Em 1970, Milton Friedman, Nobel em Economia e considerado principal nome da Escola de Chicago, afirmou que priorizar a responsabilidade social ao invés da maximização do lucro era o mesmo que praticar socialismo, “uma doutrina fundamentalmente subversiva”.

Friedman, defensor contumaz do livre mercado, acreditava que a grande virtude dele [livre mercado] é que não liga para etnia das pessoas, não liga para qual religião elas fazem parte, só liga para se elas podem criar algo que você quer comprar. “Esse é o sistema mais eficiente que já vimos, que permite que pessoas que se odeiem negociem para ajudar umas às outras”, escreveu em “Why Government Is the Problem” em 1993. Na realidade, esse livre mercado exaltado por Friedman, nunca ligou a mínima para as pessoas. No entanto, essa crença guiou os mercados por décadas.

Friedman estava errado? Um time de Harvard, liderado por George Serafeim, tem certeza que sim. E eles pretendem revolucionar a maneira como as empresas “ligam para as pessoas” e também medem seu sucesso e desempenho.

Enfim, chegamos à era da “transparência do impacto”, a qual começa a mudar completamente as metas para empresas e investidores. Tecnologias como IA e Big Data se combinam para medir e avaliar o impacto corporativo. Agora, impacto e lucro definem as novas regras do jogo. É só uma questão de tempo para atingir massivamente as empresas brasileiras.

Vamos pegar o exemplo das companhias aéreas internacionais. A maioria é lucrativa (pelo menos eram até antes da queda do turismo com a pandemia). Mas, pelos cálculos de Serafeim, esse lucro pode ser apenas “uma miragem”. No caso da Lufthansa e da American Airlines, se fossem contabilizados seus custos ambientais de US$ 2,3 e de US$ 4,8 bilhões, respectivamente, as duas empresas não teriam sido lucrativas em 2018. Essa conta foi feita pela Impact-Weighted Accounts Initiative (IWAI) iniciativa que tem como missão criar cálculos e demonstrações contábeis que reflitam o desempenho financeiro, social e ambiental de empresas, medindo de forma transparente os seus impactos para guiar tomada de decisões de investidores e de gestores.

A análise de grande volume de dados da IWAI, por meio das lentes de impacto, traz uma nova perspectiva sobre a verdadeira lucratividade das empresas. Fica evidente que muitas empresas estão gerando custos ambientais e sociais que excedem seu lucro (EBITDA). A IWAI mapeou 1.800 empresas e descobriu que das 1.694 que tiveram EBITDA positivo em 2018, 252 delas (15%) teriam seu lucro zerado pelos danos ambientais que causaram, enquanto 543 companhias (32%) veriam seu EBITDA reduzido em pelo menos 25%.

A Intel é um exemplo positivo que Serafeim e Ronald Cohen citam em seu artigo para a Harvard Business Review sobre os avanços da contabilidade ponderada por impacto. Eles creditaram à empresa US$ 6,9 bilhões em 2018 por remunerar bem os funcionários e por impulsionar economias locais onde operam. No entanto, deduziram US$ 3,1 bilhões pelo fato de ter poucas mulheres contratadas, por haver dificuldade de ascensão na carreira e pela falta de atenção à saúde dos trabalhadores. “A Intel pode aumentar esse impacto melhorando o nível de diversidade e oferecendo oportunidades iguais para as minorias raciais e para as mulheres progredirem dentro da empresa”, explicam.

A transparência do impacto terá pelo menos três consequências. Primeiro, em vez de cobrar impostos dos cidadãos para remediar impactos negativos causados pelas empresas, como poluição e produtos que causam obesidade e problemas de saúde, os governos poderão tributá-las diretamente pelos danos que criam. Também poderão propiciar àquelas que tenham impacto positivo – por meio de seus produtos, operações e práticas trabalhistas – incentivos fiscais, redução de impostos e subsídios. Em segundo, investidores poderão avaliar os impactos ambientais e sociais em suas análises de investimento: empresas com maior impacto negativo geram menos interesse para o investidor, o que reduz sua valorização no mercado de ações e aumenta seu custo de capital. Em terceiro, a transparência permitirá que clientes e consumidores – indivíduos ou empresas – norteiem suas escolhas de compras, assim como trabalhadores alinhem suas expectativas de carreira com a responsabilidade demonstrada das empresas.

O objetivo da Serafeim é fazer o que nunca ninguém fez: atribuir um valor monetário ao impacto que produtos e operações criam nas pessoas e no planeta, adicionando ou subtraindo esses impactos dos resultados financeiros das empresas. As métricas, portanto, podem auxiliar na definição de incentivos fiscais pelo governo, na tomada de decisões de investimento, ser um fator na avaliação de crédito e na obtenção de recursos e ainda, pesar na preferência ou repulsa do consumidor e do profissional que a empresa quer contratar.

