O divertido Geek’s Guide to the Galaxy – um dos mais conhecidos e acessados podcasts sobre ficção científica – trouxe, no episódio 325, Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e Homo Deus.
Harari, que é fã de ficção científica e tem um capítulo inteiro sobre esse gênero, em seu novo livro 21 Lições para o Século 21, revelou sua visão sobre as Sci-fi, de que a maioria delas se concentra em narrativas fantasiosas e extravagantes demais.
“Hoje, pra mim, a ficção científica é o principal gênero literário”, disse ele. “Isso molda a compreensão do público sobre assuntos como inteligência artificial e biotecnologia, que provavelmente mudarão nossas vidas e a nossa sociedade mais do que qualquer outra coisa nas próximas décadas”.
Sim, a ficção científica em geral está associada à ficção fantástica e ao terror. Mas também é um estilo literário que lida com a ciência, tanto real quanto imaginada, e seu impacto na sociedade. Tem um papel importantíssimo para esclarecer conceitos e ideias difíceis de explicar. Principalmente, abrir as nossas cabeças para novas possibilidades antes não imaginadas. Já falei sobre esse assunto aqui. Veja também aqui os principais gêneros da Sci-fi.
A ficção científica é um entrelaçamento de romance, ciência e profecia.” – Hugo Gernsback.
Harari, no entanto, acredita que o poder desse gênero poderia ser utilizado para nos ajudar a lidar com situações que só agora estamos vivenciando e nos preparar melhor para o futuro.
Um exemplo do que ele quis dizer:
Até bem pouco tempo atrás, a nossa vida dividia-se entre passar um tempo na escola e na universidade, para em seguida, entrar no mercado de trabalho. Este modelo bifásico começou a ficar obsoleto. Hoje, para nos mantermos relevantes temos que continuar a vida toda aprendendo e reaprendendo (como diz Tofler), nos reinventando uma dúzia de vezes, se for preciso. Isso criar imensos desafios psicológicos, pois a mudança é sempre estressante. No meu caso, reinventar-se aos 40 anos pode ser algo bastante difícil. E se for preciso reinventar-me novamente aos 50? E mais uma vez aos 60? A escola não prepara a gente para uma vida tão mutante e tão fluída.
Você seria capaz de se reinventar quatro, cinco, seis vezes durante a sua vida?
E se fosse produzida uma Sci-fi que explorasse a situação de uma pessoa que, aos 40 anos, abrisse um novo negócio e depois de um ano este ficasse obsoleto com o surgimento de uma nova tecnologia? Ou após assumir um trabalho completamente novo e desafiador para ela, de repente perdesse o emprego por causa da automação, tendo que começar tudo da estaca zero?
Um filme que abordasse assuntos “mais quentes” como o impacto da inteligência artificial (IA) no desemprego, e como a protagonista encontrou caminhos alternativos para reinventar-se seria inspirador.
Exatamente pelo fato da ficção científica desempenhar um papel tão importante na formação da opinião pública, Harari considera que precisamos de mais filmes e narrativas que lidem com questões mais realistas, aumentando a conscientização das pessoas.
Claro que as Sci-fi nos divertem, mas, e se elas jogassem mais luz para os grandes problemas do século XXI? O que faremos quando a IA tirar milhões de pessoas do mercado de trabalho? Como é que iremos usar o imenso poder da engenharia genética? Como é que vamos lidar com o aquecimento global?
Hoje, se você quiser entender melhor o impacto da IA sobre os empregos, tem que ler artigos na Science, na Nature, ou mesmo aqui no O Futuro das Coisas. Ficcionistas estão perdendo oportunidades de explorar essas questões.
Se você lê livros e assiste filmes sobre IA, já deve ter observado que a trama principal gira em torno do momento em que o computador ou o robô ganha consciência e começa a ter sentimentos (como na série Westworld, por exemplo). “Acho que isso desvia a atenção do público dos problemas realmente importantes para coisas que provavelmente não irão acontecer tão cedo”, disse Harari no podcast.
“Penso que grande parte da confusão entre inteligência e consciência é culpa dos filmes de ficção científica. Muitos se concentram na forma como um computador ou um robô inteligente ganha consciência e, depois, ou o cientista se apaixona pelo robô ou o robô tenta matar os humanos, ou as duas coisas acontecem ao mesmo tempo. Isto está muito longe da realidade. Na maior parte desses filmes, o robô é uma mulher e o cientista que se apaixona é um homem. Penso que estes filmes não são sobre o medo humano dos robôs inteligentes. São sobre o medo masculino de mulheres inteligentes e não sobre a inteligência artificial”, disse Harari nessa outra entrevista.
Sci-fi e Sci-fact
Suponhamos que o Brasil proíba a fabricação de super soldados autônomos (robôs que usam a IA). De que servirá isso se, ainda assim, a Rússia produzir robôs assassinos?
É preciso que mais e mais pessoas se conscientizem dos piores cenários possíveis, e que é necessário usar essas tecnologias principalmente para o bem.
“Que tipo de relações entre pais e filhos teremos quando os pais puderem viver 200 anos? Sim, quando eu tinha 30 anos eu tive um filho, e agora ele tem 170 anos”, especula Harari, que considera esse um tema maravilhoso para um filme de ficção científica – sem rebeliões de robôs, sem apocalipse, sem um governo tirano – apenas um filme singelo sobre a relação entre mãe e filho quando essa mãe tem 200 anos e o “filhinho” 170 anos.
Há muitos cenários de ficção científica que nunca se vão se materializar porque a sociedade pode agir para se proteger e regular tecnologias perigosas. O que Harari defende é que em vez de ficar abordando coisas que não fazem sentido científica e tecnologicamente, seria mais útil e interessante discutir coisas mais plausíveis em vez de ficar alimentando medo ou utopia.
Por estar em formato narrativo, a ficção científica nos permite obter licença artística para reimaginar o mundo. O nosso mundo. A nossa vida e o nosso futuro.
Crédito da imagem da capa: Austin Neill na Unsplash
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