há esperança e estou entusiasmada para ver o que vem por aí.

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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