Você já leu “A Insustentável Leveza do Ser”, do autor Milan Kundera[1]? Eu comecei a ler no último fim de semana e estou realmente empolgada e envolvida. Mas talvez você esteja se perguntando: o que literatura tem a ver com treinamentos? A resposta é mais fascinante do que você imagina.

Descobrindo a subjetividade das palavras

Uma das partes que mais me encantou até agora no livro tem como título “O pequeno léxico das palavras incompreendidas”. Nela, o autor explora as distintas compreensões de dois amantes – Franz e Sabina – para certas palavras.  Esses personagens vêm de origens e vivências completamente distintas.  Por exemplo, a palavra “mulher” evoca sentidos e sentimentos diferentes para Franz e para Sabina, baseados nas histórias que viveram desde a infância. Não que eles tenham consciência dessas diferenças entre os significados. Quando dizem “mulher”, acham que estão falando da mesma coisa. Não percebem que, além da explicação do dicionário, as palavras trazem consigo também as próprias histórias de vida deles, tão distintas entre si.

Interessante, não é? Consegue se identificar com essa mesma situação na sua vida e com as pessoas com as quais você se relaciona?

Mergulhando na Neurociência por Trás do “Pequeno Léxico”

Vamos dar um salto para o mundo da neurociência. Existe uma teoria conhecida como “aprendizagem estatística” (statistical learning[2]), que está intimamente ligada ao “pequeno léxico das palavras incompreendidas”. Essa teoria sugere que aprendemos novas palavras e conceitos por meio do reconhecimento de padrões ao longo de nossas vidas.  Pense nisso dessa forma: como aprendemos o que é um livro?  Aprendemos, gradualmente, que há um padrão: sempre que escutamos a palavra “livro”, associamos à presença de um objeto com certas características (páginas, desenhos, letras, cheiro). Percebemos isso usando todos os nossos sentidos, visão, tato, olfato etc. No entanto, essa associação não se limita apenas ao objeto em si; também leva em conta o ambiente ao redor.  Há um colo aconchegante? Há uma voz acolhedora lendo para gente? Essa é a cereja do bolo: nossas emoções entram em jogo.

Não percebemos somente os padrões que recebemos dos sentidos, os padrões dos nossos sentimentos associados ao livro também participam da construção do seu significado.  Ao construirmos o significado de “livro”, que emoções predominam? Serenidade ou ansiedade? Alegria ou frustração? Todas as nossas vivências tecem a trama que dá significado às palavras e aos conceitos.

Literatura + Neurociência + Empresas = Pessoas

Se pudermos sair do universo literário e mergulhar no contexto organizacional, veremos que as conexões são surpreendentemente relevantes. Podemos refletir, por exemplo, sobre como isso impacta a comunicação e a aprendizagem.  Às vezes, presumimos que estamos todos falando da mesma coisa, ao usar a mesma palavra, mas nem sempre isso é verdade. Cada colaborador traz consigo uma bagagem única, originada em experiências familiares, acadêmicas e profissionais, que impactam sua compreensão e sentimento sobre o que é dito. 

Agora, imagine um termo como “protagonismo”.

Ele pode ser interpretado como alguém assumir sozinho total responsabilidade por uma tarefa, tomar decisões, se meter onde não é chamado, assumir liderança em projetos em equipe, ou mesmo, o termo até ser encarado como um modismo vazio de significado real. Outras palavras, como “feedback”, “relatórios” e até “apresentações”, podem ter interpretações diversas. Nesses momentos, é comum culparmos o outro por mal-entendidos ou por agir de forma diferente do que imaginávamos. E aqui não estamos falando apenas do aspecto prático, onde uma definição padrão resolveria tudo.

Então, do que estamos falando?

Cultura, sintonia e transformação

Uma abordagem mais empática e colaborativa pode ser necessária. Vamos pegar a palavra “aprender” como exemplo. Devido a questões culturais e históricas, muitos de nós associamos o aprendizado à educação formal, com cursos e treinamentos. Mas e se a organização busca uma abordagem mais colaborativa e autônoma para o aprendizado? Nesse caso, talvez seja necessário redefinir o conceito junto aos colaboradores. Geralmente, a palavra “aprender” está ligada à obediência e à sala de aula. No entanto, construir um significado mais amplo para “aprender”, envolvendo trocas abertas e a capacidade de lidar com erros, pode ser crucial para uma empresa que quer mais inovação, por exemplo.

