Foi no fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990 que os discursos transumanistas sobre o uso da tecnologia e ciência como métodos de amplificação das capacidades físicas e cognitivas começaram a ser levantados. Ao mesmo tempo, nas ciências sociais, Donna Haraway publicava seu famoso Manifesto Ciborgue, no qual não apenas trazia uma reflexão sobre as questões de gênero, mas também como as novas tecnologias estavam reconfigurando a própria existência humana a partir da figura do ciborgue – um organismo cibernético.

Nas décadas seguintes, vimos ainda o surgimento de novas correntes feministas como o ciberfeminismo, transfeminismo, e o xenofeminismo, sendo este último caracterizado pelo manifesto escrito pelo coletivo Laboria Cuboniks, em 2014. No documento, as autoras discutem a “constante transformação e definição dos modelos políticos que incluem o presente e o futuro da tecnologia e da ciência, bem como questões de gênero” e a “aceleração dos efeitos alienantes das forças do capitalismo de modo a incitar a transformação social radical e necessária, assim superando o status quo político de uma economia de exploração extrema.”

Se, por um lado, algumas correntes do aceleracionismo visam à disrupção do capitalismo ao levá-lo ao extremo, o xenofeminismo pensa nessa mesma lógica no caso do gênero, assim possibilitando a extinção ou abolição dessa categoria. Para isso, o coletivo se inspira no Manifesto Comunista de Marx e Engels e propõe que mesmo diante da tecnologia moderna, há ainda um efeito alienante que torna os trabalhadores incapazes de se beneficiar dos frutos de seu trabalho e, portanto, caindo em um círculo vicioso de exploração que os desconecta da humanidade.

Nos anos 1970, o próprio movimento feminista de autoajuda, apesar de ter sido majoritariamente formado por mulheres brancas, cis, heterossexuais e de classe média, ainda assim foi um marco para a intersecção entre essa nova percepção de humanidade e o uso de tecnologia como forma emancipatória – isto é, a aplicação do “do it yourself” (DIY ou “faça você mesmo”). Em um momento no qual o sistema de saúde americano fazia ligamento de trompas e histerectomias sem o consentimento das mulheres, criar um dispositivo como o Del-Em ou mesmo o espéculo foi essencial para que as americanas pudessem se diagnosticar e cuidar de sua saúde reprodutiva de forma autônoma.

Isso se conecta mesmo ao momento presente em que nem todos os sistemas públicos de saúde oferecem serviços como cirurgia de redesignação de gênero ou ainda tratamentos hormonais. Nos EUA, ao mesmo tempo em que diabéticos muitas vezes precisam recorrer a laboratórios e produtores independentes de insulina, também biólogos trans estão produzindo seus próprios hormônios em “suas garagens” – daí expandindo o movimento biohacker ou grinder, que busca a emancipação, o empoderamento e a autonomia dos indivíduos sobre seus corpos por meio de um esforço independente de pesquisa e desenvolvimento.

Em “Testo Junkie”, o filósofo Paul B. Preciado argumenta que no “sistema disciplinário do século 19, o sexo era algo natural, definitivo, intransferível e transcendental; o gênero, agora, aparece como algo sintético, maleável, viarável, capaz de ser transferido, imitado, produzido e tecnicamente reproduzido.” Isto é, em vez de usar termos mais populares como “cis” para pessoas que identificam com o gênero designado ao nascimento, Preciado usa o termo “bio”, o que contrasta com as pessoas trans, que ele chama mesmo de “trans” ou de “tecno” devido ao fato de que esses indivíduos recorrem ao “uso de tecnologias hormonais, cirúrgicas e/ou legais para modificar sua designação [de gênero].”

Preciado também analisa a questão dos anticoncepcionais femininos e como eles acabam provocando efeitos colaterais como a baixa libido, dores de cabeça, orgasmos menos intensos, risco de trombose, entre outros indicadores que decorrem do fato de se tratarem de medicamentos hormonais. O autor menciona que, hoje em dia, porém, mulheres cis têm administrado testosterona não como forma de fazer transição de gênero, mas sim de modo a melhorar sua performance física ou ainda se submetendo a procedimentos cirúrgicos para melhor modelar seus corpos.

