Em 1965, o criptólogo e matemático britânico Irving John “Jack” Good especulou que a existência de uma inteligência artificial (ou algo similar, como a existência de sistemas autônomos por meio de algoritmos) poderia provocar “explosões de inteligência” na humanidade.
Com base nos ainda parcos avanços computacionais de sua época, Good analisou como o avançar da informática possibilitava a criação de constructos cada vez mais elaborados para diferentes setores sociais. Portanto, quanto maior o poder informático de uma civilização, maior seria a possibilidade para encontrar soluções de problemas apresentados ao homem. Tal cenário representaria uma sucessão infindável e além da capacidade de assimilação humana na produção tecnológica, sendo conhecida por teóricos como Singularidade Tecnológica.
O conceito foi apresentado por John Von Neumann quinze anos antes das “explosões de inteligência” propostas por Good, sendo um cenário no qual a tecnologia teria uma escalada em nível exponencial tão acelerada, que se tornaria impossível o ser humano alcançar seu progresso. Ao menos, é o que teóricos da Futurologia apontam baseando-se na Lei de Moore, a qual correlaciona a capacidade de inserir cada vez maior capacidade de processamento dentro de espaços cada vez mais reduzidos, provocando a cada dois anos o dobro da capacidade de processamento de dados anteriormente alcançada pela tecnologia.
Isso significa que, se você comprar hoje o computador mais poderoso do mundo, em dois anos, outro modelo terá o dobro da capacidade de processamento de dados. Porém, isso ainda é relativamente distante da Singularidade Tecnológica, uma vez que ainda se pode acompanhar e até mesmo prever futuras capacidades de processamento.
Mas será que conseguimos prever essa etapa do progresso tecnológico?
Para Ray Kurzweil, em The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, sim: nós alcançaremos tal etapa do progresso em algum momento entre 2045 e 2070; não necessariamente por meio de inteligências artificiais propriamente ditas, mas mediante tecnologias de processamento de dados cada vez mais potentes. Entre elas, a nanotecnologia aplicada à computação, o que já rendeu inclusive referendo no Congresso dos EUA com direito a extenso relatório acerca da ética por trás do uso de tal técnica.
Porém, quando se fala em Singularidade Tecnológica, é importante observar algo:
Considerando que cada tecnologia evolui numa velocidade diferente, bem como passa por, via analogia, diferentes “explosões de inteligência”, é possível afirmar que cada tecnologia vinculada à informatização passará por sua singularidade num período diferente. E nem sempre a “explosão de inteligência” significará algo positivo.
Para entender isso, por “inteligência”, vamos nos concentrar sob uma ótica aplicada com base em Jacques Derrida ao afirmar que “não existem fatos, apenas narrativas”. Ou seja, mesmo o aprofundamento em conhecimentos equivocados é um exercício de inteligência. Este é, inclusive, um conceito essencial para a compreensão do que é a Pós-Verdade.
Eleito o termo do ano em 2016 pelo Dicionário de Inglês de Oxford, a chamada Era da Pós-Verdade é o período no qual os fatos objetivos têm menos peso diante da opinião pública do que narrativas que criem apelos emocionais. Portanto, é a definição da característica do século XXI de ser guiada mais por narrativas preconcebidas do que pela orientação com base em fatos concretos.
Pode parecer estranho que, numa sociedade cada vez mais integrada à virtualização, as chamadas fake news se proliferem com força cada vez maior. Porém, é importante ressaltar que a assimilação de informações ocorre a partir da relação entre o discurso e o contexto de quem o recebe. Tal relação sofrerá as implicações dos limites dos canais de comunicação, que variarão conforme as transformações culturais.
As relações entre discurso e enunciatário (quem recebe a mensagem) são reconstruídas de acordo com as mudanças que ocorrem no meio ambiente, envolvendo também o próprio ambiente da comunicação. Não à toa, empresas no ramo da Publicidade se preocupam em orientar cada anúncio ou propaganda a um público distinto, segmentado por algoritmos; e, não à toa, o WhatsApp se tornou um dos maiores canais de desinformação, bem como o Facebook, desde o escândalo envolvendo a Cambridge Analytica, que envolveu até mesmo deliberadas estratégias de desinformação para beneficiar diferentes políticos ao redor do mundo.
Mas se é possível criar deliberadamente narrativas de desinformação, e se esse poder se torna cada vez mais acessível a mais grupos, segmentando cada narrativa a um grupo específico a fim de se beneficiar de todos, como definir o que é real?
E embora tal dilema sobre algoritmos criando falsas informações geralmente se centre no campo político, é necessário levá-lo também ao meio corporativo. Pois, uma vez que, numa sociedade capitalista, a produção e comércio se deem sob a lei de oferta e demanda, uma narrativa artificialmente criada, se direcionada aos públicos-chave certos, não poderia criar falsas necessidades de consumo?
