Ócio, insegurança, vícios. Se quisermos um vislumbre chocante de possíveis e “não desejáveis” futuros que nos espreitam, há bons filmes, curtas e livros de ficção científica para isso.

Não bastasse a vida real, as Sci-fi são mestres em causar desestabilização e, às vezes, nos aterrorizar, justamente porque a intenção é nos fazer refletir sobre nossos valores, nossas percepções do mundo e até mesmo nossa verdadeira natureza.

A urgência das questões desestabilizadoras mostradas nas Sci-Fi, só cresceu nos últimos anos, já que a evolução tecnológica, além do aquecimento global, pode ameaçar a nossa própria existência.

Como diz Josh Siegel, curador do departamento de cinema do Museu de Arte Moderna, as ficções científicas costumam indagar de onde viemos e para onde vamos. Mas, para ele, a questão é saber se estas evoluções estão vindo para nos salvar ou nos matar, e, principalmente, o que significa “ser” humano.

A marcha implacável da tecnologia nos levou a um ponto em que as máquinas e os softwares não estão apenas nos superando, mas, começando a dominar todas as áreas que os seres humanos atuam.

Não é de agora. Ao longo dos séculos construímos máquinas que nos ajudam a fazer coisas que não podemos ou não queremos fazer. Só que agora elas estão em rede e permitem novas formas de simbiose com o ser humano. Estamos entrando em uma era, onde cinquenta bilhões de máquinas estão em constante comunicação, automatizando e orquestrando o movimento e as interações entre indivíduos, organizações e cidades.

Softwares já escrevem poesias, roteiros de filmes e notícias de negócios…

O Watson da IBM já diagnostica o câncer com mais precisão do que os médicos…

O Uber começou a implementar táxis autônomos…

As máquinas inteligentes já assumiram lugar em ambientes mais criativos, como o design de sites e de materiais publicitários…

Já tem hospital (UCSF em San Francisco), que automatizou completamente a sua farmácia.

Ray Kurzweil, futurista e diretor de engenharia do Google, apesar de reconhecer potenciais riscos, aguarda ansioso o dia em que os computadores irão superar a inteligência humana – o ponto de inflexão conhecido como “singularidade“.  Para ele, essa história de que a inteligência artificial e outras tecnologias afetarão os empregos é exagero e ele reafirmou isso numa entrevista essa semana. Mas, será mesmo exagero?

A realidade é que os especialistas estão divididos em relação a essa ameaça: por um lado, há aqueles que calculam que 45% dos empregos, tais quais conhecemos hoje – não apenas empregos manuais, mas o trabalho de advogados e de médicos – serão automatizados. Outros, como Kurzweil, acreditam que boa parte dos empregos possa desaparecer, mas, no processo, criaremos novos tipos de trabalhos que irão substituir os que foram eliminados.

Dov Seidman, numa recente entrevista à Thomas L. Friedman, disse que o que estamos experimentando hoje tem semelhanças impressionantes em magnitude e implicações com a revolução científica que começou no século 16:  “As descobertas de Copérnico e de Galileu, que estimularam essa revolução científica, desafiaram toda a compreensão do mundo – e nos forçaram, como seres humanos, a repensar nosso lugar dentro dele”.

Ou seja, a revolução tecnológica do século XXI, tanto quanto a revolução científica, nos força a responder a uma pergunta que nunca tinha sido formulada antes: o que significa ser humano na era máquinas inteligentes?

Se as máquinas podem competir conosco até na habilidade de pensar, o que então nos torna únicos? E o que nos permitirá continuar a criar valor social e econômico?

Otimização, eficiência e precisão são coisas ótimas, especialmente em empresas e hospitais, mas isso nos faz pensar: como podemos equilibrar a alta tecnologia que está chegando à saúde, à educação, aos negócios, enfim a todas as áreas, com aquelas abordagens mais humanas, mais elevadas que todos nós desejamos experenciar?

Para Rod Falcon, um dos diretores do Institute for the Future (IFTF), a automação irá afetar o que significa ter um trabalho, bem como a forma como esse trabalho pode ser significativo. Lá, no IFTF, eles estão interessados ​​no futuro da simbiose humano-máquina, movendo o debate para um lugar onde nós e as máquinas coevoluiremos. Aqui, ele também questiona:

“O que significa ser humano na era das máquinas, e como podemos coevoluir? Como podemos otimizar essa simbiose?”

Falcon acredita que é preciso pensar em codificar esses sistemas com valores e princípios que garantam equidade e inclusão. Já para Seidman, a única coisa que as máquinas nunca terão é “um coração”. “Os seres humanos podem amar, podem ter compaixão, podem sonhar. Enquanto as máquinas podem interoperar de forma confiável, os seres humanos, de forma exclusiva, podem construir relações profundas de confiança.”

O que Seidman simplesmente está argumentando é que a revolução tecnológica forçará os seres humanos a criar mais valor com os “seus corações”: à medida que as máquinas e os softwares controlam cada vez mais nossas vidas, as pessoas procurarão mais conexões humanas. Para ele, mesmo aqueles trabalhos que possuem um alto componente técnico se beneficiarão de “mais coração”. Ele chama esses empregos de STEMpatia – trabalhos que combinam habilidades de STEM (ciência, tecnologia, engenharia, matemática) com a empatia humana, como aquele médico que pode obter o melhor diagnóstico de câncer usando o Watson da IBM para, em seguida, gerar o melhor tratamento e acompanhamento inter-relacional com o paciente.