A análise vai além de medir gases de efeito estufa ou precificação de carbono. Seguindo o ditado, “o que é medido, é gerenciado“, a meta de Serafeim é avaliar fatores intangíveis e não financeiros. Utilizando tecnologia de aprendizado de máquina, ele e sua equipe avaliam produtos e serviços em fatores que englobam, por exemplo, o quão acessíveis são, o impacto que têm na saúde e na segurança e capacidade de reciclagem.

Essa nova contabilidade significa cobrar das empresas de cartão de crédito os custos médicos relativos à depressão causada pelo endividamento ou tornar os fabricantes de alimentos responsáveis ​​por doenças relacionadas à obesidade. Seus cálculos também creditam montadoras que zelam pela segurança de seus veículos e empresas que contratam pessoas em locais com alto índice de desemprego. Em relação ao emprego, eles avaliam questões como valor dos salários, proporção de mulheres negras em cargos elevados e assédio sexual.

“Sem monetizar os impactos, ficamos na ilusão de que as empresas não geram impacto. As empresas que apresentam grandes lucros podem estar gerando imensos impactos negativos na sociedade”, alerta Serafeim.

No ano passado, eles identificaram 56 organizações no mundo todo que praticam algum tipo de contabilidade ponderada por impacto. A lista cresce a cada semana. A Danone, empresa francesa em alimentos, publicou recentemente os ganhos por ação ponderados por seu impacto ambiental. O banco holandês ABN Amro Bank, a empresa de telecomunicações queniana Safaricom Plc e a sueca Volvo, também quantificaram alguns de seus impactos; a TPG, empresa de private equity, trabalhou na estimativa do valor financeiro do bem social e ambiental dos seus investimentos.

O investimento de impacto cresceu de US$ 8 bilhões em 2012 para US$ 715 bilhões em ativos no final de 2019, de acordo com a Global Impact Investing Network. E muitas empresas estão adotando seus princípios. Em outro artigo meu, mencionei que a BlackRock, maior administradora de ativos do mundo, comunicou este ano que tornaria a sustentabilidade uma das principais razões de investimento. A Microsoft planeja investir US$ 1 bilhão em tecnologias de redução de carbono e o Citigroup investirá a mesma quantia para reduzir o gap racial de riqueza.

Remodelando o Capitalismo

O trabalho e as pesquisas de Serafeim e de seu time põem em xeque a forma de medir o desempenho dos negócios – principalmente o valor para o acionista, popularizado no século XX por Friedman – e ganham relevância à medida que as empresas cada vez mais buscam formas de impulsionar a sociedade que ainda sofre com o racismo, com o abismo crescente entre ricos e pobres, e com os danos à natureza. E a pandemia torna essa busca ainda mais urgente, já que exacerba a desigualdade, intensifica a necessidade de uma recuperação justa e sustentável e acelera a mudança para economias baseadas em impacto.

Em uma sociedade livre, Friedman considerava que a única responsabilidade social de uma empresa seria “investir seus recursos e envolver-se em atividades que aumentem os lucros, desde que permaneça dentro das regras do jogo, ou seja, se engaje em concorrência livre e aberta, sem engano ou fraude.”

O trabalho de Serafeim é justamente possibilitar que o capitalismo realmente tenha mercados livres e justos. No artigo da HBR, ele e Cohen projetam que, “a transparência do impacto vai remodelar o capitalismo. (…) Ela vai redefinir o sucesso, de forma que sua medida não seja apenas o dinheiro, mas o impacto positivo que criam”. Eles defendem que transparência e responsabilidade andam de mãos dadas.

O fato de não existir uma métrica confiável e eficaz de impacto, como não havia antes, obscurece a responsabilidade das empresas pelos danos que causam. Reescrever as regras contábeis computando o impacto pode catalisar uma mudança no comportamento corporativo.

Na nova era da transparência do impacto, empresas vão precisar começar a medir e relatar os resultados de suas iniciativas. “Quanto antes os governos exigirem a publicação de IWAs – e alinhar empresas e investidores ao esforço necessário para combater as mudanças climáticas, a desigualdade e a COVID-19 –, melhor será para nossa sociedade” acreditam Serafeim e Cohen. “Nesse ínterim, cada um de nós tem um papel valioso. Se você lidera uma empresa, meça e comunique seu desempenho e impacto. Se você for um investidor, exija transparência do impacto das empresas nas quais você investe para avaliar oportunidades e riscos. Se você for um regulador ou funcionário do governo, determine a publicação de contas ponderadas pelo impacto e considere impostos e outros incentivos para motivar empresas e investidores. E uma vez que somos consumidores, vamos comprar produtos e serviços de empresas que geram impacto positivo para melhorar o nosso planeta e a sociedade”, recomendam.

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Fontes principais: How to Measure a Company’s Real Impact (HBR); How Wrong Was Milton Friedman? Harvard Team Quantifies the Ways (Bloomberg); Social-Impact Efforts That Create Real Value (HBR); e The Future of ESG Is … Accounting? (HBR)

Crédito da imagem da capa: Marlies Plank

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Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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