No entanto, o que ocorre é que, neste momento, também chegamos a um ponto em que cirurgias plásticas têm sido feitas para emular o efeito de filtros de redes sociais, ao ponto que já temos um termo chamado “dismorfia de Snapchat” que diz respeito a esse fenômeno. O que significa, portanto, quando vemos influenciadoras como a Kylie Jenner publicando a notícia de que ela fez preenchimento labial e, em 24 horas, o interesse global pelo procedimento cresce em 70%?

Como já mencionei em uma outra reportagem, estamos vivendo um momento no qual o transumanismo e o desejo de transcender a espécie humana está muito mais próximo de um discurso de padrões de beleza, conformidade social e distúrbios mentais como anorexia, bulimia, ortorexia, depressão, ansiedade e distorção de imagem corporal. Isso fica ainda mais claro e reforçado em redes sociais como o Instagram que, de fato, têm provocado esse tipo de efeito em adolescentes que podem ou desenvolver algum tipo de comportamento transtornado ou ainda morrer devido a complicações em procedimentos de cirurgia plástica. 

Isso, no entanto, não abala o surgimento de novos cursos, técnicas, treinamentos, livros, programas que prometem esse tipo de efeito não apenas estético, mas também performático. Se, antes, os chamados “grinders” construíam um laboratório em suas garagens para fazer experimentos biológicos e, com isso, gerar conhecimento científico, hoje, o que vemos são livros como “The Bulletproof Diet” que prometem ao leitor fazê-lo “perder até meio quilo por dia, reconquistar energia e foco, melhorar sua vida.” 

Vemos startups aplicando programas de jejum intermitente para tornar seus funcionários mais produtivos. Vemos o guru do futurismo Ray Kurzweil gastando milhares de dólares por dia enquanto toma mais de 200 pílulas de suplementos e vitaminas que visam à melhora de sua saúde geral e, tecnicamente, uma maior longevidade. Nos surpreendemos a ver pessoas como Ben Greenfield, que se autoproclamam biohackers, porque tomam banhos congelantes, usam terapia de LED vermelho em seus corpos, tomam microdoses de LSD, consomem óleo de avocado extra virgem, entre outros métodos de melhoria genital que ele revela em seu livro “Private Penis Gym.”

Dos experimentos psicodélicos de Timothy Leary até o processo de comercialização das experiências com Ayahuasca em locais como o Soul Quest, nos Estados Unidos, temos visto cada vez mais o empreendedorismo permeando espaços outrora relegados à religião, contracultura e ciência. Documentários do Netflix como The Goop Lab e (Un)Well dão uma amostra desse “lado obscuro da indústria do bem estar”, ainda que se apresentem com um design atrativo e minimalista ao estilo dos millennials.

A pergunta que faço, portanto, é: quando foi que o biohacking deixou de representar punks que faziam seus próprios experimentos biológicos de modo a produzir conhecimento científico para se tornar um novo mercado de nicho dos CEOs do Vale do Silício? Tudo retorna ao que Barbrook e Cameron chamaram de “Ideologia Californiana”. Em outras palavras, o que era antes uma subcultura que resistia à concentração e monopólio de conhecimento e tecnologia por parte de grandes corporações farmacêuticas, agora se tornou uma pseudociência ou, no mínimo, um produto vendido por não especialistas e com apelo de solução rápida, mas não necessariamente longeva e benéfica.

Existem diferentes estudos sistemáticos que indicam, por exemplo, a falta de comprovação na eficácia dos jejuns intermitentes. Suas afirmações são amplamente revisitadas em reportagens ou até mesmo contestadas com um alerta à saúde das pessoas – principalmente quando tratamos de pessoas com transtorno alimentar, diabetes ou gestantes. Descobrimos que esses gurus do biohacking californiano sequer possuem formação na área de saúde, que muitos suplementos não funcionam ou são até mesmo inúteis ao ponto de nos enveredarmos em um cenário no qual transformamos dietas e alimentos em verdadeiros cultos

Em um momento no qual “terapias quânticas” prometem a “reprogramação celular”, o que vemos é o mercado se aproveitando da ignorância e do desespero das pessoas de maneiras cada vez mais sofisticadas. Se, por um lado, temos uma indústria que recorre ao argumento de que tudo que é natural é melhor (e isto é greenwashing, como indica a física Bibi Bailas), por outro, vemos um show de LEDs e termos técnicos que prometem que já “estamos no futuro”, quando só estamos ainda comprando novas embalagens de óleo de cobra.

Ilustração da capa: Angie Wang

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Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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