Transformações culturais que poderiam levar décadas estão acontecendo em semanas. A desejada transição para uma sociedade pós-carbono, por exemplo, ganha um novo tom de urgência com a pandemia do coronavírus. Podemos ficar otimistas? Sim, podemos. Há evidências fortíssimas de que essa transição irá acontecer mais breve do que tínhamos imaginado.

A pandemia surgiu em um momento em que muitos sistemas globais – finanças, comércio, governança global, biosfera, dentre outros – estavam vulneráveis. A crise criou um ambiente “hiper turbulento”, caracterizado por dois fatores inter-relacionados: de um lado, a complexidade, a incerteza e taxas exponenciais de mudança coincidindo do outro lado com a incapacidade de muitos líderes globais, nacionais e corporativos de se adaptarem. As vulnerabilidades “intersistêmicas” que coincidem com esse momento atual criam “tempestades perfeitas” e apresentam grandes desafios.

Justamente porque estamos atônitos diante de tantas incertezas, precisamos pensar mais sobre o futuro, particularmente entender algumas correlações e detectar alguns sinais que podem ganhar impulso e “tornarem-se virais”. Investir algum tempo nisso ajuda você a se antecipar sobre o que pode acontecer no mundo e nos mercados.

Líderes mundiais começam a ficar atentos sobre o risco climático e uma possível crise, ainda mais profunda, em um horizonte próximo. A pandemia pode ter antecipado o ponto de inflexão temido pelo economista e banqueiro Mark Carney em 2015: “Uma vez que a mudança climática se torne uma questão definidora da estabilidade financeira, talvez já seja tarde demais”.

Esse ‘tarde demais’ pode estar ‘próximo demais’: ilhas de calor ganharam notícia em junho de 2019 com as temperaturas extremas na França que atingiram 45,8 graus Celsius. Migrações em massa em função das mudanças climáticas podem ser comuns nas próximas duas décadas. Quando o nível dos oceanos sobe, áreas podem se tornar inabitáveis, havendo mais “refugiados do clima”. Provavelmente, essas pessoas não terão suporte financeiro e de cuidados com a saúde. Mudanças climáticas e doenças também estão correlacionadas. À medida que o planeta esquenta, as estações se prolongam e muitas doenças ameaçadoras, como malária, dengue, chikungunya e vírus do Nilo Ocidental eclodem. A poluição e o calor são dois fatores que diminuem a imunidade humana e facilitam a expansão virótica. “Um mundo em constantes mudanças, sem calcular os efeitos delas é o lugar ideal para novas doenças e pandemias. Esse é o preço que estamos pagando por priorizarmos tanto o desenvolvimento econômico“, afirma Kate Jones, pesquisadora de biodiversidade da University College London, especialista em morcegos e que fez parte de um grupo de pesquisa que identificou 335 doenças que surgiram desde 1960, com 60% delas vindas de animais.

Cidades podem ficar submersas em 2050, mas os valores dos “ativos” podem afundar muito antes disso e é aqui onde começa uma narrativa mais positiva.

Há evidências de que um mundo pós-industrial verde possa emergir dessa crise. As iniciativas ambientais, sociais e de governança do capitalismo de stakeholders (ESG) dominam essa agenda. No meio da crise da COVID-19, os “donos de ativos” no topo da hierarquia de investimentos – bancos, casas de investimentos globais, seguradoras e fundos de pensão – estão aumentando a pressão sobre as empresas para que cumpram as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

BlackRock – que é a maior administradora de ativos do mundo – e outras grandes gestoras de ativos, disseram que irão “punir” empresas que deixarem de vincular os salários dos executivos a ações e resultados em relação às mudanças climáticas, independentemente da pandemia. Como Larry Fink, CEO da BlackRock, colocou recentemente: “estamos à beira de uma nova e essencial configuração das finanças“, sinalizando que irá pausar investimentos em empresas que não agirem. Algumas das maiores instituições financeiras do mundo pararam de investir na produção de petróleo na província canadense de Alberta, lar de uma das reservas de petróleo mais extensas e também mais sujas do mundo. No início de 2020, a Allianz, a Swiss Re, a Munich Re e a Zurich anunciaram cortes nas suas subscrições e exposições a investimentos em combustíveis fósseis, alinhando-se aos ODS, além de reduzir risco de crédito e de responsabilidade. Net Zero Asset Owner Alliance, grupo de investidores institucionais que representam mais de US $ 4,6 trilhões em ativos sob gestão (AUM), comprometeu-se com a “mudança irreversível para uma economia net-zero, resiliente e inclusiva”