Mas, para que essa transformação aconteça, dificilmente será suficiente dar um treinamento pontual sobre o que é aprender ou como aprender. A construção de um significado para cada indivíduo levou uma vida inteira. Repensar e reelaborar esses conceitos exige uma estratégia específica, que questione a cultura de aprendizagem da empresa.  Em muitos casos, é preciso ter um olhar de campanha de aprendizagem, com diversas intervenções, para mudar coletivamente a percepção sobre um determinado assunto, encorajando discussões abertas e compartilhamento de histórias. Estas intervenções podem até incluir cursos ou treinamentos, mas, para serem mais eficazes, não deveriam se limitar a eles.

Você consegue ver esse tipo de movimento no seu trabalho? Sim, ele é possível e acontece em muitas empresas que já entenderam a importância desta mudança e reflexão.

Afinal, qual o recado da história de Franz e Sabina?

Assim como os personagens de A Insustentável Leveza do Ser trazem consigo suas próprias bagagens, os profissionais em uma organização trazem histórias individuais que moldam suas interpretações das palavras. A simples exposição a uma palavra não é suficiente para construir um significado compartilhado. Em vez disso, construímos o significado usando nossos sentidos, emoções e contextos pessoais.

O casamento entre a teoria da aprendizagem estatística e a complexidade emocional do ser humano nos oferece uma visão fascinante sobre como os sentidos e as experiências são entrelaçados na construção de significados. Isso tem implicações poderosas na comunicação e na aprendizagem organizacional.  O desafio de alinhar entendimentos divergentes de termos como “protagonismo” ou “aprendizado” requer mais do que treinamentos; exige uma mudança cultural profunda e colaborativa.

Precisamos reconhecer que somos seres humanos complexos, cujas interpretações não podem ser encapsuladas em fórmulas simples. Nossa jornada de significados é tecida a partir de experiências variadas e profundas, e essa compreensão nos lembra da importância de ouvir, adaptar e manter a mente aberta para as várias dimensões que formam nossa visão de mundo.

Resumindo

Subjetividade: O significado das palavras varia individualmente, baseado em experiências e histórias únicas, mesmo quando parecem ter definições comuns.

Aprendizagem Estatística: A teoria da “aprendizagem estatística” indica que absorvemos palavras e conceitos reconhecendo padrões ao longo do tempo, incluindo emoções e contexto.

Organizações e Pessoas: Esta subjetividade na significação afeta a comunicação e a aprendizagem organizacional.

Interpretações Diversas: No ambiente de trabalho, interpretações variadas de palavras como “protagonismo” ou “aprender” surgem de experiências pessoais, influenciando a colaboração e compreensão.

Transformação: Ressignificar palavras exige mais do que treinamentos pontuais; é necessário repensar a cultura organizacional e adotar abordagens abertas e colaborativas.


[1] Grande escritor checo, falecido recentemente.

[2] Para saber mais, recomendo o livro How Emotions are Made, de Lisa Feldman Barrett: https://how-emotions-are-made.com/notes/Statistical_learning.

Imagem da capa: Chapéu-coco um dos símbolos no romance A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. (rolffimages via Adobe Stock)

Nira Bessler

Nira Bessler é consultora e palestrante apaixonada por aprendizagem, com uma profunda curiosidade pelo mundo e pelas histórias que a cercam. É formada em jornalismo pela UERJ e certificada pelo Programa de Adult Learning and Development da Universidade de Toronto. Recentemente, conquistou o título de mestre pela FGV, com a dissertação Relações entre Segurança Psicológica e Cultura de Aprendizagem. Ao longo de sua carreira executiva, acumulou 15 anos de experiência no competitivo mercado financeiro, mas também produziu documentários sobre histórias brasileiras. Não menos importante, Nira é mãe da pequena Marina, que a ensina muito sobre este mundo novo que estamos vivendo.

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