Em 2017, Shuja Haider já tinha nos dado algumas pistas sobre o que estava por vir em seu post The Darkness at the End of the Tunnel: Artificial Intelligence and Neoreaction publicado no site da Viewpoint Magazine. Segundo ele, desde 1995, autores como Barbrook e Cameron já haviam diagnosticado que a contemporaneidade poderia ser descrita a partir de dois aparentes opostos: “De um lado, a utopia da Nova Direita que foi habilmente recuperada no centrismo liberal dos anos 1990. Do outro lado, o individualismo de Ayn  Randian que nos levou mais ou menos à crise financeira dos anos 2000.”

Depois de Bill Gates e Steve Jobs terem dado a largada no Vale do Silício com um liberalismo focado no consumidor, chegou a vez de Elon Musk e Peter Thiel introduzirem o que Haider chama de “autoritarismo tecnológico”. Esse termo, porém, pode também ser substituído por Neoreaction (Neorreacionismo), um movimento que “é mais uma escola de pensamento” porque “se parece com um meme”,  o qual emergiu do “mesmo processo caótico que gerou o coletivo anárquico-político “Anonymous” e que perigosamente se conectou ao experimento intelectual do Basilisco de Roko (Roko’s Basilisk).

De forma resumida, o Basilisco de Roko surgiu após um usuário chamado Roko publicar no fórum LessWrong a suposição de que se formos criar uma superinteligência artificial que seja capaz de trazer os mortos de volta à vida, como acreditam vertentes do transumanismo, então nós deveríamos estar fazendo algo em relação a isso ou então seremos punidos no futuro. A proposição de Roko, porém, parece uma versão futurista do argumento de Pascal, que diz que nós não temos nada a perder se acreditamos em Deus, mesmo que ele não exista, porque, se caso ele existir e nós não acreditamos nele, então seremos punidos, enquanto que sua inexistência não causará dano nenhum, mesmo aos descrentes. Ao mesmo tempo, essa proposição ficou conhecida como Basilisco de Roko porque, assim como a criatura mitológica, ela sugere a existência de uma IA “chantagista” tal como o Basilisco também mataria a todos que olhassem para ele. Ou seja, só de pensar nessa proposição já nos faz cair na armadilha da possibilidade de concretização dela.

A teoria, porém, virou também uma espécie de meme e também parte principal da “cantada” que Elon Musk deu na cantora Grimes, agora sua namorada e mãe de X Æ A-Xi. Já em 2019, a cantora trazia em suas músicas versos como “people like to say that we’re insane/But AI will reward us when it reigns/Pledge allegiance to the world’s most powerful computer. Simulation, it’s the future” na canção We Appreciate Power. “Coincidentemente”, em 2021, Musk também lançou uma nova versão simplificada de seu implante neural Neuralink, que promete nos manter relevantes enquanto espécie diante da IA, algo que o futurista e transumanista Ray Kurzweil já vem trabalhando há algum tempo na área de machine learning como diretor de engenharia do Google.

Mais do que uma profecia autorrealizável, como sugere Haider, nós vemos no Basilisco de Roko o que o filósofo Nick Land chama de “hyperstition”, uma mistura das palavras hyper e superstition e que diz respeito a “algo que é mais do que uma superstição, que está além da fé — uma descrição com o divino.” E o que vem a partir desse tipo de abordagem? O tal do Neoreaction.

Depois de lecionar sobre filosofia continental na Universidade de Warwick e ter fundado ao lado de Sadie Plant a Cybernetic Culture Research Unit (CCRU), Land se tornou uma das principais vozes da filosofia política do aceleracionismo. Em seu livro The Thirst for Annihilation e vários outros textos publicados pelo CCRU, Land não apenas trouxe à tona  a possibilidade de destruir o capitalismo ao levar o sistema ao limite, mas também se tornou interessado em temas como futurismo, ficção científica, ocultismo, cibernética e aceleração tecnocapitalista.

