Nós já sabíamos que estávamos vivendo em um mundo VUCA, conceito criado em meados dos anos 1990, para explicar a dinâmica de um mundo pós-Guerra Fria, quando havia grande insegurança mundial, com transformações rápidas e forte presença tecnológica. No entanto, com a ampla digitalização e todas as outras transformações impulsionadas pela pandemia, não sabíamos que, analisar o mundo por essas lentes, não faria mais sentido tão rapidamente. Se já estava complexo de entender, agora, o cenário se intensifica.

Chega até nós o mundo BANI, termo cunhado pelo antropólogo e futurista Jamais Cascio. Se éramos voláteis, passamos a viver em um mundo frágil; se tudo era incerteza, agora é ansiedade; se era complexo agora passamos a vivenciar a não-linearidade; e da ambiguidade migramos para a incompreensão. Em inglês, o acrônimo BANI significa Brittle, Anxious, Nonlinear e Incomprehensible, ou, em português: Frágil, Ansioso, Não linear e Incompreensível. Estamos mesmo em um mundo no qual paira o medo: medo da falta de recursos econômicos e de que tudo possa ruir do dia para noite, medo da morte, medo da doença, medo de sair, de sociabilizar, medo da solidão. Paira a ansiedade sobre o que vai acontecer em nossas vidas, sobre a aceleração exagerada da vida. Paira a não linearidade em um mundo exponencial no qual causa e efeito já não podem ser calculados com precisão. Sem falar da falta de compreensão de tecnologias e outros sistemas complexos que nos deixam constantemente sem respostas. Esses são apenas alguns dos sintomas de nossa sociedade, mas poderia seguir com uma lista infindável de adjetivos para descrever nossa realidade: hiperconectividade, pressa, velocidade, solidão, incerteza, desconfiança, polarização, etc…  E a pergunta que aparece na sequência é: então como navegar diante desta realidade?

Talvez a resposta seja complexa e não haja uma única resposta a essa pergunta. Porém me conecto com um possível caminho. Recentemente me deparei com a teoria da antifragilidade, descrita pelo professor líbano-americano no Instituto Politécnico da Universidade de Nova York, Nassim Nicholas Taleb, em seu livro Antifragil: Coisas Que Se Beneficiam Com O Caos. O autor parece propor um recurso, uma estratégia de sobrevivência, um antídoto poderoso para tirar proveito de tempos turbulentos: a antifragilidade.

Em 2007, Taleb nos havia alertado para a tomada de consciência de que acontecimentos inesperados e imprevisíveis poderiam ocorrer: os chamados Cisnes Negros, que deram origem ao título da obra “A lógica do Cisne Negro”. A ideia de que o fator caos existe e pode alterar nossa realidade nos coloca diante do fato de que não podemos ter controle sobre tudo. Prova disso foi a própria pandemia que confirmou essa tese, colocando em xeque muitas de nossas certezas.

Em 2012, cinco anos depois, Taleb nos surpreendeu com outra proposição que complementaria a proposta anterior e que agora faz muito sentido: a importância de sermos antifrágeis. A ideia vai além da habilidade de adaptar-se a momentos complicados e incertos mas nos convida a aproveitar o caos. É posicionar-se e enxergar a incerteza como uma oportunidade para prosperar e evoluir. Aqui, o caos funciona como uma mola propulsora. “A antifragilidade é o que desperta, reage e se sobrecompensa diante de agentes estressores e de danos oriundos da volatilidade do mundo”, explica Taleb em seu livro.

Frequentemente, para lidar com o caos, recorríamos à resiliência, termo bastante usado inclusive no mundo organizacional. Resiliência é a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação. Ora, transportemos essa propriedade para os dias de hoje. Se depois de mais de um ano de convivência com um vírus que assolou o mundo, fossemos resilientes, retornaríamos depois desta experiência todos iguais e ao estado original. Pela lógica então não teríamos usado esse acontecimento para aprender, transformar, melhorar, evoluir tanto pessoalmente como profissionalmente.

Já na antifragilidade, não resistimos às mudanças e nem à volatilidade. Há uma aceitação, um aprendizado, e o que é melhor, uma evolução. Se na resiliência continuamos apesar dos erros, na antifragilidade continuamos por causa dos erros. “Algumas coisas se beneficiam de choques; eles prosperam e crescem quando expostos à volatilidade, aleatoriedade, desordem e fatores estressantes e amam a aventura, o risco e a incerteza”, diz Taleb.