Instituições financeiras no mundo todo estão sofrendo pressão crescente de acionistas e de ativistas para que retirem dinheiro de indústrias de alta emissão. Ao mesmo tempo, estão acordando para o fato de terem subestimado o risco da mudança climática em suas carteiras. Uma série de estudos tem mostrado que a ‘boa governança’ é um indicador crucial de classificações de crédito e de resiliência na crise. Fundos especializados em governança superaram os principais mercados financeiros. O mesmo acontece com empresas com fortes credenciais ESG e ODS.

Em outras palavras, a comunidade de investimentos está moldando um ambiente de negócios pós-COVID-19 e pós-combustível fóssil. E a mensagem é clara para os líderes corporativos para que reinventem seus negócios.

Na Europa, 180 líderes empresariais, formuladores de políticas e pesquisadores instaram a UE a criar um pacote de recuperação em torno do Green Deal. O governo espanhol criou um projeto de lei que proíbe novos projetos de carvão, petróleo e gás, estabelecendo um esforço de recuperação em tempos de COVID-19. No Canadá, mais de 320 signatários, representando 2.100 empresas, assinaram um plano de recuperação e resiliência. Talvez mais surpreendentes sejam as indústrias intensivas em carbono que confirmaram que continuam a descarbonizar apesar da pandemia, como a BP, Shell, Daimler e Rio Tinto.

O mundo sabe que precisa fazer a transição de combustíveis fósseis para evitar uma catástrofe ainda maior em mudanças climáticas. O coronavírus acelera esse mundo pós-carbono ao desencadear também uma crise existencial para a indústria de petróleo e de gás. A mercadoria mais valiosa do mundo está desencadeando uma das mais devastadoras desacelerações nos 150 anos de história da indústria de combustíveis fósseis. A Whiting Petroleum, em abril, declarou falência após à queda dos preços do barril que caíram entre 60% e 70% desde o início deste ano, e à queda acentuada da demanda causada pela pandemia. É a primeira empresa americana do setor a ser forçada a cessar as atividades. Analistas afirmam que será “a primeira empresa do efeito dominó” forçada a fechar.

Descarbonizar a economia é passo fundamental para que o mundo consiga cumprir as metas previstas no Acordo de Paris, compromisso firmado entre 195 países para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Essa década de 20 será o momento para implementar soluções voltadas para conter o aquecimento global. No Brasil, serão necessárias soluções para conter as emissões, principalmente oriundas do desmatamento, visto que o país tem o compromisso de, até 2025, reduzir em 37% as emissões de GEE no meio ambiente, em relação a 2005.

O que a COVID-19 faz é reafirmar a necessidade de uma economia muito mais cuidadosa e consistente no combate às mudanças climáticas; não uma economia que remonta ao passado, na qual os fatores ambientais, poluição ou problemas que a economia fóssil representa poderiam ser vistos como um impacto de curto prazo.” – Teresa Ribera, vice-presidente do governo espanhol e ministra da Transição Ecológica, em entrevista para Ethic.

Uma pesquisa recente da Ipsos Mori mostra que 71% da população global entende que a mudança climática é tão grave quanto uma crise como a da COVID-19, e 65% acha que a primeira deve ser priorizada na recuperação econômica.

As crises são um momento de disruptura. Em meio à pandemia, temos a escolha entre recuperar uma economia intensiva em carbono que nos levou à degradação ambiental ou acelerar a transição para um futuro que prioriza a saúde das pessoas e do planeta. Hoje, esse futuro pode estar mais próximo do que imaginamos.

Crédito da imagem da capa: OAS1S™

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O impacto da pandemia, a partir de uma perspectiva sistêmica evolutiva, trará legados positivos e um aprendizado histórico. Dependendo das nossas escolhas podemos não apenas superar o vírus, mas emergir um mundo melhor. Quais os desafios? Quais os movimentos? Quais as oportunidades? Acesse o Mapa.

Lilia Porto

Economista, fundadora e CEO do O Futuro das Coisas. Como pensadora e estudiosa de futuros tem contribuído para acelerar os próximos passos para organizações e para uma sociedade mais justa e equitativa.

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