Enquanto Mark Fisher, que foi aluno de Land, escrevia o livro Capitalist Realism baseado na premissa de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, Land acabou se enveredando nos discursos da direita alternativa (alt-right) com a publicação de Dark Enlightenment, que acabou sendo responsável pela ascensão do Neoreaction  ou NRx, também descrito como “uma doutrina política esotérica” nas palavras de Haider. Isso tudo ficou ainda mais controverso quando, no começo de 2017, Land se organizou com o jornalista supremacista branco Peter Brimelow e Bret Stevens para uma conferência que, no fim das contas, acabou sendo encerrada por protestos contra a galeria de arte londrina LD50, onde o evento ocorreria. Mas esse era só o começo do que Haider chama de “genealogia da amoralidade”, da qual pessoas como Milo Yiannopoulos e Michael Anissimov fazem parte, por exemplo, com livros como Idaho Project, que Haider descreve como “um manifesto nacionalista branco que integra futurismo, sobrevivencialismo e um senso comum de propósito por ação concreta.”

Só que quando Land acreditou que poderia implodir o capitalismo ao forçá-lo ao extremo, Benjamin Noys viu que, na verdade, o filósofo estava fazendo uma leitura incorreta de Marx a partir de um olhar “híbrido de determinismo tecnológico e catastrofista, cuja ideia licenciada é a de que a acumulação de capital gera e exacerba condições que levam à dissolução, então é a função dos radicais exigir que o capital seja totalmente realizado e, por consequência, negativado. De maneira geral, a teleologia futurista desse termo demonstra a base para o alinhamento com a ideologia da Singularidade, que vê no crescimento exponencial da tecnologia a chave para a próxima etapa da espécie humana.” (apud Haider, 2017)

No fim das contas, Land junto de Curtis Yavin (alias Mencius Moldbug) lançaram um novo texto a partir de um ensaio escrito por Peter Thiel, no qual o empresário dizia que “não acredit[ava] que a liberdade e a democracia são compatíveis”, de modo que “uma fuga da política em todas as suas formas” se daria através da vocalização ou do abandono: “a vocalização é a participação no processo democrático que pode levar à reforma, enquanto que o abandono é a retirada para uma sociedade distinta”, explica Haider. É aí onde encontramos conexões com movimentos como o Anarcocapitalista, “uma filosofia política e teoria econômica que advoga pela eliminação de Estados centralizados a favor de um sistema de propriedade privada reforçada por agências privadas, livre mercado e a interpretação da direita libertária de autopropriedade, que estende o conceito para incluir a propriedade privada como uma parte do próprio ser.” 

Assim como na ficção científica Snow Crash de Neal Stephenson, Land e demais visualizam um futuro de governos corporativos, uma sociedade administrada como uma empresa, liderada por um CEO, assim como o Trump foi para os Estados Unidos e Doria se propõe para São Paulo. Em um cenário como este, é aceito que, “em vez de exigir que o governo resolva problemas, os clientes insatisfeitos estão livres para levar seus negócios para outro lugar.” Se não chegarmos a esse ponto na Terra com projetos como a Smart City do Google em Toronto ou com a recente oferta feita pelo governador de Nevada, pode ser que Musk aproveite para tornar esse sonho realidade em sua caravana para Marte. 

Durante a crise da COVID-19, o Brasil demonstrou uma queda brusca de confiança nas instituições. Mesmo um ano depois do início da pandemia, seguimos afetados pelas idas e vindas de aprovações e compras de vacinas, bem como todos os trâmites da logística de vacinação. Se o poder público não é capaz de garantir o bem estar social, então é compreensível que algumas pessoas se voltem às iniciativas privadas, porém delegar esse tipo de função a iniciativas que têm como princípio o lucro é subverter o mecanismo do Estado que prevê a governança da população e a saúde (em suas concepções mais amplas, seja ela física ou econômica) do país. Contudo, o que já sabemos é que entre liberações e rachadinhas, pedaladas fiscais e trocas de favores, o poder público já está funcionando a partir de uma lógica empresarial e mercadológica, o que demonstra ainda mais a urgência e a latência do problema. 

Diante desse contexto, de fato, fica mais fácil se inscrever na caravana de Musk para Marte ou nos projetos de preservação criogênica e ciborguismo, mas, para isso, é necessário que você tenha (muito) dinheiro.

Ilustração da capa: Tishk Barzanji

Lidia Zuin

Lidia Zuin é Jornalista, pesquisadora, professora e futuróloga. Mestre em semiótica, doutora em artes visuais e escritora de ficção científica. Como pesquisadora acadêmica, possui textos publicados em periódicos e livros.

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