Foi exatamente o que aconteceu com algumas empresas na pandemia: evolução e crescimento em meio às dificuldades. Um bom exemplo é do o Magazine Luiza, que apesar do fechamento de suas lojas físicas, viu seu lucro crescer em 40% no quarto trimestre de 2020. A estratégia foi se beneficiar do salto do comércio eletrônico, surfando a onda da mudança de hábito dos consumidores para o digital. Mas não foi só o crescimento em números. A empresa também evoluiu com seus valores, afirmando seu propósito e mostrando-se extremamente humana em um momento que pediu a todos por mais empatia. Prova disso foi a idealização do movimento “Não Demita”, para a manutenção de empregos no período da pandemia. Ou ainda quando criou o programa “Parceiro Magalu”, uma plataforma digital de vendas que está ajudando micro e pequenos varejistas e profissionais autônomos a manter seus negócios em meio à crise. Posso citar ainda as aquisições de empresas pelo Magazine Luiza, anunciando a expansão da marca e sua preparação para a entrada em outros setores como o mercado de publicidade online. “É hora de colocar um farol alto na economia, enxergar as possibilidades de crescimento que estão bem à nossa frente, e não de focarmos no que está dando errado”, diz o principal executivo da Magalu, Frederico Trajano, que soube usar o antídoto da antifragilidade.

Fiz um exercício criativo, imaginando quais seriam as premissas da antifragilidade para as organizações: O que tornaria uma empresa ou um projeto antifrágil? Compartilho aqui com vocês esses atributos sustentados a partir de dados e ideias que corroboram com a necessidade de implementação destas premissas dentro e fora das empresas:

1. Confiança: A crise de credibilidade nas instituições – empresas, ONGs, mídia e governo – nunca esteve tão forte. Nesse contexto, as empresas se destacam como as mais confiáveis, competentes e éticas, por 61% dos entrevistados. Essas conclusões fazem parte do relatório Edelman Trust Barometer 2021. Portanto, as organizações, nesse momento, têm um papel fundamental de resgate da confiança das pessoas.

2. Diálogo: A solidão é generalizada em todo o mundo – metade das pessoas afirma se sentir sozinhas com frequência, segundo relatório da Ford. As gerações mais jovens sentem isso de forma mais aguda: os da Geração Z são quase duas vezes mais propensos a dizer que se sentem mais solitários do que os Boomers (64% contra 34%). Como resultado, muitos estão repensando onde moram, mudando para mais perto da família e encontrando novas formas de companhia e diálogo – seja online ou offline. Nesse sentido, as empresas devem e podem criar espaços de dialogo com e entre seus colaboradores e consumidores.

3. Colaboração: Os CXOs – executivos responsáveis pela experiência geral dos produtos e serviços de uma organização – que foram pesquisados para o relatório Building the Resilient Organization 2021 da Deloitte, observaram a importância da colaboração dentro das empresas. Segundo a publicação, remover os silos e focar mais na colaboração multifuncional foi uma das principais ações estratégicas em que os CXOs se concentraram antes e durante 2020. A pesquisa também validou que a colaboração melhorou a resiliência (no nosso caso, a antifragilidade). Dois terços dos pesquisados, que disseram que suas empresas tinham removido os silos em suas organizações antes do início da pandemia, tiveram melhores resultados do que aqueles cujas organizações estavam apenas planejando implementar colaboração nos próximos um a cinco anos.

4. Empatia: Mundialmente, a ansiedade está alta, motivada pelo medo de contrair a COVID-19 e preocupações com o impacto da pandemia nas comunidades, no emprego, na educação e em outras áreas. Segundo o relatório da Ford (citado acima), globalmente, 63% dos adultos dizem estar mais estressados do que há um ano e quatro em cinco, que precisam cuidar melhor do bem-estar emocional. Cientes das implicações da pandemia na saúde mental, as pessoas estão encontrando maneiras inovadoras de agir, se conectar e empatizar com as dores e necessidades dos outros. Agora, mais do que nunca, as empresas precisam ter coragem para falar sobre os problemas de forma clara e transparente, sempre abordando de maneira empática os principais medos das pessoas.

5. Diversidade: No mundo todo, o nível de desigualdade é alto demais – especialmente porque a pandemia teve um impacto desproporcional nas comunidades de baixa renda, minorias étnicas e mulheres. O relatório da Ford constatou que 76% dos adultos em todo o mundo esperam que as marcas tomem uma posição em relação às questões sociais – e 75% consideram que as marcas hoje estão tentando fazer a coisa certa. Diversidade e inclusão são premissas antifrágeis para as empresas que querem criar engajamento e impactar a sociedade de forma positiva.

