Assisti “Nomadland” ainda antes dos diversos prêmios naquela cerimônia estranha do Oscar. A pandemia teve um efeito desigual nas pessoas, cada um com suas manifestações específicas. Em mim, me trouxe um senso de urgência incomum para alguém que embora nem tão novo assim, ainda se considera bem longe de bater na porta do céu como diria Dylan. Esse senso de urgência me fez acelerar projetos engavetados há anos e um deles, um sonho de criança, rodar as Américas de carro, que só ainda não aconteceu devido à segunda onda da pandemia e à impossibilidade de qualquer brasileiro sair de seu próprio país a menos que seja para a Albânia, Afeganistão ou algum outro paraíso turístico desinformado.

Não é à toa que tinha um interesse particular nesse road movie, e fui avisado rapidamente, logo no seu lançamento, que não deveria perdê-lo. Quando a Luli, minha filha de quase vinte anos, me indicou, certamente ela pensava só na vida nômade, nos motorhomes e no estilo de vida retratado no filme, ainda que, como todos podem perceber, não exatamente um estilo de vida apresentado como primeira opção para muitos dos “sem-casa” como a protagonista se apresenta.

De direção sutil, performances especiais principalmente pela sutileza e uma fotografia e direção de arte precisas, o filme me levou para um lugar muito além do nomadismo e da escolha de uma vida alternativa. Me fez enxergar a extensão e as consequências do meu próprio trabalho, ou melhor, deu tangibilidade a alguns dos conceitos centrais da “cidade antifrágil” meu novo livro e a metodologia que aplico mundo afora.

A jornada de Fern

Acompanhamos a jornada da personagem da excelente Frances McDermand em seu exílio pelas estradas dos Estados Unidos. Nada de grandes cidades e cartões postais, ao invés disso, um país interiorano, uma “América Profunda”, sem glamour e ainda com menos dólares.

Embora o filme propositadamente não aprofunde em demasia nas motivações dos personagens e nem em seus passados, podemos entender que o ponto de inflexão na vida de Fern foi a morte de seu marido em primeiro lugar, mas em seguida, mesmo com a insistência em permanecer na mesma casa que vivia, se viu obrigada a deixá-la, simplesmente porque a cidade “acabou” uma vez que a principal empresa que empregava e ancorava o lugar fechou.

No filme, a história se passa em Empire, no estado de Nevada. Numa rápida pesquisa pela internet podemos ver que se trata de uma região censitária no condado de Washoe em Nevada e que, segundo o censo de 2010, tinha 217 habitantes. Tratada como uma “cidade companhia” da United States Gypsum Corporation, chegou a abrigar 750 pessoas, todos funcionários da empresa, a qual também era proprietária de todos os imóveis do lugar.

Impossível não pensar em um dos conceitos não só da antifragilidade, mas da cidade antifrágil, a opcionalidade. Quanto menores forem os vetores de desenvolvimento econômico de um lugar, maior a sua dependência dos vetores existentes e, portanto, maior a sua fragilidade enquanto lugar. Se uma cidade vive em torno de uma única empresa, o que acontece se aquela empresa simplesmente fecha? O que acontece com um lugar onde uma única economia movimenta todo o comércio e serviço da região e sustenta não só seus empregados como todos os empreendedores locais que têm nesses empregados seus principais, e únicos, clientes?

Pode parecer algo muito isolado, fadado às cidades pequenas e interioranas, mas será que isso não está mais próximo de nós do que imaginamos? Será que as cidades turísticas no Brasil, por exemplo, não sofreram problemas semelhantes com o sumiço de turistas brasileiros e estrangeiros?

Uma das características da cidade antifrágil é a busca por diversidade, por um conjunto de vetores de desenvolvimento alinhados com a sua identidade e vocação, mas, mesmo assim, plurais. Não se pode mais depositar todas as fichas em um mesmo lugar e rezar para que o vento que soprou até agora não mude de direção. Na verdade, essa monofunção sempre foi um equívoco, mas o dinamismo dos tempos atuais mostrou o quão insustentável e frágil esse tipo de comportamento de fato é. 

Unidos em torno do comportamento

Embora a monofuncionalidade da cidade de Empire seja o ponto de partida da história, dois outros pontos se conectam ao pensamento da cidade antifrágil, e eles estão diretamente ligados no roteiro do filme. Não existe um território específico para os nômades, claro, como o próprio conceito nos indica. Mas se não existe esse território conjunto e essas pessoas não viajam em bando, e no filme vemos o caráter individualista dos personagens e uma delimitação clara dos espaços públicos e privados de cada um, como eles formam uma “nação”?

Embora possa parecer num primeiro momento que, o encontro no deserto é esse “país” que os acolhe, rapidamente percebemos que se trata de um momento de comunhão, de presença física, de troca, mas que tudo isso não se limita a esse território específico. O que os une é a identidade, sua visão de mundo, ou pelo menos, a parte de sua visão de mundo que é compartilhada pelo grupo. Embora não façam parte de um território específico, esse grupo é uma comunidade, ainda que “sem terra”. Essa ideia é o centro da discussão sobre a desterritorialização, uma ideia na qual nos relacionamos por afinidade, comportamento, visão de mundo, sem necessariamente compartilharmos a mesma escada de serviço ou sequer a mesma nacionalidade no passaporte. Para esses viajantes, a “cidade” deles é todo o lugar onde suas vans estão estacionadas, seja no meio do deserto, seja no estacionamento da Amazon.

Outro ponto essencial abordado no filme, e que está presente na cidade antifrágil é a vitalidade comunitária. Nesse caso, ela é ainda mais relevante na medida que esse grupo não compartilha sempre o mesmo território; no filme os encontros são anuais. Ainda que, nesses tempos que passam juntos no deserto, esses laços fiquem claros com as trocas de produtos, os bazares e tudo mais, é quando eles se separam que percebemos a força dessa comunidade. Seja conseguindo emprego temporário juntos, seja trocando itinerários e as melhores épocas para conseguir os tais empregos temporários, a comunidade não depende, e nem poderia, do território para sua sobrevivência enquanto grupo.

Esse nomadismo pós-moderno não vai de comida em comida como nossos antepassados e sim de trabalho temporário em trabalho temporário. Não temos como saber se Fern colocaria o pé na estrada se Empire não acabasse, talvez não. O importante é entendermos que, enquanto cidades e lugares, precisamos fazer com que o comportamento nômade de nossos cidadãos seja uma opção e nunca uma obrigação.

Ilustração: Steffi Walthall

Caio Esteves

Caio Esteves é Global managing partner of placemaking na Bloom Consulting. Fundou em 2015 a Place For Us, a primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil que, em 2020, se juntou a Bloom Consulting. É também autor do livro Place Branding e co-autor da versão brasileira do livro Imaginative Communities.

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