De antemão, fica o alerta de que esse é um texto reflexivo e não apenas informativo. Ele terá tanto mais valor quanto formos capazes de enxergá-lo como espelho e não como luneta.

Nos últimos meses, surgiram artigos e declarações que apresentam um balanço desta última volta do planeta Terra ao redor do Sol, condenando-o como se 2020 fosse um tal de “you know who” ou “aquele cujo nome não se deve pronunciar” – em uma versão sem magia de Harry Potter.

Em geral, a abordagem é sobre o encolhimento dos mercados, o aumento do desemprego, disparidades sociais, o avanço da COVID-19, o número de mortes, negacionistas, “antivacs” etc., etc.

Para reforçar a crítica aos últimos 365 dias, os títulos são do tipo “2020 – o ano que não existiu”, ou alguma outra chamada “caça-likes”…

Mas o ano 2020 existiu, sim. Existiu DEMAIS.

Estranho demais. Longo demais. Violento demais. 2020 esfregou na cara da humanidade a dissonância entre o discurso de empatia social e a ação que fere uma suposta individualidade. Escancarou que nos últimos tempos a cultura hedonista se sobrepôs à busca do bem comum. Expôs múltiplos interesses políticos como ferramenta de gestão de massa e manipulação de dados. E doeu.

A pancada de 2020 não veio somente por meio das mais de 1,8 milhão de mortes físicas. Sua fúria foi também psicológica e emocional. Distanciamento. Isolamento. O autocuidado colocado à prova como símbolo de um interesse além de si. Como se uma pessoa obesa fosse recomendada a emagrecer para salvar o seu vizinho. Conseguiríamos?

2020 foi tão duro que o desejo por seu final trouxe a hashtag #acaba2020 como trend topic nas redes sociais e uma rede de hambúrgueres decidiu antecipar o Natal, lá em julho… Estratégia de marketing e vendas, associada à esperança infantil de fazer os problemas desaparecerem, ao invés de serem enfrentados com maturidade. Se está difícil, é um desperdício. Então que acabe. Non-sense…

Ao ser humano, há sempre a possibilidade de aprendizado e desenvolvimento – desde que haja consciência, o que demanda processamento de ideias, senso crítico e um certo desconforto.

Acima de tudo, 2020 toma forma por meio da reflexão intencional. Com a busca por uma vida significativa no encontro entre ética, moral e caráter. Uma competência de senso crítico que só se desenvolve com educação, autonomia, referências e prática. Infelizmente, à maioria dos brasileiros faltam todos os itens.

Mas não precisa ser assim. 2020 é uma espécie de Gato de Schrödinger e você é parte essencial para trazê-lo à realidade. Não fuja dessa responsabilidade.

Qual foi o seu aprendizado?

– Entender a gravidade do problema da violência contra as mulheres, com os maiores protestos já realizados na América Latina e o crescimento das agressões durante o período de confinamento?

– A urgência da discussão e ações para combater o preconceito e reconhecer a força das vidas negras? #blacklivesmatter

– Os impactos nefastos da desigualdade econômica e social ao acesso à saúde?

– A transformação do papel do trabalho, invadindo a vida e o ambiente pessoal dos trabalhadores e trazendo questionamentos sobre o limite saudável do espaço (físico e mental) do trabalho?

2020 existiu. Existiu MUITO.

Caso contrário, isso significaria que você não aprendeu nada. E eu, sinceramente, espero que você tenha aprendido – talvez só falte humildade para assumir.

Ilustração da capa: Diana Stoyanova

Alexandre Pellaes

Alexandre Pellaes é Mestre em psicologia do trabalho pela USP e pesquisador do futuro do Trabalho. Fundador da Exboss é também ex-sócio da 99Jobs. Foi duas vezes palestrante TEDx São Paulo.

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