6. Propósito: Empresas que lideram com um propósito conquistam – de forma contínua e genuína – a lealdade, a consistência e a relevância na vida dos consumidores. Além disso, apresentam maiores ganhos de participação de mercado e crescem em média três vezes mais rápido que seus concorrentes, alcançando ao mesmo tempo maior satisfação dos funcionários e dos clientes. Segundo dados da pesquisa da Ford, 80% dos consumidores afirmam que estariam dispostos a pagar mais se uma marca aumentasse seus preços para se tornar ambientalmente e socialmente mais responsável, ou então, pagassem salários mais justos a seus colaboradores. Qual impacto que a sua empresa vai gerar para a comunidade nos próximos anos?

7. Compromisso com o Coletivo: No início da pandemia, a qualidade do ar surgiu como uma possível vantagem do lockdown mundial, mas esse otimismo caiu rapidamente com o aumento no uso de plásticos e outros descartáveis, deixando claro que ser sustentável e se manter sustentável nem sempre estão em sincronia. Segundo o relatório da Ford, as gerações mais jovens estão particularmente preocupadas: 46% da Geração Z, em todo o mundo, dizem que a pandemia nos tornou mais desperdiçadores – e 47% acreditam que, em longo prazo, a pandemia terá um impacto negativo no meio ambiente. É hora das organizações pensarem no coletivo e como suas ações podem impactar positivamente o todo.

8. Adaptabilidade: Flexibilidade e adaptabilidade, foram, de longe, o traço da força de trabalho que os CXOs disseram ser mais importante para o futuro de suas organizações, segundo o relatório da Deloitte. 54% dos entrevistados selecionou esse atributo como um dos três mais críticos da força de trabalho, já que, em meio à pandemia, comportamentos e hábitos foram impactados, surgindo também novas necessidades e prioridades. Com isso, empresas grandes e pequenas precisam se adaptar com incrível rapidez. Globalmente, 75% dos adultos dizem aprovar o modo como as empresas melhoraram a experiência de compra desde o início da pandemia e 41% dizem não querer voltar ao modo antigo de comprar.

Diante desta lista de premissas antifrágeis, gostaria de pontuar um aspecto transversal a todas: a vulnerabilidade. É curioso notar que o antifrágil nasce exatamente da própria fragilidade. Somente quando sentimos e vivemos o caos, a tristeza, a perdas, a complexidade, a volatilidade em nós mesmos, é que conseguimos reagir.

Sem aleatoriedade, sem desordem, sem incerteza, sem instabilidade, não há como desenvolver o antifrágil dentro de nós. Porém, vivemos em uma sociedade que tem como ideal a felicidade privada e as satisfações permanentes. Vivemos em um mundo que evita as frustrações e anestesia o corpo e as sensações com remédios imediatos para não sentir a própria fragilidade.

As emoções negativas, como a raiva, o medo e a ansiedade, são necessárias para nós. O problema é que, por falta de educação emocional, quando as sentimos as rejeitamos, e isso faz que se intensifiquem e que o pânico nos domine. Se bloqueamos uma emoção negativa, igualmente bloquearemos as positivas. É preciso sentir o medo e sermos conscientes de que vamos em frente mesmo com ele. Não é resignação, e sim aceitação ativa” – Tal Ben Shahar, professor israelense, doutor em Psicologia e Filosofia pela universidade de Harvard.

É chegada a hora, portanto, de darmos espaço ao medo e à vulnerabilidade e esquecer nossa obsessão permanente pela felicidade e pelo sucesso. É hora de nos desprendermos de nossa ilusão de estabilidade e controle. É hora de deixarmos de ser super-pessoas ou super-empresas infalíveis. É hora de nos expormos a todo tipo incertezas e nos vacinarmos com o antídoto da antifragilidade.

Já dizia brilhantemente o escritor Rubens Alves que, “a ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma: ‘Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas…’ Ostras felizes não fazem pérolas… Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor.”

Imagem da capa: “Destruction, óleo sobre tela de Thomas Cole (1836)

Sabina Deweik

Sabina é caçadora de tendências, futurista, pesquisadora, consultora e educadora. Atualmente atua rastreando, digerindo e interpretando sinais de futuro, com palestras, cursos, mentorias e conteúdos para marcas, organizações e empreendedores. Formada em jornalismo pela PUC-SP, tem mestrado em Comunicação e Semiótica também pela PUC e Mestrado em Comunicação de Moda pela Domus Academy, de Milão. É também coach ontológica certificada pela Newfield Network do Chile, atuando em processos de desenvolvimento humano.

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