Mas, o que pode acontecer quando a inteligência artificial melhorar a criatividade dela?

Essa é uma habilidade que é considerada como uma das últimas fronteiras. E essa é uma questão altamente controversa. Como podemos equilibrar os recursos tecnológicos com os recursos humanos?

Os exemplos de web designers automatizados e robôs que reproduzem obras de arte, apontam para a possibilidade de as máquinas também moverem-se para o domínio artístico criativo, e isso é algo que teremos que enfrentar. Precisamos estar abertos a pensar em como podemos compor uma nova música ou solucionar de forma criativa um problema com a ajuda das máquinas.

Isso significa que nós, seres humanos, precisamos subir uma escala de valor e se concentrar em coisas que as máquinas não podem fazer. Precisamos subir de nível para preencher novas oportunidades.

Talvez a revolução tecnológica esteja nos empurrando para a “economia humana”, com todos aqueles atributos que “ainda” não podem ser programados em softwares, como paixão, personalidade e espírito colaborativo.

“Se líderes, empresas e comunidades, que mesmo utilizando a tecnologia para ganhar vantagem, colocarem a conexão humana no centro de tudo que fizerem, serão os vencedores”, insiste Seidman.

O desafio, segundo Falcon, é pensar sobre o futuro da automação em diferentes escalas: na escala do indivíduo, na escala da empresa e na escala das cidades. Subir e descer a escala nos abrirá novas possibilidades de maneira que talvez não tenhamos visto antes.

Devemos perguntar: Se a tecnologia deveria tornar nossas vidas mais fáceis e melhores, por que todos nós estamos tão exaustos?

Talvez a resposta à sobrecarga tecnológica não seja menos tecnologia, mas, mais humanidade.

Habilidades para o futuro

Enquanto as máquinas estão sendo treinadas para imitar as emoções e as habilidades humanas, nós já temos todas essas habilidades. Enquanto a próxima grande fronteira das máquinas são os “sensores”, o corpo humano é o sensor mais habilidoso. Temos habilidades incríveis, às vezes, totalmente subutilizadas.

Porém, em meio às mudanças desencadeadas pela Quarta Revolução Industrial, estamos testemunhando uma mudança notável nas prioridades das habilidades. No reportFuturo dos Empregos“, publicado em fevereiro de 2016, o Fórum Econômico Mundial (WEF) detectou uma mudança nos requisitos da seguinte forma:

Embora as duas listas pareçam semelhantes, as diferenças entre elas são fundamentais para mudar o mercado de trabalho nos próximos anos. Mesmo que algumas habilidades permaneçam constantes como “resolução de problemas complexos” e “gestão de pessoas“, vemos outras como “controle de qualidade” (número 6 na lista de 2015) e “escuta ativa” (número 9 na lista de 2015) – que estão atualmente em demanda – tornando-se muito menos importante até o final da década.

Por outro lado, até 2020, as habilidades como “inteligência emocional” (número 6 na lista de 2020) e “flexibilidade cognitiva” (número 10 na lista de 2020) deverão ser muito mais críticas para as necessidades do negócio. Esta mudança nas habilidades não é o reflexo do crescente papel de automação que a tecnologia terá nos próximos anos.

Para Murilo Gun, um dos brasileiros que está disseminando as novas habilidades do futuro, é preciso mudar a forma de pensar e de perceber o mundo: “A inteligência artificial e a robótica já estão mudando o mercado de trabalho no Brasil, por isso, é preciso atualizar o software da nossa mente rapidamente, não dá para encarar a tecnologia como ameaça”.

Ele não sugere que a gente desconsidere a razão, a lógica e o pensamento crítico. Mas, que devemos considerar outras habilidades como a criatividade radical, a originalidade, até mesmo uma dose de “loucura”. Um pouco de Kirk em vez de Spock. Complementar a racionalidade das máquinas – em vez de competirmos com ela – com o espírito criativo, com a irreverência e até com ideias irracionais.  Porque isso irá nos diferenciar de forma sustentável e é essa diferenciação que cria valor.

O que Murilo quer dizer é que, à medida que nos aproximarmos de 2020, talvez as melhores habilidades não estejam no domínio da tecnologia. Em vez disso, elas reflitam a necessidade de uma melhor interação entre as pessoas: são as habilidades interpessoais e intrapessoais, além da prática da flexibilidade cognitiva e da inteligência emocional.

A educação para o futuro

Infelizmente, nosso sistema educacional não alcançou a realidade iminente dessa segunda era das máquinas. Tal como os camponeses presos no pensamento pré-industrial, nossas escolas e universidades estão estruturadas para moldar os alunos a serem servos obedientes da racionalidade e para desenvolverem habilidades “sem serventia” para a simbiose que vamos ter que ter com as máquinas daqui pra frente.

Se levarmos a sério o desafio representado pelas máquinas, precisamos mudar isso rapidamente. É claro que precisamos continuar a ensinar a importância da racionalidade baseada em fatos, e como os melhores fatos levam a melhores decisões. No entanto, precisamos ajudar nossos filhos a aprender como trabalhar melhor com computadores inteligentes para melhorar a tomada de decisões humanas e como desenvolver melhor aquelas habilidades que as máquinas nem tão cedo poderão alcançar.

É melhor começarmos agora. Porque a existência e o propósito da humanidade estão em jogo.

Cortesia da imagem da capa: starmind.com

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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