A resposta é obviamente positiva, bastando observar demandas artificiais pregressas à internet, como os jornais sensacionalistas popularmente chamados de “pinga-sangue”, buscando, por exemplo, fomentar a compra de armas de fogo e dispositivos de segurança, ao mesmo tempo em que já beneficiavam políticos com tais pautas por se alinharem a empresários de tais setores. Na internet, a diferença está na velocidade e intensidade em que isso ocorre, muitas vezes prevendo comportamentos e, consequentemente, induzindo-nos a atitudes sem que percebamos; tudo por meio de direcionamento de informação através de algoritmos.
O setor religioso, muitas vezes assumindo em certas alas a dinâmica do setor corporativo por meio da Teologia da Prosperidade e da participação política visando lucro, também se vale disso ao apresentar notícias e pautas equivocadas que demonstram desorientação perante às rápidas mudanças sociais. Por vezes, incitando, através de notícias falsas, a homofobia, transfobia e até mesmo xenofobia. Tal comportamento, tendo como par figuras políticas com essa agenda, cumpre papéis já previstos pelo filósofo camaronês Achille Mbembe:
“As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.”
Isso não quer dizer, é claro, que qualquer empresa, partido político ou vertente religiosa cometerá tais abusos contra a consciência; mas que o impacto causado por indivíduos e instituições pode criar profundas modificações e até mesmo traumas sociais. Entre eles, fake news acerca de vacinas, criminalização da imagem de figuras políticas de oposição, pesquisas enviesadas como forma de validação de narrativas e até mesmo acerca do formato da Terra com base na fé e falsas evidências para se rebater argumentos técnico-científicos, entre outros exemplos.
Tal senso de desorientação se torna gradualmente mais profundo, ao ponto de usuários ostensivos da internet frequentemente não saberem mais distinguir fato de ficção; muitas vezes, tomando até mesmo piadas como fatos que corroborem com suas visões pregressas de mundo. Isso não é raro, qualquer um pode se tornar vítima de tais narrativas, e ninguém deveria se sentir culpado por isso.
A tirinha usa o enunciado “Penso, logo existo”, do filósofo e matemático francês René Descartes, para ironizar o conceito de pós verdade. (Crédito: Shovel/ Curso ‘Vaza, Falsiane’/Reprodução)
Afinal, como distinguir fato de ficção quando a verdade se perde em meio à saturação de toda sorte de informações?
A resposta para isso ainda é nebulosa. Mas uma coisa é certa: ainda vale a sabedoria popular de que “mentira tem perna curta”. Dia após dia, diferentes narrativas, artificialmente criadas ou gestadas pelos anseios coletivos, vêm sendo desmontadas ao se chocarem contra a realidade.
A sociedade brasileira já começa a aprender a checar e regular conteúdos disseminados digitalmente, tal qual diversos países já fazem com a imprensa tradicional, ao checarem a veracidade do que é passado ao público.
Para além da ética, ganha credibilidade (seja um político, empresário, sacerdote, artista ou qualquer outra figura pública) quem, na busca por checar a veracidade do que diz, busca as melhores fontes e se mantém sem disseminar desinformação em prol do próprio lucro.
Prever o que será a Singularidade no futuro é um exercício difícil. Certo é, porém, que as mudanças de paradigmas da sociedade ocorrerão de forma cada vez mais acelerada. Para se ter dimensão dessa aceleração social, enquanto J.K. prometia um progresso de 50 anos em 5, a Singularidade Tecnológica, para Ray Kurzweil, em seu ápice, certamente fornecerá 5 bilhões de anos de informação em apenas 5 minutos.
Essa aceleração poderá significar um aprofundamento do senso de desorientação, casa não haja regulação no uso de algoritmos, inteligência artificial e tecnologias da informação. Caso haja, podemos estar às portas de uma verdadeira revolução nas dinâmicas sociais por meio da tecnologia, como acreditavam ser possível os positivistas na segunda metade do século XIX. Do contrário, caso não haja uma sistemática moderação, estaremos condenados a opressões cada vez mais incertas e até mesmo menos perceptíveis.
Ilustração da capa: Matt Murphy
O cenário das narrativas falsas travestidas de verdades seguirá se especializando. Daí que toda alternativa a isso recai sobre a escola e iniciativas que se propõem a fornecer elementos para a reflexão. Me parece que a escola ainda ensina de forma compartimentada – cada disciplina fica em uma gaveta longe das outras – e isso não colabora para um ambiente de debate e reflexão. Um alento são iniciativas da sociedade que se esforçam para provocar esse debate.